Angelina andava de um lado a outro do terraço, imaginando o que poderia estar acontecendo para que tanto Klaus quanto Christian estivessem incomunicáveis. Estava claro que tinha algo a ver com a garota, mas não saber o andamento das coisas a deixava estressada. Afinal, que risco essa garota poderia oferecer-lhe? Tentando fazer uma análise fria do caso, ela concluía que nada tinha a temer dessa suposta nova personagem do grupo. Suposta sim, pois ainda não tinha sido apresentada formalmente para a Irmandade e poderia nem vir a ser. Naquele momento certamente Christian já a transformara numa vampira, mas porque então a demora em trazê-la a público? - “Talvez algo tenha dado errado...” - Esse pensamento causou-lhe certo bem-estar, mas desapareceu fugazmente ao perceber que nesse caso já teria notícias...
Pena não poder ir na casa de Christian. Ele já havia deixado bem claro que não queria o envolvimento de ninguém, principalmente ela. As últimas noites tinham sido consumidas no estudo das possibilidades envolvendo a nova vampira, e isso deixou-a tão perturbada que, num momento de distração, quase se revelou a um mortal. O código da Irmandade era bem rígido: jamais poderiam deixar um mortal conhecer O Segredo e sair vivo. Na noite anterior ela quase foi pega numa danceteria movimentada do centro. Muito faminta, instantes antes de morder um rapaz que tirara da pista e levara para o seu carro no estacionamento, a namoradinha do infeliz apareceu e por sorte ela percebeu o reflexo no retrovisor.
A garota tinha ido procurar o namorado e certamente alguém o viu indo para o estacionamento em companhia de uma mulher. O lugar estava escuro e Angelina o fez se abaixar para não ser visto. Assim que percebeu que a garota se afastara, saiu calmamente com o carro e levou-o para o apartamento, onde pôde finalmente se fartar com o sangue quente e jovem do rapaz. Pensando nos momentos de prazer que teve com ele se lembrou que precisava dar um fim ao corpo.
Tanto ela quanto Klaus tinham esse pequeno problema: por morarem em apartamentos não fazia o menor sentido que tivessem um crematório como os membros da irmandade que moravam em lugares mais retirados. Isso a obrigava a raramente levar uma vítima para casa, pois o cuidado ao eliminar as provas e o corpo precisava ser redobrado, ainda mais morando em São Paulo, uma cidade que não conhecia o sono. Fosse a hora que fosse haviam mortais circulando pelas ruas, principalmente no centro. Por um lado isso era bom, era fácil obter presas na noite paulistana, mas no caso em questão criava dificuldades.
Por um momento Angelina ficou na porta olhando o corpo inerte na imensa cama de sua suíte. O rapaz tinha seus encantos, mesmo depois de morto. O corpo nu sobre os lençóis de algodão egípcio parecia uma estátua de mármore. Seus músculos bem definidos e os cabelos louros, cacheados, davam-lhe a aparência de um modelo, apesar do rosto anguloso não ser exatamente bonito. A luz mortiça das luminárias acentuava os contornos da imagem e o conjunto era esteticamente agradável aos olhos e Angelina pensou que deveria imortalizá-lo em uma foto. Era um hobby um tanto grotesco, reconhecia, mas diversas vítimas suas estavam guardadas em fotos que mantinha escondidas. Nem mesmo a Irmandade sabia desse seu hábito.
Ela caminhou devagar até o criado, como se temesse acordar o rapaz. Na primeira gaveta encontrou sua câmera digital e voltou até os pés da cama, se afastando em direção à porta para encontrar o melhor ângulo. Pronto. Gravou duas ou três fotos, uma delas dando um zoom para pegar o rosto e o peito do jovem. Era hora de terminar o serviço. Ela aproximou-se novamente do corpo e deu-lhe um beijo no rosto. Sentada ao seu lado na cama acariciou levemente toda a extensão do tórax até a virilha, onde estavam as pequenas marcas de seus dentes, já escurecidas e secas. Guardou a câmera no lugar e abriu um dos armários, retirando dali uma grande mala de viagem.
Ao lado da cama estavam as roupas do rapaz, mas ao invés de vesti-lo preferiu jogá-las dentro da mala. Todo vampiro conhece as regras tanatológicas sobre o rigor mortis, de Bonett, Fávero e Niderkorn. Por qualquer uma delas o corpo do rapaz já deveria estar livre de rigidez cadavérica, facilitando portanto a manipulação dos membros. De fato, Angelina não teve dificuldade em colocá-lo na posição fetal dentro da mala. Ajeitou o corpo e fechou o zíper. Satisfeita, destravou a alça da mala e ergueu-a, os rodízios facilitando o transporte até a sala.
Antes de sair deu uma última olhada no grande espelho do hall para conferir sua aparência. A maquiagem sutil e de bom gosto, aliada ao roupão negro que descia até abaixo dos joelhos, cobrindo o cano nas botas, dava-lhe um ar discreto e imponente. Se alguém a visse no elevador ou no estacionamento puxando aquela grande mala não desconfiaria jamais das reais intenções daquela executiva respeitável que provavelmente partia em viagem de negócios...
Minutos depois Angelina saía do estacionamento guiando seu Stratus, tranquilamente, em direção à Marginal Pinheiros. O trânsito tranqüilo daquele horário permitiu rápido acesso até a saída para a Fernão Dias e uma vez ali, não seria difícil encontrar um lugar para a sua carga.
Poucos carros e muitos caminhões. Angelina pensou que talvez não tivesse sido uma boa escolha a rodovia. Dirigiu por algum tempo em sentido Minas Gerais, até ver uma placa indicando um retorno, por onde saiu. Fora o som ainda ouvido dos caminhões que pareciam voar na auto-estrada, nada indicava movimento humano naquele trecho de asfalto. Um pouco mais a frente percebeu uma velha trilha de terra à beira da estrada, indo diretamente para o matagal completamente às escuras. Pareceu um bom lugar para terminar sua “viagem”. O som dos caminhões já parecia bem distante, e com a janela aberta dava até para ouvir os grilos. Ela encostou o carro e esperou um pouco. Nem cheiro de humanos havia, e o faro dos vampiros é extremamente confiável. Angelina desceu do carro soltando palavrões por não ter escolhido outro calçado. Os saltos da bota de pelica afundavam incomodamente na terra úmida, atrapalhando o andar. Abriu o porta-malas do Stratus e farejou o ar mais uma vez, apenas para se assegurar. Nada. Num movimento preciso e contínuo abriu o zíper da mala e, sem tirá-la do carro, pegou o corpo do rapaz e ergueu com a facilidade que só a força dos vampiros permite, desvencilhando-se da mala com uma das mãos. Atirou-o no meio do matagal, não muito longe da beira da estradinha mas oculto pela alta vegetação. Certamente o encontrariam em alguns dias, mas seria bem demorado até que o identificassem, se é que conseguiriam. Juntou as roupas que estavam no fundo da mala e levou para o interior do carro, deixando-as amontoadas no banco do carona. Ela as jogaria fora em outro ponto, na volta para São Paulo, assim como a carteira e alguns objetos.
Trancado o porta-malas, hora de voltar. Olhou novamente na direção em que atirara o cadáver, certificando-se de que ficara bem escondido, voltou para dentro do carro e manobrou com certa dificuldade pois a estradinha de terra era estreita para o sedan. Posicionada na direção da estrada principal, ligou o som e se foi. O relógio do painel indicava 23:48hs. Daria tempo para uma refeição breve na estrada... Afinal, quem iria negar ajuda a uma bela mulher com problemas mecânicos na beira de uma rodovia?
O toque do celular pré-pago que Angelina guardava no porta-luvas do Stratus a despertou de seus devaneios. Ela atendeu e após terminar a ligação, deu um sorriso satisfeito. Seu plano mais ambicioso ia começar a ter resultados em breve...
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Cross - A ascensão de Sophia
VampiroCross Associados é uma empresa de investimentos tão misteriosa quanto seus poderosos proprietários, como Christian de Gramont, o vampiro líder da Irmandade no Brasil e principal acionista da Cross, que em suas caçadas solitárias pela noite paulistan...