Capítulo 4

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   O dia seguinte é mais do mesmo.
   Acordo mais disposta, apesar de ainda sentir certo peso dentro de mim, como se algo me incomodasse mas eu não sei dizer aonde e nem o que. Não estou com fome e apesar de ser saudável, sinto a necessidade de comer outras coisas. O dia não está muito diferente de ontem, a neblina já sumiu apesar de eu ainda sentir uma energia pesada no ar, como se quisesse destruir tudo. Então guardo minhas coisas, como fiz ontem, prendo meu cabelo em um rabo de cavalo e monto no Órion, seguindo viagem.
   Minhas pernas doem e minha bunda também, minha coluna lateja de vez em quando em um incômodo fino. Em alguns momentos, tento colocar a cabeça atrás do pescoço do Órion, mas me desequilibro ou o chacoalhar não me deixa descansar, e também me faz ficar enjoada. Tento com toda força não beber a água do cantil por enquanto, apesar dos lábios cortados e da garganta seca, prefiro esperar mais um pouco, até ver se acho alguma solução ou adio o inevitável.
   Durante o dia, saio do cavalo e caminho um pouco, para evitar câimbra e esticar as pernas, como também aliviar a pressão na coluna de me manter ereta. Caminho devagar, sentindo a brisa no rosto e a sensação boa de caminhar. Nesses momentos sinto como se eu estivesse no controle de tudo, diferente de quando estou montada no Órion, que ele parece me levar para um destino cruel.
   A floresta nunca muda e parece infinita, as árvores são altas e com troncos grossos, os galhos se alongam formando sombras grandes, e eu tiro alguns minutos para descansar com o Órion. Mas nesses momentos algo na minha mente grita para que eu me mexa e siga em frente, e isso me incomoda e faz ficar com um enorme peso na consciência. Tento ignorar a voz, que coincidentemente parece da Ártemis, mas a urgência me faz sentir pressionada. Pensar nela me faz questionar o que pode ter acontecido com ela. Ártemis disse que a qualquer momento iria virar humana, por conta da maldição da minha mãe, por isso nem ela e nenhuma caçadora poderia vim nessa missão. Não sei se ela está bem e nem se vou encontrar com ela algum dia.
   Seguimos metade da viagem do dia quando finalmente sinto fome e como duas maçãs, e não consigo resistir e bebo metade da água do cantil, não matando toda a minha sede mas aliviando muito. A todo momento analiso o mapa, procurando mudanças, e vejo que estamos mais próximos da curva das cordilheiras, o que quer dizer que em algumas horas passaremos pelas montanhas e se os deuses quiserem, chegaremos onde devemos.
   As vezes olho para o céu e penso em Hemera, porque ela é a deusa do dia e tudo isso é domínio dela. Ela tentou me ajudar, ou pelo menos aparentou isso, e me pergunto o que aconteceu para ela mudar de ideia assim e se houve alguma consequência do portal que ela tentou abrir. Fecho os olhos e imploro por alguma ajuda, pra ela, sussurro seu nome e peço pra que me der uma luz ou que se isso não acontecer, que ela ao menos cuide de meu pai.
   Mas nada acontece e me contento com a ideia de que ela não se importa ou não pode fazer nada. Ela disse que quando passássemos pelo portal ela não poderia interferir em nada, o que quer dizer que minha situação é a mesma coisa. Então continuo o resto do dia lutando contra meus demônios. A todo momento a imagem das caçadoras morrendo invade a minha cabeça, escuto os gritos e parece que sinto o gosto de sangue. Lembrar disso me faz estremecer, e eu preciso fechar os olhos com medo de que se eu abrir, possa ver o corpo mutilado de alguma delas, boiando no rio, pendurados nas árvores ou jogados pelo chão.
   Até tento traçar um plano, encontrar uma civilização, usar a internet para traduzir esse pergaminho, e ir aonde é que essas asas estejam. Mas sei que não vai ser tão fácil assim, Ártemis disse que procura a séculos por elas. Ela já teria conseguido se as informações do pergaminho realmente mostrasse sua localização. Assim como sei que muitos que tentaram eram mais experientes do que eu e que a deusa íris não iria simplesmente esconder elas sem nenhum tipo de proteção. Planejar agora é inútil, mas é mais inútil ainda não pensar nas possibilidades do que pode acontecer.
   Paramos novamente dessa vez para acampar. Mais um dia se passou e eu sinto que não estou chegando a lugar nenhum. Olho para o mapa e parece que estamos sempre no mesmo lugar, mais do mesmo e sempre acabo lamentando as mesas coisas. Sinto a raiva tomando conta de mim, minha cabeça dói e meu corpo implora por um descanso descente. Estou cansada de comer frutas e beber água que nem sei se é saudável. Cansada de passar o dia montada em um cavalo, indo para exatamente lugar nenhum e dormir em um colchonete fino.
   Sinto um peso no coração, mas não sinto mais vontade de chorar, as lágrimas parecem presas em mim e minha garganta se mantém fechada. Então eu liberto minha raiva e grito, faço isso como se meus pulmões fossem explodir. De primeira sai fina e rouca por conta da angústia, mas repito várias vezes até sentir que estou sendo escutada na lua. Até sentir que as árvores estão se curvando e minha explosão ecoar em cada maldita montanha.
   Minha voz enche minha cabeça e parece andar sobre a superfície do rio, que me acompanha desde o começo. Junto os braços e fechos as mãos, reunindo força e coragem, algo para me manter fazendo isso. Minha garganta arde, minha cabeça dói e meu corpo pesa, mas não me sinto bem, não estou bem. Bebo o resto da água sem me preocupar, estou fazendo planos e me preocupando sem saber quando irei sair daqui.
   Guardo o mapa e tiro a lança da bolsa. Penso em desferir golpes contra o ar, extravasar minha raiva treinando, mas vejo o qual inútil é, eu só gastaria força e não devo me dar esse luxo. Então me viro e entre as árvores vejo alguma coisa brilhando, olho mais atentamente e vejo a forma de um animal. Ergo a lança na direção dele e o animal sai de entre as árvores, ele parece se banhar com a luz prateada.
   Então vejo bem o que é, um lobo cinza. Ele parece ser iluminado com um fino feixe de luz da lua que escapa entre as nuvens que cobrem o céu. Eu me lembro do lobo, ele é um dos lobos lendários da Ártemis, vi eles apenas uma vez, no meu primeiro dia no acampamento. Mas não estão todos aqui, apenas um. Um leve flashback me faz lembrar que vi alguns na batalha do acampamento.
   Ele me encara por um momento e eu me mantenho tensa, pronta para algo, mesmo sentindo que ele não vai fazer nada. E de repente ele olha para o céu e uiva, seu uivo é alto e poderoso, me faz estremecer e transmite perigo. Eu olho para o céu e vejo que as nuvens estão ficando escuras novamente, e que o ar sopra mais forte, e eu suponho que uma tempestade se aproxima. Mais ao longe vejo nuvens carregadas e densas.
   O lobo então se vira e corre para dentro da floresta.
   — Ei, volta aqui – grito. Ele para e olha para mim, depois vira a cabeça novamente. Me dou conta que ele quer que eu o siga. Corro até o Órion e tiro a lanterna da bolsa rapidamente. – vamos – digo para o cavalo.
   Adentro a floresta com a lanterna em uma mão e a lança na outra. O lobo avança entre as árvores rapidamente e eu corro atrás dele, ele pula entre as árvores, pelo mato e raízes sem dificuldade, o que é diferente para mim.
   — Aonde você vai? – grito. – Ártemis mandou você?
   Me dou conta de que ela não poderia fazer isso, se ela estiver na forma humana. O que só pode significar que ela ainda é uma deusa. Ou o lobo esteve me seguindo esse tempo todo, mas porque só apareceu agora? Não tenho tempo de questionar e continuo seguindo o lobo. É difícil desviar das árvores e olho para trás para ver se Órion está nos seguindo também, e ele parece sentir dificuldade junto comigo.
   Seguimos assim por alguns minutos até às árvores começarem a se separar e ver que estamos entrando em uma área aberta, ao mesmo tempo em que sinto pingos de chuva. Olho para o céu e vejo as nuvens se agrupando e elas giram, como se ameaçasse formar um tornado. Então vejo que saímos em uma clareira na encosta de uma montanha pequena, que se esconde na base das outras. O lobo corre pela pequena clareiras até a montanha e entra em uma caverna. Eu continuo correndo atrás dele sentindo a chuva aumentando e a ventania ficando mais forte.
   Mas assim que entro na caverna apontando a lanterna para dentro, não vejo mais o lobo. A caverna não é muita funda e não tem outra saída, não teria como ele sair a não ser pela entrada. Aponto a lanterna para cada canto, observando tudo, ela é pequena mas o suficiente para que Órion e eu ficarmos sem problema, com espaço de sobra. Ela é alguns centímetro mais alta que ela, e eu não preciso ficar curvada para caber nela. Algumas rochas se agrupam no fundo e uma rocha média fica no meio da caverna.
   Olho para um canto e vejo um amontoado de gravetos, como se alguém estivesse guardando. Ou é muita sorte ou o lobo fez isso pra mim.
   — Obrigada – sussurro esperando que aonde ele estiver, tenha escutado. Uma parte de mim dizendo obrigada também para Ártemis.
   Faço a fogueira e acendo, usando uma blusa para abanar o fogo e atrás da pedra no meio da caverna, para o vento forte não apagar o fogo. Órion e eu nos aconchegamos perto do fogo, enquanto eu como uma laranja e uma banana e ele come uma maçã. Apesar do fogo, está frio e meu corpo está um pouco pesado. Minha garganta agora está arranhada e me arrependo do grito, apesar de me sentir bem melhor, liberei minha fúria acumulada.
   Estou encolhida, com os joelhos no peito, olhando o crepitar das chamas e procurando formas no fogo, algo que me distraia, quando escuto um barulho atrás de mim. O barulho é baixo e constante, contínuo como uma torneira ligada. Aponto a lanterna para lá e vejo o que é, uma fina linha de água cai do teto, vindo de um pequeno caminho que passa por dentro da caverna, a água provavelmente vindo da chuva.
   Pego o cantil rapidamente e corro até lá, como se tivesse achado uma mina de ouro. Sei que ainda é arriscado beber água assim mas é a melhor opção que tenho, ou morro de sede ou de alguma doença. O cantil demorar um pouco encher, e eu bebo a água toda em dois goles longos, ela tem um gosto um pouco estranho, salobra mas não tem cor diferente o que me deixa um pouco aliviada. Deixo encher novamente e guardo o cantil satisfeita e indico o local para Órion, ele vai até a pequena cachoeira e fica com a boca aberta enquanto a água cai na boca dele.
   Eu fico na lateral da pedra, sentindo o fogo nas minhas costas e encarando a entrada da caverna e a escuridão lá fora, a chuva ainda está forte e o vento está a meu favor, fazendo com que a água não entre na caverna. As chamas fazem sombras por toda a chave a, coisas tão abstratas que parecem reais, as sombras me assustam um pouco, mas não deixo esse medo me dominar, já vi coisas mais perigosas, já vi a morte rondando onde eu estive.
   Encarando a chuva percebo a ironia do que está acontecendo. Cresci ouvindo histórias sobre a mitologia ao tempo em que desejava conhecer minha mãe, admirando deuses e heróis, querendo enfrentar criaturas, e partir em missões como Hércules fez. Eu consegui tudo, vi tudo com que sempre sonhei, mas tudo virou de cabeça pra baixo tão rápido que mal consigo respirar, sinto até minhas respiração mais rasa. Parar pra pensar que toda essa mitologia, que todo esse mundo de deuses é real é fascinante e belo, mas nada comparado ao que eu queria.
   Sinto que aceitei a mitologia facilmente, uma parte acho que porque meu pai me preparou pra isso a vida toda, me fez ver tudo com outros olhos, outra parte apenas quer fazer parte disso, quer ser fora do normal, quer explorar e se jogar no destino. Mas a pressão é grande demais, o que meu pai contava ia além das histórias quando eu era criança, agora parte dessa história é minha. Presenciei muita coisa, faz pouco mais de um mês desde que entrei nesse mundo e vi tanta coisa, estou vivendo tanta coisa.
   Com o pensamento correndo, pego a lança da bolsa, como faço toda noite e me aconchego no colchonete, sentindo o calor do fogo no meu rosto, ameaçando me consumir mas ao mesmo tempo me dando vida. Estou sem cabeça para tentar ler o pergaminho hoje, estou sem cabeça para fazer qualquer coisa além de me jogar na escuridão. A lança me dar uma sensação de segurança, me faz ficar alerta mesmo dormindo. Vejo ela como uma arma e como um objeto que me mantém preparada para os perigos que o destino tem para mim.
   Adormeço sem dificuldade, o barulho distante da chuva na caverna e o vento frio e confortante que tem a audácia de entrar na caverna. Não tenho sonho concreto minha mente está pesada, apenas sinto garras negras no escuro, como se alguém tentasse invadir minha mente. Escuto uma voz distante, um sussurro, o tom de voz é grave e parece ecoar em cada parte do meu ser, mas não consigo distinguir o que diz, mas soa como uma ameaça ou um aviso. Vejo penas negras voando no horizonte, um par de olhos negros me observam de todos e lugar nenhum, uma mão grande e forte se ergue mas é puxado por algo, escuto o cintilar de uma corrente. As garras voltam, garras de uma ave, elas cortam minha visão.
   Escuto um barulhos pesados, lentos e demorados. Passos.
   Não é na minha cabeça, é do meu lado, na caverna.
   Me levanto em um pulo, segurando a lança com as duas mãos, giro meu corpo procurando a fonte daquilo. Me viro com a visão um pouco turva ainda de sono, até parar em frente em uma silhueta. A lança está apontada para o peito do que parece um ser humano. Meu coração dar um pulo e um calafrio passa pelo meu corpo, arregalo os olhos e prendo a respiração.
   A pessoa está de frente para o fogo de forma que as sombras lhe cobrem e a claridade forma uma silhueta gloriosa, revelando apenas curvas. Levo segundos para perceber que é uma mulher. Ela está completamente nua e me encarando, com as mãos levantadas.
   Em uma delas ela segura a minha bolsa.

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora