Capítulo 13

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   Achava que não tinha medo de altura até agora.
   Nunca havia chegado perto da distância do chão em que estou agora. Nunca andei de avião, mas já sonhei com voar, a sensação é muito diferente do que uma criança pode querer. Parece que estou sendo arrastada e comprimida dentro de uma câmara. O vento enche meus ouvidos, causam uma pressão imensa na minha cabeça que acho que meu cérebro vai explodir. Se olho para a frente, meus olhos lacrimejam e parece que levo socos no rosto.
   Voamos alto, entre e acima das nuvens. Meu corpo colado com a da Agnes, meus braços seguram seu tronco tão forte que fico com medo de esmagar suas costelas. Ela se segura em algo na frente, e mantém o olhar fixo, com a postura tão rígida que sua coluna se quebraria no meio. Nas vezes em que tento conversar com ela, ou ela comigo, a ventania engole nossas palavras antes mesmo de sair da boca. Então decidimos por meio do silêncio que só vamos conversar quando chegar onde estamos indo. Antigo templo da deusa Ártemis.
   A irônica ideia de ir pra um dos maiores templos que já existiu, dedicado a deusa que me mandou nessa missão quase me faz sorrir. Quase. Não sei o que devo fazer lá, Agnes mentiu pra mim, omitiu o que leu, e eu ainda estou com raiva disso. Sei agora mais do que nunca que não posso confiar nela. Ainda mais depois de ver ela matando a sangue frio, cortando a garganta de um homem de forma certeira e letal. Pretendo questionar isso, mas assim que pararmos, não sou tola de causar uma briga aqui em cima.
   A ideia de estar montada em um grifo me pareceria absurda há algumas semanas, quando eu não tinha visto nada de extraordinário, quando não conhecia o mundo em que eu pertencia sem saber. Mas mesmo assim, ainda é um choque, é um criatura de lendas e gerações, magnífico e poderoso, não imaginava que ia dar de cara com um, e ainda mais montar. Sinto que estou vivendo a história de um herói grego que meu pai me contava, e agora sei que não é nada maravilhoso como é retratado.
   Enquanto o cabelo da Agnes voa para trás, eu viro meu rosto para o lado, evitando me afogar em seu cabelo castanho perfeito. Durante a noite, não via muita coisa, passamos a maior parte do tempo voando por dentro das nuvens, servindo como um nevoeiro em todas as direções. Mas poucas vezes em que se era possível ver coisas lá embaixo, eu via luzes de cidades, prédios e carros, distantes e pequenas, passavam tão rápido como quando estamos andando de trem. Mas foram poucas os momentos em que vi isso, tanto que posso contar nos dedos de uma mão. Por alguns minutos nada se via, apenas campos negros em todas as direções, florestas e plantações, escuros como o vácuo de um espaço vazio.
   Mas agora já está de manhã. O sol já nasce no céu, a escuridão sumindo enquanto o azul do dia toma seu lugar de direito. Agora consigo ver montanhas e algumas pequenas cidades, mas ainda assim o grifo nos mantém na altura das nuvens, sempre tentando passar despercebido. Percebo agora que em nenhum momento atravessamos o mar, o que me leva a saber que estamos do lado oriental do planeta, pois se estamos indo para o templo de Ártemis, e estivéssemos do lado ocidental, teríamos que ter atravessado o Atlântico. Não cheguei nem a perguntar para a Sra. Josélia onde estávamos.
   Tento me lembrar o que sei sobre o templo, mas não me lembro de muita coisa, só que ele foi queimado duas vezes, destruído e reduzidos a destroços e histórias. Nas duas foram por motivos banais, orgulho e inveja, um monumento caído pelo pecado humano. Me pergunto se Ártemis poderia ter evitado, e se sim, porque não o fez? Eu ficaria indignada se destruíssem um templo meu, não por vaidade, mas pelo motivo. Não sei o que Ártemis quer que eu faça lá, Agnes deve saber, por ter lido no pergaminho. Pretendo arrancar essa informação dela.
   Antes eu estava com tanta raiva que seria capaz de jogar ela daqui de cima, mas me controlei, não sou uma assassina, e o que quer eu estivesse sentido, foi levada pelo vento que nos atinge com fúria e força. O mesmo vento congelante que parece que vai me congelar e quebrar no meio. Quando voamos por cima das nuvens, o calor do sol nos abraça levemente e sinto um pouco de conforto, mas só o suficiente pra não me jogar daqui.
   Passamos metade do dia voando, os pássaros não se atrevem a chegar perto do grifo e desviam quando nos veem e a grande criatura não para pra comer e nem nos permite pedir isso. Eu não tenho a ousadia também, não paramos por nada, me pergunto se uma de nós caísse, o Grifo iria salvar ou apenas seguir seu caminho. Também penso no que Agnes deve estar achando disso, de repente estar montada em algo assim. Mesmo sem memórias, não é possível dizer que um grifo assim exista. Agora não posso mais apelar pra tecnologia, o que quer que ela acredite, terá que ser a minha mentira – ou verdade.
   O pensamento que roda a minha cabeça é o de que, se desde o começo a Ártemis podia chamar o Grifo, porque ela não o fez? Teria sido uma saída melhor que o Órion. Não que o cavalo tenha sido inútil, mas não é difícil comparar, o tempo perdido seria menor, e a morte da general Tânia poderia ter sido evitada. Faço uma anotação mental de que isso vai ser uma das primeiras coisas que irei perguntar pra Ártemis quando a ver. Se eu voltar a ver, minha mente faz questão de lembrar.
   Durante todo o percurso preencho minha cabeça de pensamentos, pra eu ignorar a altura, o medo, o que aconteceu, o medo que estou do que vou enfrentar, passar o tempo, de tudo, menos de como estou. Tento me lembrar onde é a localização do templo, mas não sei em qual país, então não tenho como me dar uma noção de onde estamos. Voamos por cima de um campo aberto, uma autoestrada some em uma linha reta abaixo de nós, seguimos adiante. Montanhas se projetam ao horizonte, pequenas cidades podem ser vistas mas não chegamos perto.
   Então, poucas horas depois, vejo a mudança de cenário. Adentramos uma cidade, e não passamos de longe. Está no final da tarde, não sei a hora exatamente, mas acho que em menos uma hora o sol começará a se por. Estamos muito alto, quem olhar para cima irá ver apenas a silhueta do grifo, pensará que é uma ave ou algo do tipo. Me forço a olhar pra baixo e me sinto um pouco tonta, minha visão embaça por um segundo e o chão vai e vem em ondas. Ao tempo em que minha coluna começa a latejar, pulsando em dores finas e sinto dormência nas pernas e dor.
   Consigo ver as ruas em todas as direções, as árvores entre os telhados vermelhos das casas. Parece que estamos no centro da cidade, pois é onde vejo o maior aglomerado de construções. A área central da cidade é cercada de campos em todas as direções, voamos sobre praças e ruelas, a vista de cima é linda, mas parece ser pequena. Passamos por uma rotatória grande que liga a uma auto estrada dividida no meio por um acostamento de plantas. Estamos voando em direção a uma plantação, quando de repente, o Grifo faz uma descida brusca. Eu sou jogada para cima e minhas pernas pendem no ar atrás de mim, enquanto me seguro com força na Agnes, que por vez se prende ao pescoço do grifo com a mesma intensidade que eu faço nela.
   Fecho os olhos enquanto grito de pavor, a descida é rápida demais e os segundos são carregados com rapidez pelo vento que cortamos. Quando abro e recupero o fôlego, vejo que estamos planando bem mais baixo do que antes, na altura de uma área arborizada. O Grifo aterrissa delicadamente, como se nada tivesse acontecido. Estamos cercados de árvores, como uma mini floresta. Antes que minha mente se pergunte se alguém viu a gente descendo, eu vomito. Jogo minha cabeça pro lado e jogo tudo o que eu tinha no estômago, que considerando as horas sem comer, não tem muito.
   Agnes olha pra mim com uma cara de nojo forçada e bufa. O Grifo se abaixa, colocando as patas traseiras embaixo do corpo e as traseiras esticadas na frente. Agnes desce em um pulo, no lado contrário em que eu vomitei. Espero que ela se ofereça pra me ajudar, mas não o faz, ela cambaleia alguns passos até conseguir ficar em pé. Eu resmungo que ela é idiota comigo mesma, alto o suficiente pra ela escutar. Então eu pulo, quando piso no chão, não sinto minhas pernas e tropeço para a frente também. O chão parece uma cama elástica e sinto meu corpo mole, minhas pernas não se firmam. Entre minhas pernas sinto dormência, eu me jogo no chão de capim baixo e me forço a sentar, fechando os olhos por um segundo. Leva alguns segundos para minha cabeça ficar no lugar.
   Quando abro, Agnes está me olhando, com um olhar de estudo, como se estivesse decidindo se ri de mim ou me acha fraca demais para se forçar a reagir de alguma forma. Ela desvia o olhar pro Grifo e fica encarando ele como se estivesse vendo uma obra de arte, maravilhada e intrigada. No mesmo instante escuto o barulho do Grifo se mexendo atrás de mim. Quando viro a cabeça ele está parado me encarando, com olhos negros e o bico afiado proclamando qualquer ameaça que ele possa transmitir.
   — O que eu faço agora? – pergunto pra Agnes. Ela deve saber, ela leu o pergaminho.
   — As moedas de ouro da sua bolsa, jogue algumas pra ele – ela diz lançando o olhar pra bolsa presa em mim e desviando pra criatura.
   Eu faço o que ela pede e peço as moedas para a bolsa. Eu sinto várias delas dentro assim que termino de falar, e pego apenas um punhado. Ergo a mão com as moedas na direção do Grifo, mas Agnes balança a cabeça e estala a boca.
   — jogue pra ele – ela enfatiza. – é o que diz o pergaminho.
   Engulo em seco e faço isso. Jogo as moedas no ar, na direção da criatura, que captura todos com apenas um único movimento ardiloso.
   — O que acontece agora? – pergunto.
   — Ele vai embora, no pergaminho dizia que seu único serviço seria te levar pra algum lugar, e não ficar com você.
   — O berrante vai funcionar de novo caso eu queira chamar ele de novo? – pergunto.
   Agnes dá de ombros, e com o histórico dela, não acredito no que ela pode saber ou não. Quando estou prestes a interrogar ela, o Grifo abre as asas e solta um grunhido alto, ele bate a pata dianteira de águia e voa. Ele passa pelas árvores ao nosso redor com graciosidade e agilidade, por mais juntas que elas estão. Eu continuo olhando pro céu, até ele virar um pontinho e sumir atrás das nuvens.
   Quando abaixo a cabeça, respiro fundo e me preparo pra mais uma etapa. Olho pra frente e vejo que Agnes está se afastando de mim, não fugindo, mas indo na direção de detrás das árvores, curiosa com algo.
   — Volta aqui – grito pra ela. – eu quero explicações.
   Deixo a raiva ir brotando em mim, quero me permitir isso agora. A surpresa do que aconteceu e o choque ainda me mantém um pouco entorpecida, mas me permito ficar furiosa. Agnes parece não se importar muito, ela continua caminhando.
   — Você mentiu, descumpriu nosso acordo – continuo resmungando, estou quase chegando perto dela querendo socar seu rosto, quando ela para atrás de uma árvore e fica olhando para a frente, observando algo.
   Quando chego ao seu lado, vejo o que é.
   Não sei exatamente como era o templo, ele não sobreviveu através do tempo. Sua ascensão durou menos do que a sua queda. Tudo em que posso confiar são relatos e pinturas, que eu li e vi quando meu pai me ensinava sobre os grandes monumentos antigos. E de tudo que eu tinha visto, das maneiras que imaginei, a realidade não poderia ser a mais decepcionante possível.
   Um campo se estende na nossa frente, uma área aberta que se antes abrigava um dos maiores templos que já existiu, hoje possuí menos do que suas ruínas. Estamos escondidas em uma área arborizada e de mato alto do território. As ruínas constituem apenas na base das paredes, marcando a silhueta do que fora o templo. Blocos de mármore branco e pedras grandes se empilham em espaços únicos durante toda a extensão, mais na frente há uma área elevada que parece conter mais blocos, mas não mais do que isso, apenas um conjunto em linha reta.
   Na área central, há duas coisas que me chamam a atenção. No lado direito, tem uma pequena coluna em pé, com a base elevada por pedras retangulares encaixadas perfeitamente uma nas outras. A coluna em cima dela é pequena, possui quatro blocos redondos e achatados, feito de mármore e colocados um sobre o outro, tomando uma forma um pouco irregular, porém precisa.
   Paralelo a ele, tem outra coluna ainda maior, a base e sua elevação parecem organizadas, mas é incrivelmente maior, diria até que mais resistente. As colunas apesar de intactas, demonstram a beleza do que era e deixou de ser, são as cicatrizes de um passado decadente. O solo ao redor é arenoso e de capim baixo, onde as ruínas ficam no centro, em uma área baixa, e todo o redor é cercado por relevos. Na lateral, nos morros a minha esquerda, vejo um grupo de pessoas, cerca de cinco pessoas, e uma mini van atrás deles. A maioria do grupo tira fotos, perto de placas que não sei o que estão escritas, e descem até as ruínas por um curto caminho de terra.
   No silêncio, consigo escutar o barulho de carros por perto, buzinas e motor troando, deduzo que vem da auto estrada que eu vi, que deve ser logo ao lado. Mais na frente, atrás da copas das árvores volumosas, vejo construções de pequenos prédios e estabelecimentos, a gente veio dali, e pelo o que eu vi, só pode ser o centro da cidade.
   — O que nós vamos fazer? – Agnes pergunta, olhando tudo com um olhar sagaz. – esperar eles irem embora? Depois do que aconteceu na vila, não quero confiar mais nas pessoas.
   Quando ela diz isso, na minha cabeça só vem o fato de que aquilo só aconteceu por causa da minha mãe, que as pessoas estavam sendo influenciadas, e eu não tenho como explicar isso pra Agnes, então deixo ela pensar o que quiser. Ainda tentando me localizar e absorver o lugar, não pela beleza, pois não tem, mas pela incredibilidade de acreditar que estou aqui, demoro alguns segundos para me dar conta da palavra “nós” dita por ela.
   — Não tem nós aqui – me viro pra ela, tentando puxar a raiva de algum lugar. Bastou lembrar dela matando o Daniel e de mentir pra mim que eu começo a sentir ela brotando em mim. – você mentiu pra mim, descumpriu nosso acordo – agora que a cena aparece na minha mente tão recente quanto a noite anterior, sinto meu estômago revirando. Já vi muitas mortes nos últimos dias, e mesmo assim não me acostumo com ela. – você matou um homem a sangue frio!
   Ela não recua, espera pra ter certeza que eu terminei de falar. Agnes não desvia o olhar, seus olhos encaram os meus, e eu não sei o que ela espera de mim, mas sua expressão não demonstra arrependimento e nem surpresa. Mas basta alguns segundos pra ela engolir em seco.
   — Ele me tocou, o que queria que eu fizesse? – pergunta baixo, sinto sua voz pesada, como se estivesse segurando algo dentro de si, pra então desviar a cabeça.
   — Você o matou com um único movimento, porque ele te tocou? – pergunto, ficando ainda mais intrigada. – ele não tinha feito nada!
   — AINDA não tinha feito nada – ela se vira pra mim, dessa vez aumentando o tom de voz, seu olhar agora transmite uma fúria inegável, que não estava ali segundos antes. Sua respiração começa a ficar mais rasa e ela respira fundo. – não ia esperar algo acontecer pra agir.
   — Não consigo acreditar que fez aquilo por causa de um toque – digo, franzindo as sobrancelhas, uma parte minha sabe que ele poderia ter feito algo, mas eu vi a forma como ela fez, parece que já havia feito outras vezes. – você tinha o direito de se defender, mas não assim. Você se tornou uma assassina.
   Agnes não responde, ela nem mesmo hesita. Seu olhar muda de expressão tão rapidamente que me sinto paralisada, ela muda pequenos detalhes nas expressões do seu rosto que torna ele amedrontador. Apesar de bela, Agnes sabe usar o poder hipnotizante que um rosto bonito pode ter.
   — Não sei o que aconteceu comigo, apenas senti o impulso de fazer quando ele segurou meu braço de forma bruta, como se algo tivesse se ativado na minha cabeça, tive que me defender, não gostei da atitude dele – ela responde de forma seca e ríspida. – me chame do que quiser, mas não me questione porque não faço isso com você, só eu sei o que senti e nada que eu fale vai mudar.
   A acidez com que diz queima meus pensamentos, por um momento sinto que estou fora de mim. Agnes continua me encarando, ela quer ver o que tenho a dizer, que levar essa discussão até o fim. E por mais raiva que eu tenha, dúvidas e querer xingar ela, parece que nada sai da minha garganta. Ela fala com tanta ferocidade, que parece uma cobra pronta pra dar o bote sempre. Me pergunto que tipo de deusa ela era, qual delas seria capaz de fazer isso? Todas, talvez.
   — Como não questionar? Havia outras formas de se defender! Matou um homem inocente em um segundo – reúno toda a força de vontade e peso na voz, aumento até o tom pra não parecer que recuei. – Poderia ter feito o mesmo comigo desde o começo!
   — Mas não fiz, porque não tive motivos – Agnes rebate rápido. – se quer um pedido de desculpa por ele, não vou fazer isso.
   A frieza com que me responde só me deixa mais furiosa.
   — Você é fria – digo tentando mostrar o nojo que sinto em minha voz. – você mentiu pra mim! Não me contou sobre o berrante, escondeu isso de mim.
   Agora sinto que sua expressão muda, como se ela tivesse deixado a muralha que criou mais fina, não está mais na defensiva. Ela respira fundo e muda o foco do olhar. Agnes lambe os lábios e pisca lentamente.
   — O pergaminho dizia que você devia usar o berrante assim que tivesse segura, longe do acampamento, e que a criatura iria aparecer pra te trazer pra cá – ela explica, suspirando. – quando li sobre ele na floresta, eu tive que pensar rápido. Se você usasse o berrante ali, iria embora e me deixaria sozinha na floresta.
   Ela muda rapidamente a expressão dos seus olhos, como se ela tivesse tentando parecer mais inocente. Eu fico admirada com a facilidade com que seus olhares transmitem qualquer personalidade que ela queira. Mas não me deixo dar por vencida.
   — Não consigo acreditar em nada do que você diz – minto. Odeio a minha capacidade de empatia e me coloco no lugar dela, eu realmente teria ido com o Grifo, mas iria levar ela pra alguma cidade próxima, não iria deixar ela para trás. Mas não admito isso, quero que ela pense que sou capaz de fazer coisas mais cruéis.
   — Então não sei o que fazer pra você acreditar – ela responde séria. As sombras que o pôr do sol começa a lançar sobre nós, deixa seu rosto macabro. – acho que pedir desculpas não vai adiantar.
  — Não mesmo – digo rapidamente, tentando puxar a voz mais seca que consigo. Mantenha a cara fechada como ela. Não posso confiar na Agnes, não que antes eu confiasse, mas pelo menos estávamos em situações parecidas. Depois do que ela fez, sendo uma deusa ou não, é um risco para essa missão. Ela poderia ter feito o mesmo comigo, mentiu sobre algo importante, atrasando o que estou fazendo, não vejo outra alternativa. Não sei nem ao menos se conseguiria fazer ela recuperar a memória. – não podemos continuar juntas, nosso acordo está encerrado.
   Ela franze as sobrancelhas e puxa a cara, não esperava por essa.
   — Como assim? – balbucia.
   — Minha parte do acordo era te levar para uma cidade – argumento. – e estamos aqui, tem uma logo ali – balanço levemente a cabeça na direção das construções atrás das árvores. – acabou.
   — Mas... – Agnes perpassa o olhar por todo o meu rosto procurando algum argumento. – o pergaminho, você precisa que eu leia!
   — Não mais, posso me virar com isso, consigo arrumar alguma coisa aqui perto – falo por alto, porque não tenho planos pra isso, eu poderia tentar achar uma biblioteca e tentar traduzir só, ou pedir o celular de alguém, ainda não sei o que fazer, mas tento parecer convincente, não vou voltar atrás agora.
   Ela demora alguns segundos para responder, sua boca abre e fecha tentando procurar algum argumento, é a primeira vez desde que nos conhecemos que ela não tem a resposta na ponta da língua. Mas mesmo sem seu sorriso irônico, ela ainda tem um rosto que em outras circunstâncias poderia ter uma beleza letal, como um leão. Agnes então une as sobrancelhas e inclina levemente a cabeça para o lado.
   — Sara, você não pode fazer isso comigo – diz, com a voz menos rígida do que antes, ela nem tenta disfarçar que está tentando me bajular. – a minha situação atual não é diferente da de antes, ainda estou sem memórias, não sei pra onde ir, e pior, estamos a milhares de quilômetros de onde eu poderia encontrar respostas – engulo em seco, mas mantenho a expressão fechada, e é quando percebo que eu estava respirando pela boca. – sei que errei, mas não tenho escolha. Eu quero te ajudar, não sei no que você está metida, mas depois de ver uma criatura como aquela, eu sei que é algo que está fora de qualquer compreensão que eu possa ter – Agnes fala rápido demais, como se estivesse jogando no seu pequeno monólogo o primeiro pensamento que vem na sua cabeça, o tom que ela mantém na voz é direto. – posso não ter memória, mas sei que é um bicho daqueles não é normal. Eu posso ajudar, pelo menos até eu me lembrar das coisas, você viu o que eu posso fazer – não discordo que ela é ágil e inteligente, apenas repuxo a boca involuntariamente. – posso ser útil. Estou sozinha.
   Ela fecha a boca e espreme os lábios, esperando que eu diga algo. Por mais que eu concorde com algumas coisas que ela diz, ainda sinto que não é uma boa escolha. Não sei o que Agnes é capaz e não quero me envolver com pessoas imprevisíveis. Ártemis confiou essa missão a mim e não posso me prender a primeira pessoa que aparece no meu caminho. Ainda mais uma que mente e pode cortar minha garganta com meio movimento.
   — Isso não é problema meu – digo, mas não consigo disfarçar que não me importo. – posso te dar algumas moedas de ouro, pra ajudar, mas só isso.
   Ela então fecha a cara novamente, a expressão de alguém inocente e necessitada se esvai em um segundo, ela curva a boca para baixo e me olha de cima a baixo, me julgando com o olhar. Não com desprezo, mas tentando avaliar se vale a pena tentar algo comigo.
   — Eu achei que você fosse boa – ela diz. – mas parece que vai queimar no inferno junto comigo.
   O choque de suas palavras só me deixa com mais raiva.
   — Não me compare com você – rebato. – se não sente culpa pelo que fez, então você é um monstro.
   Algo na minha frase desperta algo nela. Agnes prende a respiração e seus olhos paralisam, ela fica tensa por tempo suficiente pra eu achar que seu corpo vai se estilhaçar em mil pedaços. Até que ela solta o ar devagar demais, de forma pesada, e fecha os olhos ao tempo em que morde os lábios, como se estivesse se segurando para não fazer alguma coisa, e demoro perceber que eu dou um passo para trás. Penso que se ela tivesse com a adaga, faria comigo o mesmo que fez com Daniel.
   Antes de falar, ela me lança o olhar mais frio que eu já vi, suas pupilas parecem até maiores e sua expressão seria capaz de parar um exército.
   — Talvez eu seja – diz de forma rápida e ríspida, as palavras dura e o tom que sinto que contém uma fúria.
   E se vira pra ir embora, sem aceitar as moedas que eu ofereci. Não entendi a reação dela, ela ficou mais furiosa pelo que chamei ela do que por ter gritado e acusado ela. Ainda incrédula com tudo que tá acontecendo, não noto o cara na nossa frente até ouvir o barulho de várias madeiras caindo no chão. Agnes e eu nos sobressaímos e olhamos rapidamente pra ele.
   Ele é alto, deve beirar os 1,80, quase da minha altura, usa óculos e tem os olhos fundos, seu cabelo escuro está desgrenhado para trás, ele tem a boca fina e pelo rosto jovem, porém assustado, deve ter não mais de vinte e cinco anos. Ele usa uma camisa marrom larga e sem mangas, destacando braços não muito fortes, marcando um pouco de músculo. Veste uma calça branca folgada e uma sandália que parece de idoso, mas isso não tira a beleza exótica que ele tem.
   O rapaz está parado olhando pra nós, com os olhos arregalados escondidos atrás dos óculos e da pouca luz, enquanto um amontoado de madeira está jogado no chão aos seus pés e seus braços estão na frente do corpo se cruzando, mostrando claramente que ele estava carregando os tocos.
   Ele demora alguns segundos abrindo e fechando a boca tentando dizer algo. Eu coloco a mão na adaga na minha cintura e percebo que Agnes fecha o punho.
   — É você – ele pigarreia. A voz sai trêmula, mas audível. – é você mesma.
   Olho pra Agnes e ela arqueia rapidamente a sobrancelha, se mostrando levemente tensa, segura a respiração e fica abrindo a boca, como se fosse dizer algo mas não sabe o que, totalmente surpresa. Mas então ela franze o rosto e repuxa a boca, ainda com a respiração funda. Quando volto a olhar pra ele, percebo que me enganei, porque Agnes também olha pra mim.
   — Você está falando de quem? – pergunto confusa.
   Ele pisca algumas vezes quando eu falo, como se não tivesse acreditando no que está vendo. Sinto meus pensamentos se embaralhando na minha cabeça.
   — Você, você é Sara? – pergunta.
   Um calafrio passa pelo meu corpo, sinto meu coração congelar. Engulo em seco enquanto os pelos do meu corpo se arrepiam. O que está acontecendo? Por impulso, seguro com mais força a adaga, pronta pra embainhar ela se preciso for.
   — Sim – respondo. – sou.  
   E então algo inexplicável acontece. O homem se joga no chão, caindo de joelhos, e joga o corpo pra frente, com os braços estendidos no chão. Uma típica reverência, e parece que dedicada pra mim. Agnes alterna o olhar entre a gente, tão confusa e intrigada quanto eu.
   — O que está acontecendo? – ela pergunta. – quem é ele?
   — Não sei – falo em quase um sussurro.
   Do chão, ele levanta a parte de cima do corpo e ainda se mantém de joelhos e então olha pra mim.
   — Estamos há anos esperando por você – o rapaz responde.

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora