08

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Um silêncio esmagador paira sobre o corredor quando o homem perde o equilíbrio com o golpe que acabo de lhe dar. Sinto os nós dos dedos doloridos após o impacto contra seu rosto e solto o ar dos pulmões com força enquanto o observo se apoiar na parede, com a mão livre sobre o nariz, que sangra. Meu sangue ferve de uma forma tão intensa que acredito estar muito perto de experimentar o ódio genuíno por Robert. Ele me encara incrédulo, como se eu tivesse acabado de cometer o mais grave dos crimes, como se fosse um sacrilégio atentar contra seu bem estar.

- Você ficou maluco, porra? - Grito, sentindo minha garganta seca arranhar um pouco. - Ela é a sua filha, tem o seu sangue! O que você tem na cabeça?

Minha voz alterada atrai algumas pessoas até o corredor mas as ignoro completamente. Tudo o que enxergo é o rosto do homem ainda abismado na minha frente e em como desejo poder o socar outra vez. Mas ao invés disso, continuo cuspindo as palavras em sua direção:

- Ela só tem doze anos, doze! Você é doente. - Arfo, tentando buscar as palavras em meio à raiva. - Você envia uma menina para a morte porque ela discorda de você. Nunca teve a ver com os eldianos, não é mesmo? Você só gosta que os outros concordem com tudo o que você diz. Você só gosta da sensação de se sentir superior a tudo e todos. Mas adivinhe só: você não passa de um merda!

- E quem é você para falar? Passou a vida às minhas custas andando por aí como se as pessoas lhe devessem alguma admiração. Você menosprezou tanto os eldianos, os odiou tanto. - Ele faz uma pausa. - Eu até senti orgulho de você. Mas olha só pra isso... Meus olhos doem só de encarar o seu rosto.

Robert aponta para a braçadeira firme em meu braço. Me abstraio dos pensamentos de o enforcar com a própria gravata e volto a encarar os olhos claros sob o cenho franzido em minha direção. Um arrepio inteiro percorre meu corpo, me lembrando da gratidão que já senti por aquele homem, a figura paterna que me acolheu quando minha mãe não me quis. Que me deu uma casa e uma família. E que me batia às vezes, mas me obrigava a acreditar que era apenas pelo meu bem.

- Lina não tem nada a ver com isso, você não pode enviar ela para aquele lugar. - Digo novamente, cerrando o maxilar em seguida. Robert apenas suspira, tirando do bolso um lenço para conter o filete de sangue que continua saindo de seu nariz e massageia as têmporas com a mão livre.

- Escute. Eu não vou mudar de ideia, não ligo para meu parentesco com ela. Posso ter quantos filhos a mais eu quiser e os educar direito, pra variar. - Ele diz e sinto meu estômago revirar diante de suas palavras.

Nem mesmo eu consigo identificar o insulto que sai entre meus dentes como um rosnado quando avanço novamente na direção de Robert, que não recua e dessa vez parece pronto para revidar. Ergo meu punho acima da cabeça mas meus movimentos são interrompidos por uma mão que o segura com força. Escuto uma respiração ofegante atrás de mim e xingo mentalmente a pessoa que acaba de me impedir de bater em Robert outra vez.

- Para com essa cena, Amarie. Lina está assustada. - A voz de Ethan sussurra atrás de mim e de súbito, recuo, olhando na direção da sala do chefe de guerra por cima do ombro. A menina se esconde atrás do batente da porta, os olhos arregalados em minha direção. Sinto meu corpo inteiro fraquejar e dou mais um passo para trás. Ethan me solta e se coloca ao meu lado. - É melhor acabarmos com isso agora.

Apenas assento para ele, me virando para Robert uma última vez. Dou dois passos em sua direção e ele observa minha movimentação, atento. Em um movimento rápido, tomo de Ethan o rifle que repousa pendurado em seu ombro e seguro a arma pela ponta do cano, a girando nas mãos e acertando a coronha na virilha de Robert com toda a força que consigo reunir. Sorrio satisfeita ao ver o homem curvado sobre o próprio corpo choramingando de dor com as mãos unidas sobre sua região mais sensível.

- Espero que tenha muitos filhos. - Digo na direção dele e lhe dou as costas, devolvendo a arma para Ethan, que ainda assiste a cena com uma expressão aterrorizada no rosto.

Coloco uma mão sobre o ombro de Lina quando me aproximo do batente da porta e sobre meu ombro posso ver as poucas pessoas que se reuniram ali se dispersarem, conversando baixinho sobre o que havia acabado de acontecer. Olho para a menina assustada e forço um sorriso em adua direção na intenção de a tranquilizar um pouco, o que aparentemente funciona.

- Sempre gostei de um drama familiar, acho empolgante. - A voz de Zeke chega aos meus ouvidos como um dos sons mais desagradáveis que conheço. O encaro de imediato. - Precisamos conversar. Em particular.

Ele entra na sala acendendo outro cigarro. Sinto a mão de Ethan em meu ombro e ele se coloca na minha frente, oferecendo uma de suas mãos para Lina, que hesita em a segurar, me consultando em silêncio com um olhar.

- Leve ela lá para fora. - Digo a ele, que assente. Em seguida, olho para a menina e deixo um beijo no topo de sua cabeça. - Eu já vou chegar lá, está bem?

Ela apenas assente e me sinto mal por um momento, por tê-la assustado, Definitivamente não é o que ela precisa agora. Observo os dois caminharem em direção a escada e entro na sala outra vez, fechando novamente a porta atrás de mim. Cruzo os braços diante da mesa de Zeke e o encaro enquanto ele observa o movimento no pátio através de sua janela.

- Deve ser uma menina adorável quando não está chorando. - Ele comenta descontraído e suspiro, irritada com seus comentários. - Ah, certo. Me desculpe.

Ele se aproxima, apagando o cigarro no cinzeiro e apoia as mãos sobre a mesa, se inclinando em minha direção.

- Escute. Se você for realmente quem nós acreditamos ser... A menina estará mais segura com você do que com qualquer outra pessoa. - Ele pondera. - Além de que, até descobrirmos, manteremos as duas em segurança.

- Eu deveria me sentir aliviada por isso? - Pergunto, tentando conter o sarcasmo em minha voz. - É reconfortante saber que seremos protegidas por duas aberrações.

- Considerando que você não tem treinamento nenhum e que aquele lugar está infestado de titãs, você deveria. - Zeke sorri ladino. - Eu aprenderia a brigar direito se fosse você. De toda forma... Daqui a duas semanas vocês embarcam.

- Achei que iríamos com você e Pieck. - Digo, confusa.

- Nós estamos de partida hoje, há alguns assuntos dos quais precisamos tratar primeiro. As encontraremos lá na ilha, no porto, quando tudo estiver resolvido. - Ele suspira, coçando a barba com o indicador. - Dependendo de como as coisas acontecerem, vocês voltarão conosco ou ficarão lá para morrer.

- Tentador. - Resmungo, tentando não me preocupar de imediato.

Respiro fundo, mantendo os braços cruzados enquanto me esforço para não o fazer perguntas, uma vez que sei que nenhuma delas será respondida. Zeke coloca as mãos nos bolsos e me encara.

- Por enquanto, é só isso. Magath vai lhe dar mais informações depois. Até lá eu sugiro que aprenda alguma coisa sobre titãs, e que vigie de perto a sua irmã. Não deixe que descubram que é de Marley. - Ele abre a gaveta da mesa e joga para mim uma braçadeira amarela. - Se alguém perguntar, diga que ela é candidata a guerreira.

Zeke não diz mais nada e sai da sala, me deixando sozinha. Aperto o pedaço de tecido em minhas mãos e sinto raiva apenas de pensar que Lina terá de mentir sobre sua própria identidade em nome de sua segurança. A simples ideia de imaginar ela como alguma daquelas crianças, lutando e aprendendo a serem guerreiros desde tão cedo... Sinto um calafrio percorrer minha espinha e giro nos calcanhares, saindo da sala.

A raiva ainda é presente em minhas entranhas. Sinto o sentimento ruim revirar cada parte do meu corpo, viajando por ele enquanto aguarda o estopim para ser extravasada. Entretanto, meus pensamentos estão apenas na garotinha de cabelo ruivo que me espera no pátio e no que eu poderia dizer a ela para explicar melhor toda aquela situação. Em pensar que ela me defendeu e ficou ao meu lado mesmo sabendo que eu sou uma das coisas que ajudei a ensiná-la a odiar... Balanço a cabeça afastando as lágrimas que se acumulam nos cantos dos meus olhos enquanto desço as escadas e guardo a braçadeira em meu bolso.

Preciso contar a verdade a Lina, dizer a ela que existem monstros no mundo em que vivemos. Monstros como Robert, que não merecem viver entre as outras pessoas; monstros que se julgam superiores a todos apenas por serem diferentes e acreditam nisso mesmo sabendo que são iguais aos que condenam.

Monstros como eu, afinal.

Lionheart I Erwin SmithOnde histórias criam vida. Descubra agora