Capítulo 23

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   Tenho quase certeza que vi meu pai.
   Foi por menos de três segundos, rápido demais, e tão inusitado que me pergunto se realmente vi ele. Mas eu o reconheceria em qualquer lugar. E ali estava ele, um vislumbre de seu rosto no ar, rodeado por uma leve névoa espessa. Foi tempo suficiente apenas para que eu o reconhecesse e então sumiu. Ele estava me observando? Como? Meu peito dói, como se socassem meu coração e preciso lembrar de respirar novamente.
   Se for realmente ele, meu pai está tentando me contatar, e de alguma forma quase conseguiu. Mas como ele faria isso sozinho? Não gosto de imaginar o que ele deve estar passando no palácio, e do desespero que deve estar por achar que estou perdida. Só posso confiar que ele consiga se manter seguro, já que ninguém faria nada disso por ele. A última lembrança que eu tinha dele era a nossa despedida antes de eu ir pro acampamento, e achávamos que íamos nos ver em breve. E agora seu olhar me observando de onde quer que esteja, estampa minha mente.
   Esqueço até o que estava dizendo.
   — O que foi? Para onde está olhando? – Agnes pergunta confusa, olhando para o mesmo lugar que eu encaro vagamente.
   Então pisco várias vezes, tentando trazer meu consciente de volta.
   — Não, nada – balbuciou. – o que eu estava falando mesmo?
   — Da sua teoria sobre o paradeiro das asas – Agnes responde mantendo o foco em mim, como fez durante toda minha explicação, que consiste basicamente nessa ideia:
   A deusa Ártemis descobriu que os setes monumentos antigos estavam ligados de alguma forma, e achava que um deles escondia as asas, ou que até mesmo a localização dela mudava entre eles de tempos em tempos. Mas logo após o Matias e sua seita, e agora a Gal e a equipe do suposto festival, duas fitas apareceram no meu braço depois de enfrentar algum tipo de tentação, como um recompensa, que foi o que o Matias citou no templo de Ártemis. Então, seguindo a linha de pensamento, cada um dos setes monumentos antigos é protegido por um pecado capital, sendo o Matias o do orgulho, onde quase cedi pela ideia de ser poderosa, e a Gal representava a Gula.
   E talvez, se eu conseguir passar em todos e receber as respectivas fitas, elas me guiem até onde estão as asas. Mas ao mesmo tempo em que me parece plausível, ainda é muito confuso. Como Ártemis não conseguiu descobrir isso? E se alguém já tiver enfrentado algum pecado? E se não for nos setes monumentos antigos e estiverem agora nos modernos? E se eu fracassar em algum teste?
   Preciso que a Agnes leia o resto do pergaminho, para ter certeza, e temos que agir rápido, pois se essa teoria for falha, tenho que seguir algum outro plano. Reforço na cabeça as palavras de Gal e do Matias, qualquer coisa que eles falaram pode ser útil futuramente e me ajudar a desvendar esse quebra cabeça.
   — Não sei se estou emocionada demais ou isso pode ter algum sentido – concluo após explicar para elas.
   — Não é tão absurdo – Agnes comenta.
   — Sara, deu certo! – Winney grita atrás de mim.
   Me viro para ver ao que ela se refere. Minha amiga está de joelhos ao lado do moço em que a Agnes jogou a adaga na coxa. Me aproximo dele, que ainda está desacordado, mas a ferida em sua perna está fechada, mas não totalmente cicatrizada. Passei um pouco da cera de Apolo que Ártemis mandou na bolsa, e ela parece realmente fazer efeito.
   — Isso é incrível – sussurro.
   — Isso é magia? – Winney pergunta, incrédula.
   — Sim – respondo. – foi feita pelo próprio deus da cura.
   Winney abaixa o olhar por um momento e então observa ao redor, tentando assimilar tudo o que viu e ouviu nos últimos minutos.
   — É a sua mãe quem está fazendo tudo isso? – ela pergunta de repente. – esse lance das asas, os desafios e seja lá o que você falou.
   — Não, se ela estivesse envolvida, seria bem pior – comento. – mas ela é o motivo de eu estar atrás delas.
   — Você disse que ela é a deusa da noite, certo? – Agnes interrompe. – porquê exatamente está indo contra ela, o que está acontecendo?
   — Por que ela amaldiçoou todo o panteão grego e busca punir a humanidade por seus crimes utilizando nossos próprios pecados – digo tão naturalmente que quase abro um sorriso nervoso. – e achar as asas é a única maneira de encontrar os deuses e impedir os humanos de afundarem em uma onda de caos.
   As duas se entreolham com os olhos arregalados e as sobrancelhas arqueadas.
   — Sem pressão nenhuma – Winney comenta.
   — Maldição nos deuses... – Agnes fala consigo mesma, como se repetisse a história na cabeça.
   Tiro o pergaminho da bolsa e entrego a Agnes, para decidir o próximo passo, quando outra pessoa chega perto de nós.
   — Oi – Charles, o rapaz que salvou Agnes, fala ao se aproximar. – desculpa me intrometer, mas, vocês sabem me dizer o que está acontecendo? – ele alterna o olhar entre nós, e é visível a confusão em seus olhos. Ele para o olhar na Agnes. – eu lembro de você, e água, e porque somos os únicos molhados...
   A resposta da Agnes é mais rápida.
   — Você caiu do cais e quase se afogou – ela diz, convicta e direta. – eu te salvei.
   Ele encara ela com a boca semi aberta como se não estivesse acreditando no que ela fala, perdido na própria cabeça para entender.
   — Mas eu não lembro disso e...
   — Claro que não, você comeu até desmaiar e quase morreu afogado – ela rebate. – aliás, vá procurar alguma ajuda médica agora mesmo, pra ver se não aconteceu nada sério.
   Vejo que Winney segura uma risada e morde os lábios para se controlar, e eu observo descaradamente para onde a Agnes está levando o rumo da conversa.
   — E essas pessoas? – ele gira a cabeça para indicar as desacordadas que colocamos sentadas junto da mureta, algumas outras já estão de pé e tentam se localizar na situação, mas nós nos afastamos para que não viessem perguntar nada pra gente. – o que aconteceu aqui?
   — Bêbadas ou chapadas demais – dessa vez é a Winney quem entra na mentira. – você também exagerou um bocado, rapaz. Assim que descansar, vai se lembrar de tudo.
   Ele franze as sobrancelhas e balança levemente a cabeça, ainda se recusando a aceitar. Mas acaba cedendo, por fim. Ele olha pra mim uma última vez, e eu tento fazer minha expressão mais gentil possível, e apenas balanço a cabeça em uma leve afirmação.
   — Ah, tudo bem então – ele diz, com o olhar baixo. – então eu vou indo procurar a ajuda médica.
   Ele puxa um canto da boca em um sorriso fraco e sem graça e se vira, seguindo o caminho para fora do cais.
   — Boa sorte! – Winney diz alto, com um sorriso no rosto, finalmente dando as risadas que tanto segurou. – ele é um gato, e gostoso pra caramba – comenta, forçando o lábio inferior para baixo e arqueando as duas sobrancelhas. – eu pegaria, se já não estivesse comprometida.
   Demoro um segundo a mais para entender a última frase.
   — Como assim comprometida? – Não consigo disfarçar a surpresa. — com quem? Quando? Como?
   Winney faz um biquinho forçado com os lábios, e arregala os olhos, desviando o olhar. Ela tinha muita facilidade para ficar com garotos, mas nunca se comprometia e dizia que não queria isso tão cedo, ainda tinha muito o que viver para então se prender a alguém. E pelo visto, a opinião mudou e eu não consegui acompanhar essa mudança de fase.
   — Então, é uma das coisas que não contei ainda – ela diz. Então abre um sorriso bobo, como se a lembrança lhe trouxesse conforto. – lembra do Marcos?
   Preciso forçar um pouco a memória até lembrar dele, aconteceu tanta coisa nos últimos meses que não lembro direito do rosto dele, mas consigo lembrar onde conheci ele.
   — Sim, o rapaz da lanchonete que fomos – respondo, até sentir um leve calafrio na espinha, pois isso puxou outra lembrança. – no dia em que a noite sumiu.
   — Exatamente, depois daquele dia, nos encontramos outras vezes – ela fala olhando pra mim, mas de repente, seu olhar cai e vejo que seu rosto retrai em um tristeza nítida. Winney engole em seco antes de continuar. – ele esteve comigo quando estávamos afastadas, me ajudando no lance da morte da minha mãe.
   Agora sou eu quem sente a tristeza dela. Eu causei a morte da Srta. Marlin, mas a Winney foi a principal vítima, teve que ficar sozinha e superar isso por conta própria. Sinto que não fiz o suficiente para me reaproximar e me redimir na época. Apenas me isolei em casa e deixei que meu pai resolvesse tudo, até mesmo o processo jurídico envolvendo isso. Não consigo sentir conforto na ideia de que ele esteve ao lado dela, pois deveria ser eu. Mas fico feliz que ela não estivesse totalmente sozinha.
   — Eu... Sinto muito, de verdade – digo baixo, ainda com vergonha e culpada. – mas fico feliz que esteja em um relacionamento.
   — Ele queria vim comigo, por causa da carta, mas não deixei, queria fazer essa viagem sozinha, passar um tempo comigo mesma – Winney não encara meus olhos mais. – mas Sara, tenho mais algumas coisas pra contar, coisas difíceis de entender.
   — Mais difíceis do que isso que estou vivendo? – solto uma risada tímida.
   E Winney também ri baixinho.
   — O que quer que seja, terá que esperar – Agnes se aproxima de nós com o pergaminho aberto. – aqui não menciona nada sobre os pecados capitais, mas menciona uma possível divisão das asas, na teoria de uma caçadora, talvez íris tivesse escondido cada um dos dois lados em locais diferentes.
   — Seria esperto – Comento.
   — Sim – Agnes continua. – e a ordem de exploração dos monumentos antigos, não está por aproximação, e sim poder místico do local. Já temos um novo local para ir.
   — Mais uma viagem? – Winney faz uma cara de enjoo.
   — Para onde vamos agora? – pergunto.
   Agnes levanta a cabeça meio receosa.
   — As pirâmides de Gizé – diz. – vamos pro Egito.

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora