Capítulo 16 - Observador

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                        |Observador|

   Alice Finalmente estava no seu país das maravilhas.
   Depois de ter passado a vida conquistando prêmios, sendo a melhor em tudo em que se propunha, tirando notas boas e fazendo várias atividades extracurriculares, ela conseguiu se formar em uma das universidades públicas mais renomadas de seu país, no curso de veterinária. Ela era motivo de orgulho dos pais e inveja de muitos outros, sempre dava seu melhor e conseguia o que queria. Desde criança, alimentava uma paixão imensa pela Austrália e toda a sua diversidade na fauna, talvez esse tivesse sido o motivo de querer ser veterinária.
   Com o tempo, a paixão pelo país só aumentava e ela ansiava por visitar o local. Não sabia como surgiu, mas ela prometeu para si mesma que um dia esse lugar seria um destino. Quando estava prestes a se formar, seus pais ofereceram uma viagem para Austrália como presente de formatura, e Alice não poderia ter pedido coisa melhor, afinal, os rumos da sua vida estavam dando certo, tinha um namorado incrível, amigos presentes, pais carinhosos, um estágio renomado e agora um diploma.
   No começo as coisas não ocorreram como esperado. No mês de sua formatura, a noite misteriosamente sumiu, deixando o mundo todo em um completo amanhecer durante quinze dias, e muitas coisas foram suspensas nesse período. E mesmo depois que retornou, demorou algum tempo para normalizarem na medida do possível. Pois, as consequências disso ainda estavam sendo revertidas. Muitos países começaram a entrar em crise hídrica, o calor matou muitos animais e humanos, principalmente nos países mais quentes, além de ter causado vários incêndios por florestas em todo o mundo, estradas de concreto racharam e afundaram, grandes cidades tiveram que parar grandes indústrias e reduzir a movimentação de carros.
   Geleiras imensas da Antártica derreteram, afundando alguns países metros abaixo do mar e deixando muitos outros na beira de um colapso. Os seres humanos passaram a ficar mais irritados, pois bagunçaram seu sono biológico, trocando os horários e perdendo a calma que uma boa noite dormindo trazia. O consumo de energia mudou absurdamente, trazendo uma crise elétrica e econômica. O mundo não estava preparado para aquilo. O evento ficou conhecido como “Eterno amanhã”, o que era simbólico e irônico, pois diziam que o amanhã seria melhor que hoje, mas esse amanhã nunca ia e nem chegava. Ninguém no mundo soube explicar o que aconteceu, e muito menos suspeitaram que a deusa da noite havia sido amaldiçoada.
   Mesmo depois da festa de formatura, no dia de sua viagem, o aeroporto passou cerca de um dia inteiro sem voos, pois uma neblina misteriosa cobriu todo o planeta, impedindo aviões de decolar. Também houve relatos de relâmpagos furiosos explodindo no céu e ventanias capazes de derrubar prédios. Alice poderia jurar que tudo estava conspirando para que ela não fosse, por mais que seu namorado pedisse pra que ela mantivesse a calma, que em algum momento eles chegariam lá. Mas Alice era ansiosa demais, e a tranquilidade dele a deixava um pouco irritada. Será algum sinal? Ela pensava. Pego o dinheiro da viagem e abro a minha própria clínica? Os pensamentos rondavam sua cabeça. O que está acontecendo com o planeta? O que aconteceu com a noite e de onde surgiu essa neblina? Ela não podia fazer nada além de afundar sua cabeça em perguntas.
   Durante todo o percurso no avião, Alice ficou planejando sua visita no país, os lugares que gostaria de conhecer, os monumentos que queria ver e tudo o que pudesse ser feito, a viagem iria durar uma semana, mas ela faria valer a pena cada segundo. Também aproveitaria para entender mais sobre a fauna e as espécies exóticas que só encontraria lá, quem sabe isso a inspiraria para seguir uma carreira lá? Sua ansiedade consumia todo seu corpo. Enquanto isso, do seu lado, o namorado Bruno lia coisas mais interessantes para ele. O rapaz estava se formando em física e lia vários artigos sobre o eterno amanhã, onde os cientistas mais ousados e sem medo de parecerem loucos tentavam explicar o que estava acontecendo.
   A lua ainda estava no céu e podia ser vista durante a rotação do planeta, mas a luz do dia também cobria todo o planeta, deixando o satélite um pouco invisível. Alguns físicos tentaram afirmar que de alguma forma agora a lua é quem estava liberando a energia que iluminava o céu, como um protótipo do sol. Outros afirmavam que a atmosfera estava mudando, se condensando de uma forma que fazia com que a luz ficasse presa na terra, sem escapar para o vácuo do universo, mantendo assim todo o globo iluminado, como uma evolução do efeito estufa, não mantendo apenas o calor, mas a luz.
   Não importava quão boa era a explicação, tudo pareceria maluquice sem sentido. Talvez quem chegasse mais perto de adivinhar eram os religiosos de várias culturas que anunciavam que seu deus ou deuses estavam punindo a humanidade, e passavam os dias implorando por misericórdia. Bruno gostava de ler sobre essas coisas, mas não tinha uma opinião formada sobre aquilo. Mas depois da névoa misteriosa, ele se pegava querendo acreditar que eram coisas de divindades superiores.
   Muita coisa aconteceu antes de chegarem ali, mas finalmente pisavam em solo australiano. Alice estava em êxtase e admirava até mesmo o aeroporto, que parecia como qualquer outro. A locomoção pro hotel também foi um pouco complicada, o que fez Alice se irritar por estar perdendo tempo.
   — Não demoraremos muito no hotel – ela comentou vendo seu itinerário. – depois do almoço, temos o primeiro lugar pra ir, o museu de Hyde park.
   Bruno gostava como Alice era organizada, e sua animação era compreensível depois de tudo que aconteceu. Ele demorou o olhar nela enquanto o táxi andava.
   — Você fica linda, nervosa – ele disse com um sorriso picante. O que a fez dar uma risada de vergonha. – mal vejo a hora de chegar de noite, pra poder fazer outras coisas em solo australiano.
   Alice revirou os olhos antes de gargalhar.
   — Sim, porque viemos pra outro país fazer justamente isso – ela respondeu ironicamente.
   O hotel em que se hospedaram era lindo, com salão de mármore branco e lustres esculpidos em ornamentos suaves e ousados, mas não estava ligado. As janelas eram grande e de vidro, a recepcionista comentou que era pra que a luz natural do sol entrasse, e ajudasse na economia de energia. O mesmo aconteceu com os elevadores, apenas um dos três estava permitido de funcionar no momento, pelo mesmo motivo, onde os outros só era permitido a utilização em casos específicos, como deficientes ou algo grave.
   — É, o mundo não está a nosso favor – Alice disse, irritada.
   — Nota mental: menos uma estrela na avaliação – Bruno comentou.
   Eles pediram comida no quarto mesmo, ficaram com receio de descer para o restaurante e encontrar outros empecilhos. Alice queria comer rápido, mas a torta de carne e a costeleta com molho barbecue a fez querer saborear ainda mais a comida local. Bruno tentou ligar a TV, mas não conseguia pelo controle remoto, não perdeu a paciência até ir a televisão ligar manualmente e ver um informativo na parede ao lado, informando os horários de funcionamento da televisão, e que se quisesse usar fora da hora permitida pro quarto, teria que pagar a mais.
   Ele bufou, finalmente irritado.
   — Agora estou tão animado pra sair por aí, quanto você – ele resmungou.
   Alice riu. Depois de feito a refeição, os dois começaram a se aprontar para o primeiro passeio. Alice se aprontou rapidamente, mas Bruno sempre tinha o problema de ser mais lerdo nessa questão. Ele nunca tinha pressa pra nada, banhava devagar aproveitando a água e não via necessidade de fazer tudo na correria. Eles esperaram muito para estar ali, e se já estavam, porque correr?
   Isso deixava Alice irritada, sempre que acontecia. Foi quando ela pegou ele olhando o Twitter ao invés de vestir a calça, que ela decidiu que não ia esperar mais ali.
   — Vou descer, preciso falar com alguém daqui sobre uma rota turística melhor – ela disse. – se não aparecer em dez minutos no saguão, eu vou sem você.
   Ela deu de ombros.
   — Pra que toda essa pressa, amor – perguntou de forma retórica. – essa ansiedade ainda vai te matar.
   — Não vim do outro lado do mundo pra morrer –  Alice respondeu de forma leve, o que arrancou uma risada dele, e então pegou a bolsa e tudo que podia precisar, foi até o elevador e desceu.
   No saguão, a movimentação era pouca, o que a fez ficar bem mais a vontade com a recepcionista, que dava dicas para ela de para onde ir primeiro ou quais rotas pedir ao taxista para que se possa ver mais da cidade. Enquanto conversavam, ela percebeu uma coisa que não tinha feito antes; ligado para seus pais.
   “Me liga assim que chegar, por favor”, dissera sua mãe. “Espero que curta a viagem meu amor, sentiremos sua falta”. Alice estava tão preocupada com outras coisas que não tinha falado com as pessoas que deram aquela viagem de presente.
   Quando colocou a mão no bolso, algo aconteceu. O chão começou a tremer vagarosamente, começou leve, com apenas os quadros tremendo e algumas plantas, mas de repente, o chão parecia pular. O primeiro indício da gravidade que estava se tornando foi a queda do grande lustre no chão, que caiu em cima de um funcionário que passava embaixo no momento, matando-o instantaneamente e fazendo o grande objeto de decoração se despedaçar em milhões de pedaços que voou em todas as direções, atingindo até o rosto de Alice, com pequenos cortes.
   As pessoas se levantaram surpresos e gritando, começando um pânico coletivo. As paredes começavam a rachar, subindo do chão ao teto em linhas irregulares e desordenadas. A luz oscilava e uma sirene alta soava alta e constante em todo lugar. Alice estava incrédula, a morte do homem na sua frente a paralisou, ela não conseguia reagir, o sangue dele estava por todo o chão. Ela não conseguia ver a situação grave até ser puxada pela multidão que corria para a porta de saída.
   A funcionária do balcão a puxou pelo braço, e Alice cambaleou na direção dela. No momento, a primeira pessoa que lembrou foi de Bruno, mas quando ela olhou para o elevador, ele já estava completamente rachado e fios pendiam da parede. O chão tremia com força e raiva, parecia prestes a explodir, os móveis mais altos caiam com força no chão, quebrando o que estivesse embaixo, assim como pedaços do piso de cima.
   Alice queria voltar para o elevador, voltar para ajudar Bruno, começava a sentir o desespero tomando conta de seu corpo, lágrimas brotavam nos seus olhos a medida que seus gritos saiam de sua boca e se misturavam a multidão. O sangue começava a correr por suas veias, e a adrenalina trazia o medo e o pavor. A funcionária e mais outra pessoa conseguiram tirar ela de dentro do saguão do hotel. Alice estava perdida no meio da multidão, havia gritos e barulhos de batidas ou algo rachando e explodindo pra todo lado, ela precisou de um segundo para tentar se localizar. O QUE ESTAVA ACONTECENDO???
   Assim que chegou na rua, ela viu que a coisa estava pior. Na avenida, o chão se quebrava em explosões, parecia que as ruas se colidiam, levantando concretos em forma de montanhas. Era como se uma manada de elefantes brotasse do chão. Carros batiam um nos outros, e voavam pelos ares. Os prédios por toda a avenida tremiam, os mais fracos caiam como dominó, em um cenário de destruição aterrorizante. Fumaça e poderia cobria tudo ao redor, as pessoas corriam para todas as direções, sem saber se estavam indo para algum lugar seguro, mas tentando se convencer de que iriam ficar bem.
   Mas não iriam.
   Alice chorava, incrédula, seu coração se apertava e o hotel atrás dela desmoronava em um porrete de concreto, assim como sua mente. Ela não entendia o que estava acontecendo, mas imaginar o corpo de Bruno caindo por entre as ruínas de um prédio em colapso era demais pra ela. Ela olhou pro céu com a vista borrada a tempo de ver um pedaço enorme de parede caindo sobre ela a toda velocidade.
   Ela não conseguiu pensar em nada antes que a escuridão da morte a atingisse. Nem mesmo que sua viagem era o destino final de sua vida. Um segundo foi o suficiente para ver sua vida passar diante dos seus olhos. Alice havia passado a vida se dedicando para a família, escola, profissão, amigos e tudo o que pudesse. Havia sido a melhor em tudo, se orgulhava do que havia e estava construindo. A viagem seria o estopim para o início de uma nova vida. Mas a tristeza não foi a última coisa que sentiu, nem medo e nem arrependimento, havia uma pitada de orgulho em meio ao vazio.
   Assim como ela, milhões morreram naquele dia. O dia em que a Austrália se partiu ao meio e afundou metros no nível do oceano. Gaia fez aquilo em um ato de raiva e ódio. Mas Alice não sabia que isso aconteceria, não tinha culpa, alguém tinha?
   Se ela soubesse que aquele seria seu último dia, teria feito algo diferente? Ou teria aceitado seu fim?

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora