Capítulo 5

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   — Quem é você? – pergunto.
   Minha voz sai mais baixa do que quero, mas firme, ecoando levemente pela caverna. Por alguns segundos apenas o crepitar da fogueira é audível, percebo durante o silêncio que a chuva passou. A mulher apenas me encara e eu faço o mesmo, evitando olhar seu corpo nu. O corpo feminino obviamente não me é estranho, mas sinto um pouco de vergonha ao olhar um alheio tão de perto.
   Ela me olha bem nos olhos, com a boca semiaberta, obviamente pega de surpresa. Seus olhos atravessam o breu com ferocidade, tão potente quanto qualquer outra coisa nela. Eles são castanhos e as sombras parecem contorna-los afim de não ofuscar. Ela é um pouco mais baixa do que eu, questão de poucos centímetros, o que não me faz abaixar a cabeça para olhar diretamente para ela. Seus cabelos também são castanhos, e a luz faz parecer dourado, e descem em ondas leves pela suas costas, e com o fogo atrás de si, ela parece em chamas.
   — Solte isso – digo, mais alto dessa vez, tentando mostrar autoridade. Ela me olha de um jeito estranho, como se quisesse me devorar com os olhos, seu olhar é profundo e cortante, suas sobrancelhas arqueiam por um segundo e então ficam franzidas. Sua boca se abre um pouco, rapidamente e então se fecham.
   O que acontece em seguida é muito rápido. Ela joga o corpo para o lado e ergue a perna na minha direção, o chute acerta em cheio na minha mão e me desequilibra enquanto tento manter a lança na mão. Ela me da outro chute, dessa vez atingindo a parte de trás do meu joelho, me fazendo ceder e caindo com um joelho no chão. A dor do impacto ultrapassa minha perna inteira, ela se vira e sai correndo, com a minha bolsa na mão.
   — Era só o que faltava – resmungo irritada.
   Começo a ir atrás dela. Saio da caverna e olhando rapidamente para o céu vejo que está nublado, e não sei dizer com exatidão se está de manhã ou de noite. Desço a pequena entrada íngreme da caverna a toda velocidade, seguindo a mulher que entra na floresta. Sou rápida e sempre me orgulhei disso, as caçadoras diziam que era uma das minhas vantagens. Mas o machucado na minha cabeça lateja toda vez que o impacto dos meus pés atingem o chão, fazendo um calafrio passar pela minha espinha.
   Corro passando por poças de água, que respingam na minha calça. A floresta está um pouco escura e não deu tempo de pegar a lanterna. A mulher corre entre as árvores rapidamente, cortando caminho e sumindo e reaparecendo entre as árvores. Não sei pra qual direção está indo ou se está me levando a algum lugar, mas no momento não penso nisso, recuperar a bolsa é muito mais importante. Desvio dos troncos e dos galhos baixos, o que me atrasa, e por sorte ela se mantém na minha visão.
   Quando pulo dos troncos caídos e das raízes a dor que atinge minha cabeça me faz resmungar. Minha pernas começam a fraquejar, sinto que não consigo parar por conta pronta e se eu o fizer, eu caio. Passar o dia no cavalo deixou minha pernas mole e mal consigo sentir elas, minha coluna parece prestes a se romper. A mulher corre com um pouco de dificuldade também, mas ela está longe de mim. Ela olha para trás por um segundo, apenas para ver se a ainda estou perseguindo.
   — VOLTA AQUI – grito mesmo sabendo que é inútil.
   Eu penso em jogar a lança nela, mas a probabilidade de pegar em alguma parte dela é pequena, as árvores interrompem e se a arma ficar presa em alguma árvore, perderei tempo tirando ela. Minha respiração começa a ficar rasa e sinto meus pulmões doendo um pouco. Já faz algum tempo que não sinto essa adrenalina. Sinto como se alguém estivesse dando marteladas na minha cabeça, mas não paro de correr, com a energia acima da dor.
   Então vejo um vulto branco de uma direção, ao lado da mulher. E de repente uma pata de cavalo atingem ela em um coice certeiro na lateral do corpo. Ela voa alguns metros antes de bater em uma árvore. O golpe foi tão repentino para ela quanto para mim, e eu me forço a parar, tropeçando alguns poucos metros até conseguir me estabilizar, escorrego no chão liso. Órion sai de detrás de uma árvore e alterna o olhar entre mim e a mulher no chão.
   — Você matou a mulher – grito surpresa e nervosa.
   Nem passou pela minha cabeça chamar o Órion quando corri atrás dela, o desespero de perder ela de vista e com isso a minha bolsa me deixou louca. Mas ele foi mais rápido e apareceu no melhor momento.
   Corro até ela, que está com o corpo tombado na raiz de uma árvore. Logo de cara vejo que nenhum de seus membros está torcido de um jeito estranho, ou seja ela não quebrou nada, pelo menos por fora. Respiro aliviada e me abaixo e coloco o dedo abaixo do nariz com o coração apertado, temendo o pior, mas sinto a respiração dela baixa. Depois coloco os dedos em seu pulso e o sinto, devagar, mas está aqui. Ela não morreu e aparentemente está bem, apesar do coice ter acertado a lateral do seu braço que está muito vermelho e alguns arranhões pelo corpo.
   — Isso vai doer pra caramba – digo analisando o braço sabendo que vai ficar inchado e da dor de cabeça que ela vai sentir quando acordar. Olho para Órion irritada. – Você poderia matar ela e não estamos aqui pra matar ninguém – ele abaixa a cabeça e relincha baixo, até caminhar até a bolsa e empurrar ela com o focinho pra mim, olho de soslaio e com a expressão debochada pra ele. – obrigada.
   Eu poderia simplesmente deixar ela aqui e seguir viagem, mas sou fraca demais pra isso. Ela é a primeira humana em dias que me aparece, então pode haver alguma vila por perto. Mas não faz sentido ela estar nua, e eu começo a imaginar o que aconteceu para ela perder as roupas. Preciso esperar ela acordar e interrogar ela, depois decido o que fazer, ela pode ser minha salvação.
   Vou até a bolsa e peço calcinha e sutiã e alguma roupa, o que ele me dar é um vestido amarelo de alças finas e que o pano se entrelaça no peito. Visto ela com dificuldade, por causa do corpo molenga e pesado, mas depois de alguns minutos cansativos e estressantes consigo. O vestido vai até um pouco acima do joelho e parece se ajustar ao corpo dela. Agora tenho a certeza de que até as roupas que a Ártemis ofereceu são mágicas.
   Peço pra Órion se abaixar e pego a mulher nos braços, coloco meu braço na parte de trás do joelho e do pescoço. Quando tento levantar, a dor que passa pelo meu corpo vindo da ferida na minha cabeça me faz fraquejar e gemer. Então rapidamente jogo o corpo dela em cima do Órion, e ela fica com o corpo jogado nas costas dele. Com a parte de trás virado pra mim e o resto do outro lado. Monto o Órion e fico segurando ela como um animal de caça abatido, ajeitar ela vai demorar e ela pode acordar a qualquer momento.
   — Vamos pra caverna – Órion não corre, mas a velocidade em que ela caminha faz ela deslizar e eu tenho que ficar puxando a mulher.
   Chegamos na caverna em pouco tempo, apesar de que correndo pareceu que fomos longe. Desço na entrada da caverna e entro caminhando ao lado de Órion, paramos ao lado da pedra que fica no meio e eu tiro o corpo dela de cima do Órion. Acabo cambaleando com o peso e as pernas arrastam no chão, enquanto o rosto dela fica no meu ombro. Ela tem a pele macia e os cabelos longos, que vão até o meio das costas. Arrasto ela até a pedra e a deixo sentada.
   Olhando pra ela adormecida parece uma pessoa indefesa, mas lembro dos chutes que ela me deu, sabendo como me atrasar. Então tenho que amarrar ela para evitar que algo assim aconteça. Vou até a bolsa e peço o que não pedi até agora, uma corda, até sentir o objeto se enroscando nas minhas mãos. Puxo ela e a corda está enrolada, presa com um tipo de arame fino no meio. Desenrolo e começo a amarrar a mulher na pedra, com a corda passando pela barriga e indo até o peito, e então percebo que ela também é mágica. Quando mais eu puxo e preciso, mais a corda se estica, de acordo com minha necessidade. Faço isso várias vezes até garantir que ela está bem presa e faço um nó na parte de trás da pedra.
   Então me sento na entrada da caverna, observando a floresta e comendo uma maçã e duas bananas. O machucado na minha cabeça incomoda, ela pulsa em ondas doloridas. Ainda sinto meu peito acelerado e a cabeça a mil. Penso em como ela me distraiu fácil e começo a sentir peso na consciência, sinto que não estou preparada. E que poderia ter sido pior, ela poderia ter me matado enquanto eu dormia ou ter pego a lança quando me chutou.
   Sei que não sou a mais apta pra essa missão, e isso agora me incomoda, porque quando finalmente encontro alguém, acabo cedendo pela surpresa, onde não deveria abaixar a guarda. Com o sentimento, a raiva começa a brotar dentro de mim, mas não posso mais ser impulsiva. E então de repente na minha cabeça vem o sonho que tive, lembro vagamente, poucos detalhes, recordo uma voz, penas negras, barulhos de correntes, alho tão distante e irreal que faz meus pensamentos arranharem.
   Lembro das visões que eu tive quando a Nix virou humana, tive cinco delas, todas diferentes mas envolvendo as mesmas pessoas. Exceto uma, que só apareceu uma vez, o homem que apareceu e matou meu pai na visão que eu tive na escola, e com o choque da cena, meu pai disse que eu quase destravei meus poderes. Lembro da sensação, do medo e de algo dentro de mim, querendo me consumir e explodir, lembro do meu pai sendo morto, mas não lembro bem do homem que fez isso, como se a imagem fosse borrada na minha memória, como se minha mente tentasse apagar.
   Mas pensar nisso faz algo se contorcer dentro de mim, no fundo do meu ser sinto algo, um vazio mas ao mesmo tempo grande. Tanta coisa aconteceu de um mês pra cá que me esqueço que ainda não entendo nada do que eu vivi. Que minha vida foi corrida e tão surpreendente que deixei para trás as minhas antigas questões em busca de novas, sem saber pra onde ir, o que fazer e quem ser. Preciso me redescobrir e me entender, e não tenho nem noção de por onde começar.
   Antes de saber quem era minha mãe, eu desconfiava, porque no fundo eu quero que fosse verdade. Não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que não era nada normal, sabia que tinha algo mais surreal escondido atrás das cortinas, e ver tudo com esses olhos desde criança me fez aceitar bem. Nunca quis deixar essas histórias para trás como coisas de criança, porque eu sabia que aquilo era o que meu pai estava deixando para mim e eu queria levar. Só não sabia o que aquilo significaria pra mim, ser filha de uma deusa poderosa e a vilã da vida.
   Um bom tempo se passa, sei que estou perdendo tempo, eu já estaria longe uma hora dessas se não estivesse esperando a mulher acordar. O sol já se levantou alto no céu atrás da nuvens cinzas que parecem não querer sumir. Me levanto decidida a acordar ela com socos, quando me viro meu coração vai parar na garganta com o susto. Ela está acordada e me encarando, seus olhos abertos ameaçadores, lhe dando uma beleza perigosa e fria.
   Ela é bela, tem o rosto e o nariz fino, uma mancha de sangue sai da boca, mas nada demais. Ela acompanha meus movimentos com o rosto fechado, até abrir um pequeno sorriso irônico.
   — O que foi? – pergunto franzindo as sobrancelhas.
   Ela abaixa o olhar e olha para a corda que se perde na pedra atrás dela.
   — Essa é a primeira pergunta que vai me fazer? – pergunta a mulher, com a voz rígida e um pouco rouca, ela fala um pouco embolado e rápido, arrastando as palavras. – Porque não me matou ainda?
   — O que? Não... Eu... – acabo me atrapalhando. O tempo todo fiquei encarando ela e a pergunta me atingiu de surpresa. – Olha, não sei quem você, mas tentou me roubar, então não me deixe irritada.
   Forço a voz e tento manter ela rígida, como a general Tânia fazia com tanta naturalidade quando dava uma ordem. Por um instante lembrar nela faz meu coração gelar e a cena das caçadoras no acampamento atravessa minha mente, mas não posso deixar isso me dominar agora. A mulher franze a sobrancelha confusa e abre um pouco a boca, como se estivesse ouvido algo peculiar, ela inclina levemente a cabeça me olhando.
   — Então comece novamente – diz tirando a expressão confusa do seu rosto e voltando a manter ele neutro. A boca dela é carnuda e quando seus lábios se tocam, parecem cheios.
   — Quem é você e de onde veio? – pergunto fazendo o mesmo e me mantendo séria, dou até uns passos para mostrar que estou no controle.
   Ela se meche levemente e uma expressão de dor passa pelo seu rosto, ela contrai o corpo e range os dentes, fechando rapidamente os olhos.
   — Eu ficaria mais confortável sem essa corda – ela diz, até olhar pro lado direito do corpo, onde levou o coice. – que dor maldita é essa?
   Eu fico com pena dela, a dor deve estar enorme e a corda não colabora, e nem a pedra dura atrás dela. Mas não posso ceder agora, preciso mostrar firmeza e que não estou brincando. Lembro dela roubando minha bolsa e no mesmo momento a raiva parece explodir dentro de mim só de imaginar perdendo ela. Me aproximo dela e ergo a lança com a ponta perto de tocar o pescoço dela. Ela vira a cabeça na minha direção e vai levantando o olhar pela lança até chegar no meu rosto, com os olhos arregalados e a boca fechada, surpresa por eu ter feito isso.
   — Responda a pergunta. – digo mantendo a voz alta.
   — Também me pergunto isso a dois dias – ela responde depois de um tempo.
   A resposta me pega de surpresa. E eu abaixo a guarda por um segundo.
   — Como assim? – pergunto.
   — Não sei quem sou e nem de onde vim, estou tão perdida quanto você.
   Dois dias é o tempo em que fugi do ataque ao acampamento e vaguei pela floresta. Desde que a minha mãe ordenou o ataque ao Olimpo e se o que a Ártemis disse for verdade, a maldição foi lançada. A possibilidade dela não se lembrar de nada desde essa mesma quantidade de dias faz várias teorias invadirem minha cabeça. Um calafrio passa pelo meu peito ao imaginar o que pode estar acontecendo, mas ainda é só uma chance, não vou me precipitar.
   — Não minta para mim – ordeno.
   — Você não saberia o que é verdade ou não – ela arqueia uma sobrancelha me intrigando.
   — Então me convença de algo – aproximo a lança ainda mais, tocando a ponta no pescoço.
   — É uma história simples – ela começa. – eu acordei na floresta a dois dias atrás, no meio da noite, completamente nua e sem noção de quem era ou de onde estava, eu vaguei todo esse período atrás de alguém que pudesse me ajudar – percebo que enquanto fala ela puxa a língua e mantém sempre a atenção em mim e o rosto sério. – até que encontrei você protegida nessa caverna e...
   — Você não parece alguém desesperada – digo.
   — Eu perdi minhas memórias, mas não sou burra – ela logo rebate. – tem muitos animais fáceis de se pegar nessa floresta, no desespero a gente se torna o que precisa ser.
   — E então se tornou uma ladra no desespero – bufo.
   — Você ainda não entendeu a gravidade da minha situação não é? – ela fala como se eu fosse burra. O ar de superioridade que ela tenta dar é forte, o que me faz achar mais parecido com o jeito de um deus.
   — Você poderia ter me acordado – digo.
   — Você estava dormindo com uma lança – ela agora me olha com desdém, puxando a boca para trás e levantando levemente a ponta das sobrancelhas. – como eu saberia que não era uma doida que iria me matar na primeira oportunidade?
   Até que faz sentido, mas não digo isso em voz alta. Ela espera que eu fraqueje, mas não sei o que fazer, não sei o quanto dessa história é mentira ou não. Eu olhei no mapa e não vi nenhuma vila por perto, e ela não parece louca o suficiente pra se jogar floresta a dentro completamente pelada. Ela conseguiu se virar dois dias na floresta sozinha, enquanto eu só consegui graças aos itens da Ártemis.
   Mas para alguém que acordou de repente sem memória nenhuma, ela se deu muito bem. Como se já tivesse experiência ou soubesse o que fazer para sobreviver. Tento me colocar na situação dela, se fosse eu, não iria ficar lamentando, eu teria que me virar para sobreviver e torcer para que me encontrassem ou eu encontrasse alguém. O fato dela não enrolar ao contar, como se não tivesse que explicar tudo e alongar a história me faz acreditar nela de certa parte.
   Ela é uma mulher bela, com traços sinuosos e fortes, ela transmite confiança, mas algo no olhar dela me diz que parece ser faixada, eles são belos, mas fundos e tem certo brilho triste. Em nenhum momento ela para de me encarar, como se me analisasse, ou buscasse em meus rosto algum traço de confirmação de que eu acredito em sua história. Mas apesar de tudo, ela não demonstra medo, como se soubesse que eu não teria coragem para fazer nada contra ela, e isso me deixa irritada.
   — Você está mentindo – digo. Colocando a lança novamente em seu pescoço, dessa vez apertando um pouco até sentir que está quase entrando, e que qualquer movimento brusco que ela fizer, pode ser fatal.
   — Ai – ela abaixa o olha até a lança, logo em seguida olha pra mim, parecendo irritada. – Não posso provar nada presa aqui – ela diz. – mas se te faz sentir melhor, eu poderia ter te matado enquanto dormia.
   O choque de realidade me atinge, eu estava tão cansada que poderia realmente ser pega desprevenida enquanto dormia. Eu poderia ter morrido hoje e nem saberia o que me atingiu. Não permito demonstrar minha insegurança, então mantenho o rosto neutro e fecho mais a cara, apertando os olhos em uma expressão irritada.
   — Você poderia tentar – falo com convicção, sabendo que no fundo minhas chances eram poucas. Apesar do treinamento estava escuro, e o barulho da chuva realmente me jogou em um sono profundo. Suspeito agora que só acordei por conta do sonho estranho que tive.
   A mulher muda a frieza do olha, ela parece desprender algo no seu modo de me encarar. Ela contrai os lábios, molhando-os e então fecha os olhos por um segundo e respira fundo, onde sinto o movimento do seu pescoço na ponta da lança.
   — Eu sobrevivi dois dias na natureza à própria sorte, sem ter noção de nada sobre quem sou – ela diz com a voz baixa, como se falasse mais pra ela do que pra mim. – não achei que a primeira pessoa que eu encontrasse iria me matar.
   — Você tentou me roubar – digo tentando digerir as palavras dela. Mas de certo modo me vejo nela, também estou perdido, jogada a própria sorte, mas em comparação a situação dela, eu estávamos passos à frente. – se conseguisse, eu estaria tão ferrada quanto você.
   — Então somos apenas duas vítimas – ela rebate.
   Meu coração bate rápido toda vez que ela fala, como se eu tivesse que planejar um roteiro para o que responder. Dois lados meus lutam para decidir o que considerar dessa história, se acredito ou não. Não sei o quanto disso é verdade, mas não posso julgar tudo se eu não presenciei nada. Talvez no lugar dela, outra pessoa também não entenderia. Além de que a história dela bate muito bem com os acontecimentos dos últimos dias. Ela apareceu perdida na floresta, nua e sem memória alguma, ela não inventaria nada disso se fosse uma humana normal, ela não sabe sobre a maldição.
   Começo a tentar encaixar as peças, sobre a possibilidade do que eu estou pensando ser verdade, se ela é uma deusa ou não. Ainda estamos nos domínios da floresta do acampamento, acho eu que ainda é território protegido pelas caçadoras. O que pode ser uma pista, um local sagrado, faria sentindo uma deusa por aqui. Nunca vi ela, mas sei que não vi todos os deuses, nem metade deles, e sua beleza é surreal, com o olhar frio e expressão poderosa, algo característico de uma deusa.
   Mesmo se for, pode ser alguém do olimpo ou apenas uma deusa menor e esquecida. Começo a temer que eu esteja considerando isso por querer que seja verdade, por achar que uma deusa pode ser uma salvação pra mim, e não estar sendo racional e ver ela como realmente se mostrou pra mim, uma ladra e que até onde sei pode ser mentirosa. Perdidas em meus pensamentos, percebo que estava encarando os lábios dela e que abaixei um pouco a guarda. Mas ela não fez nada, apenas me olhou viajar dentro das minhas próprias dúvidas.
   — Se te faz segura – ela diz. – me mate agora. Tentei de roubar, isso pra você deve ser um crime imperdoável – sua voz soa pesada, mas sinto a acusação.
   Sei que ela está brincando comigo, está querendo me manipular. Ela sabe que se eu a quisesse morta, teria feito isso enquanto ela estava desacordada ou a tinha deixado abandonada na floresta. A raiva que sinto dela ainda está em mim, mas não sinto vontade de fazer nenhum mal contra ela. Eu poderia simplesmente deixá-la desacordada, tirar a corda que a prende e ir embora, mas ela voltaria a estaca zera e eu não me perdoaria.
   Não tenho que me responsabilizar por ninguém, mas se eu estivesse em seu lugar, não tenho certeza se iria sobreviver. Ela tentou me roubar porque precisava, o quanto ela tem que pagar por isso? A frustração me deixa cansada, começo a pensar o quanto deixo meu sentimentalismo interferir em meu julgamento. Como o fato de que ela pode não ser confiável e no primeiro momento em que eu a soltar, ela consiga o que vejo fazer. Se a levar comigo, ela pode me trair e roubar a bolsa. E de maneira alguma eu posso deixar isso acontecer.
   — Você duvida de mim? – pergunto.
   — Seu cavalo já fez metade do serviço – diz desviando olhar para o Órion na entrada da caverna, irritada e com dor. – uma mulher tão corajosa não hesitaria em perder seus bens. Faça!
   A brincadeira que ela faz com a minha mente, só me deixa irritada e confusão de pensamentos e questionamento me faz querer agir por impulso, mas já me arrisquei demais fazendo isso. Seu jeito sarcástico de ser só me deixa mais próxima de tomar a decisão mais maldosa, ela espera que eu ceda, mas não vou fazer. Não posso arriscar tanto por alguém que acabei de conhecer, e não foi de um jeito bom. As probabilidades se estendem em várias direções, mas tenho que escolher a que me beneficiar no momento.
   Essa não sou pensando, não me sinto mais a garota ingênua que era, que tinha vergonha até de apresentar um trabalho para a própria turma. Eu vi coisas, senti coisas e sei que tem coisas acontecendo que até meses atrás eram lendas distantes. Agora estou prestes a tomar uma decisão difícil, mas que me mantém segura.
   — Você vai morrer – digo, movo a lança devagar fazendo um pequeno corte de dois centímetros em seu pescoço. – mas não nas minhas mãos.
   — O cavalo vai terminar o serviço? – diz ironicamente, mas não mordo a isca e mantendo a mesma força na voz e postura de decisão.
   — A natureza vai – digo girando a lança e colocando a parte de baixo na minha frente. – você vai dormir de novo, e quando acordar, espero que ache o seu caminho, e que a próxima pessoa que você encontrar não seja tão piedosa.
   Esse é o meu plano, deixá-la inconsciente, tirar a corda, fugir e tentar esquecer que me encontrei com ela. Mas sei que isso vai ser difícil, e que vai se tornar mais uma nuvem na tempestade na minha cabeça, mas um demônio para ver a todo momento. Pretendo deixar algumas frutas e a lanterna para ela, era o mínimo que eu poderia querer em seu lugar.
   — Vai me deixar viver, mas vai me largar aqui? – ela arqueia as sobrancelhas, fingindo surpresa. – Uau, você é pior do que eu pensava.
   — Você me irritando só facilita o trabalho – digo, erguendo a lança para trás, pronta para desferir um golpe. Reúno forças e tento não imaginar que irei atingir um humano na cabeça apenas pra deixar inconsciente.
   — Tudo bem – ela diz. – caçadora de Ártemis.
   Essa última frase parece me atingir como uma bola de demolição. A menção as caçadoras e a própria Ártemis me surpreendeu. Então começo a pensar que minha teoria estava certa e ela é realmente uma deusa. Abaixo a lança surpresa, ainda tentando entender se ouvi o que ela realmente disse. Pisco os olhos várias vezes, franzo as sobrancelhas confusa e balbucio alguma coisa antes de formar uma frase.
   — O-O que? – gaguejo. – como vo-você sabe?
   Ela olha para mim e depois joga o olhar para a bolsa presa no Órion.
   — É o que está escrito naquele broche.
   Vou até a bolsa e analiso o medalhão preso na bolsa. Ele é médio e tem um arco e flecha apontado, com as quatro fases da lua ao redor, embaixo tem algo escrito mas está em grego, o que eu não sei o que diz, mas ela sabe. Ela leu em grego o que está aqui, e pelo visto diz “caçadora de Ártemis”. O que me lembra da minha quinta visão, onde Hemera mostrou um pergaminho para a Nix na forma humana e mesma assim ela conseguiu ler, como se a língua estivesse fincada em seu cérebro, não é algo de magia, é só um aprendizado, e ela não perdeu isso.
   Se a mulher conseguiu ler isso, ela sabe grego, o que me leva a acreditar mais ainda na possibilidade dela ser uma deusa.
   — Você sabe grego? – pergunto ainda confusa.
   — Parece que sim – ela responde ainda com a expressão despreocupada.
   — E caçadora de Ártemis significa algo pra você?
   — Acho que não – ela diz franzindo um pouco as sobrancelhas, como se estivesse pensando, tentando lembrar de algo. – mas não me é estranho, é alguma empresa, ONG ou ...
   Eu não sei o que pensar, não consigo organizar meus pensamentos, mas sei que isso é um bom sinal, na medida do possível, ela pode ser quem eu espero que seja. Não uma deusa específica, mas qualquer deusa. Queria que a menção à Ártemis desencadeasse suas memórias, mas não é assim que a maldição funciona. Mas só o fato de ela ter uma leve sensação sobre isso, significa que ela já ouviu falar.
   Pelo menos é no que quero acreditar, estou tão desesperada que qualquer coisa vai me deixar cega? Ela pode ser uma deusa, ou não, sua personalidade é de alguém que não se importa com muita coisa, os deuses são assim, então porque ela na forma humana seria bom pra mim? Tenho que pensar bem antes de tomar alguma decisão, pra não ter mais um arrependimento nas costas.
   Pego o pergaminho na bolsa, falando baixinho o nome do objeto. A mulher me olha curiosa, como se eu tivesse que dar mais explicação sobre o que eu descobri.
   — Você consegue ler isso? – pergunto mostrando o pergaminho diante dela.
   Ela repassa os olhos por toda a folha, mas eu não abri todo, não sou tão burra assim. Apenas um trecho, para ter uma confirmação. Ela analisa, franze levemente as sobrancelhas, como uma juíza analisando as provas de uma crime, fecho o pergaminho segundos depois, o suficiente pra ela me dizer o que eu espero ouvir.
   — Isso parece uma lista – ela diz ainda tentando absorver a informação. – de algo dentro da bolsa – uma lista? Penso surpresa, mas lembro que não abri o pergaminho todo e isso pode ser só a ponta do que tem nele. Então a Ártemis deixou para mim uma lista de itens que tem na bolsa! Isso já é um começo. – seu nome é Sara Sintuell, e essa é uma missão a mando da deusa Ártemis para procurar as asas de íris. Seja lá o que quer que isso signifique.
   Preciso de uns segundos para tirar o impacto das palavras dela. Ela parece um pouco confusa, abre a boca por um instante para falar algo, mas desiste, prefere ficar com suas dúvidas, como se o que tivesse escrito não fosse verdade. Eu não esperava que nesse trecho tivesse tanta informação, tão detalhado. Me pergunto se o resto dos textos são assim.
   — Olá, Sara – ela diz com um sorriso no rosto.
   No começo parece de deboche, mas logo se mostra como se ela tivesse algo para oferecer e tivesse tentando vender pra mim. Mas ainda assim é um sorriso bonito, e um frio passa pelo meu coração rapidamente quando ela diz meu nome com cordialidade. Ela é atraente, e parece ter um tipo de olhar a cada momento, o que é intimidador.
   Mas me deixo ceder mais do que o necessário, isso é demais pra mim. Estou na melhor posição aqui, e sei que devo ter controle. Tento não pensar muito, sei o que posso fazer, o acordo que posso oferecer, mas temo pelas consequências. Estou perdida como ela e não sei quando vou achar uma civilização, e preciso da tradução do pergaminho quanto antes. Mas também sei que oferecer algo é correr o risco de ser traída.
   Ela provou falar a verdade, ela ler em grego e falou exatamente o que está no pergaminho, então porque não dar um voto de confiança? Não sei se ela aceitaria um acordo depois de ter feito o que fiz. Demoro alguns poucos minutos olhando para ela, analisando cada probabilidade, e percebo que não sai muitas. A questão não é tão difícil, e sim as consequências depois que não sei se terei cabeça pra lidar.
   — Acho que estamos pensando na mesma coisa – ela diz de repente. – então o acordo é o seguinte, eu traduzo isso daí pra você, e você me ajuda a sair dessa floresta.
   Semicerro os olhos rapidamente, é um acordo simples, então tento não colocar muitos defeitos, apesar de ter vários.
   — E porque você acha que vou confiar em você? – pergunto.
   — Porque eu também vou confiar em você – ela responde. – tenho certeza que você não vai baixar a guarda nenhum segundo – considero a resposta dela, e começo a ceder, cansada demais para pensar em outras soluções ou em um bom argumento. – agora que nossos interesses se alinharam, não vejo motivos para briga, se você pode me levar pra algum lugar, porque lutar por isso? — ela continua. – e tem aquele cavalo, ele me mataria se eu tentasse algo, como quase fez – ela lança um olhar furioso para Órion atrás de mim.
   O cavalo relincha, como se confirmando o que faria. Respiro fundo e me permito ceder, ela tem razão, preciso traduzir esse pergaminho, não sei se no primeiro local que eu encontrar conseguirei meios para traduzir, e até que eu encontre, pode ser tarde demais. Tudo que tenho que fazer é levar ela comigo, até a próxima civilização, lá posso deixa-la e partir para a minha missão. Fazer isso não é o difícil, o complicado vem depois.
   E se ela realmente for uma Deusa, preciso fazer com que ela recupere suas memórias e seus poderes, serão bem mais úteis e pode facilitar meu trabalho. Não confio nela o suficiente para me dar por conquistada, mas se ela for alguém de quem eu penso ser, ela irá querer vingança contra a Nix, e será fácil pedir ajuda. Ler o pergaminho pode trazer algum gatilho que reative suas memórias. Então tomo a única decisão possível no momento.
   Giro a lança e bato com ela no chão, como um juiz batendo o martelo no tribunal.
   — Tudo bem – digo com a cara fechada e a voz dura. – mas fique sabendo que no primeiro sinal de traição minha lança atravessa você – ela não expressa nenhuma reação. – quero a tradução do pergaminho até o nosso destino, chegando em algum lugar cada uma segue seu rumo.
   Ela encara meu rosto e abaixa o olhar por um segundo, até decidir algo e assentir.
   — Tudo bem, Sara – diz. – seus meios, suas regras. Acho que isso é um começo de uma boa parceria.
   Ela escolheu as palavras com cuidado, colocando parceria ao invés de amizade e boa ao invés de bela. Ela está tão disposta a seguir com isso tanto quanto eu. O que acontecer de agora em diante vai ser improvisado. Como se já não tivesse sido assim até agora. Evito um sorriso de satisfação ao perceber que agora as coisas vão tomar rumo, e que por mais que seja uma companhia estranha e nada confiável, não precisarei ficar sozinha.
   — Fechado... – e é quando percebo que não sei o nome dela, em nenhum momento me ocorreu perguntar. Não sei se a maldição deixa os deuses com o mesmo nome. – qual o seu nome?
   Ela parece ter sido pega de surpresa pela pergunta, ela abre um pouco a boca tentando achar alguma resposta, seus olhos vasculham o nada em busca de uma reposta, mas parece não encontrar.
   — Eu não sei – diz.
   Não sei como a maldição funciona, mas parece que até isso é apagado. Tento pensar em algum nome, gosto disso, de dar nome pras coisas, como fiz com Raven e Órion. Ela é bela, tento trazer na minha memória, mulheres da mitologia que se destacaram pela beleza, sei que isso é superficial da minha parte, mas não consigo pensar muito agora. Até que o nome Helena surge na minha cabeça, não a minha amiga, a da história de Tróia, que causou a guerra. Acho que também seria uma boa maneira de homenagear a mulher que talvez tenha arriscado a vida por mim.
   Lembrar dela faz minha visão ficar borrada com as lágrimas, mas não deixo cair. Meu coração se aperta e sinto como se eu fosse explodir de ansiedade. Mas não posso ficar triste agora, tenho que pensar que ela está bem, e sobreviveu ao ataque.
   — Podemos te chamar de Helena – digo rápido, para a voz não falhar com as lembranças que tive. – é um nome bonito e remete à...
   — Não – ela diz com as sobrancelhas franzidas, e a expressão de como se eu tivesse ofendido ela. – não sou nenhum animal pra você colocar o nome que quer.
   Arregalo os olhos com a audácia, e já começo a me arrepender de ter concordado em ajudar ela. Mas não posso julgar ninguém, também sou ignorante, apesar de tentar mudar isso sempre. Nunca leva a nada ser explosiva.
   — Se vamos ficar juntar, vamos evitar irritar uma a outra.
   Ela parece não se importar com o que eu digo e isso me irrita ainda mais. Bufo frustrada e prestes a desistir de qualquer acordo que eu tenha com ela. Seus olhos encaram algum ponto até que ela olha pra mim com os olhos cheio de confiança e certeza.
   — Agnes, pode me chamar de Agnes.

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora