Sophia parecia acordar dentro de um sonho bizarro. Algo mudara profundamente nela, como se o sangue tivesse um poder mais significativo que aplacar a sede que a consumia minutos antes.
Olhou para o corpo caído ao lado da cama e não sentiu pavor, espanto, assombro... Nada. Apesar disso, sabia que deveria ter qualquer dessas reações. Mas o homem caído ali, exaurido e frio, não despertava mais que uma mera curiosidade. Observou então que seus sentidos também estavam ampliados. Ao olhar para o corpo, era como se pudesse focalizar cada poro da pele. Sentia seu próprio corpo diferente, quase ouvindo o som do sangue circulando em suas veias. O cheiro que sentia agora não era mais tão intenso, mas ainda permanecia uma reminiscência dele, uma lembrança do que provocara nela, instantes atrás. Christian e Klaus a observavam, mas ela parecia não ter consciência da presença deles ainda.
- Você está bem, Sophia? – a voz de Christian era ouvida de forma mais clara, assim como qualquer outro som. Ela então olhou para ele com um rosto tranqüilo e inocente.
- Estou... – sua própria voz a surpreendia. – Mas é estranho sentir essa leveza... Essa calma...
- Logo você se acostuma... Podemos conversar agora ou prefere descansar?
- Quero dormir um pouco. – disse isso e ignorando a presença dos corpos no quarto, Sophia ajeitou-se na imensa cama.
- Tem certeza que ela está bem? – Klaus perguntou, recolhendo o corpo do homem loiro que havia sugado.
- Creio que sim. Ela só precisa se adaptar e vou ajudá-la nisso. Vamos lá para baixo. – Christian jogou o blazer manchado de sangue sobre uma cadeira e pegou o corpo do outro homem pelos punhos. Klaus o acompanhou.
- Vai deixar a porta aberta?
- Não há razão para trancá-la agora. É noite alta e Sophia vai dormir ainda um bom tempo, o suficiente para tomarmos as providências sobre esses restos.
A porta secreta do fundo do corredor foi aberta e os dois desceram as escadas. Aquela parte da casa era toda construída em pedra e sem iluminação artificial ou natural, o que lhe conferia um odor e umidade característicos de antigos castelos. Klaus e Christian não precisavam de tochas ou lanternas para andar ali, já que a escuridão era seu habitat natural e enxergar no escuro, uma capacidade básica da sua espécie. Desceram dois lances de escadas, passando pelas criptas com grandes portões de ferro e semelhantes a masmorras. No segundo piso em que chegaram havia iluminação, possível de ser vista após cerca de um terço da escadaria que lhe dava acesso ser vencido. Uma luz bruxuleante dançava nas paredes de pedra nua, e um crepitar de fogo chegava bem nítido, antes dos últimos degraus. A galeria se abria em um espaço considerável, cujas paredes eram guarnecidas por tochas e onde a friagem da escadaria era substituída pelo calor de um grande forno crematório a gás, com 3,00m de largura, 2,60m de comprimento e 2,80m de altura, pouco maior que os fornos do crematório da Vila Alpina, na zona leste de São Paulo. Atingindo temperaturas internas de 850 a 1200ºC, em cerca de duas ou três horas o forno reduzia a cinzas esbranquiçadas até duas vítimas por vez. Na parede oposta ao forno uma espécie de sala fria semelhante às de grandes açougues, servia para manter os corpos até que o forno entrasse em operação. Isso ocorria regularmente uma vez por semana, as terças ou quintas, conforme a necessidade de Christian. Uma forma limpa e prática de eliminar os vestígios da carnificina. O forno também podia ser acionado pelo sistema central de controle de Christian. Somente após o grande forno estar em condições de uso ele descia até a câmara.
Klaus o ajudou a retirar as roupas dos dois homens. Objetos como correntes, pulseiras, piercings e relógios não deviam ser colocados no forno. No caso das vítimas trazidas por Klaus naquela noite, nenhum objeto era aproveitável, tudo o que os homens traziam consigo foi descartado num saco. Nessa situação, Christian tomava o cuidado de eliminar esses objetos espalhando-os ao acaso pela cidade. Todas as roupas de um desaparecido encontradas em uma lixeira próxima do condomínio lhe ensinaram o quanto a polícia pode ser persistente numa busca. Por dias ele ficou apreensivo, até que desistiram e o lugar retomou sua calma habitual.
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Cross - A ascensão de Sophia
VampireCross Associados é uma empresa de investimentos tão misteriosa quanto seus poderosos proprietários, como Christian de Gramont, o vampiro líder da Irmandade no Brasil e principal acionista da Cross, que em suas caçadas solitárias pela noite paulistan...