Capítulo 22 - Wesley

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                               |Wesley|  
  
   Sair do sono é como escalar um poço.
   Vejo a luz acima, mas quando tento escalar, caio de volta para a água. As paredes de pedra são escorregadias e a minha própria respiração abafa os ouvidos. Tento abrir os olhos, mas sou puxado de volta. Não consigo manter um pensamento ou me mexer de forma alguma. Isso se mantém por muito tempo, mas quanto tempo? Horas? Dias? Semanas? A escuridão conforta mais do que assusta, mas ela também rasga se eu insistir demais. Sinto um formigamento em algum lugar do corpo, meus músculos relaxados voltam aos poucos e a neblina na minha cabeça dissipa.
   E então desperto.
   Consigo abrir os olhos mais do que um segundo, mesmo que com dificuldade. Minha vista borrada não me permite ver demais, mas já enxergo algo além do escuro. Não tenho discernimento de onde estou ou o que aconteceu, e minha mente ainda está distante para pensar em algo. Jogo a cabeça para o lado, e vejo que estou deitado em uma cama, e um lençol de cetim azul me cobre. Mexo meu braço e eles tremem um pouco, mas não tenho tanta dificuldade, então mexo o outro. Meus músculos estão adormecidos, então tento esticar e contrair, para ver se consigo ganhar mais energia.
   Um tempo fazendo isso, meus pensamentos começam também a se agrupar. Lembro de uma mulher com as mãos brilhando, um livro e um rapaz de roupas negras. Uma sensação de dor dilacerante perpassa meus sentidos, e involuntariamente eu mexo o pé. Consigo juntar forças para me apoiar pelos cotovelos e olho ao redor novamente. Minha vista está borrada, mas não por alguma dor, e sim por quê estou sem meus óculos, e mesmo assim percebo que estou no meu quarto. Ou o quarto que Nix me determinou em seu palácio.
   Mas como vim parar aqui mesmo?
   Algumas coisas passam a fazer sentido em minha cabeça. A deusa Hécate esteve aqui, ela tentou entrar no quarto de Nix, algo deu errado e o escudo avançou até minha perna. Ah, droga! Assim que lembro disso, reúno um pouco de força para tirar o lençol do resto do corpo, e além do fato de eu estar pelado, olho diretamente para meu pé. E me surpreendo com o que vejo, ele não está mais como na hora do incidente. Da última vez que eu vi, estava com a carne chamuscada caindo com osso exposto, completamente deformado e sem jeito. Mas agora está normal, apenas com algumas cicatrizes leves, que serpenteiam como veias, mas quase que de forma imperceptível.
   Eu mexo o pé, e sinto apenas um leve desconforto, que não chega a ser uma dor, e suponho que seja apenas pelo modo que ele ficou parado. Me arrasto pela cama e sento na beirada dela, tentando continuar a linha de raciocínio. O livro impediu o escudo de avançar sobre mim, e depois Hécate apareceu e lançou algum feitiço de cura no meu pé. Por isso eu estou tão sonolento, ela avisou que o feitiço causaria isso.
   Mas onde estão os dois? Eles conseguiram entrar no quarto?
   Não tem ninguém além de mim no quarto, então tiro o lençol do corpo sem me preocupar em estar pelado. É uma sensação perturbadora apenas eu aqui, sem a Sara e agora sem o Raven, deve ter acontecido algo importante para ele não estar comigo, como Nix ordenou, e ele cumpriu nos últimos dias. Será se ela descobriu que tentamos invadir o quarto? Não pode ser, eu nem teria acordado se fosse isso. Coloco os pés no chão, o que estava machucado primeiro, um dor fina sobe pelo osso da perna e meus dedos se retraem. Então tento novamente e me levanto de uma vez, minha perna treme por um instante e fica rígida logo em seguida. Se não fosse pela magia de Hécate, eu perderia o pé sem dúvidas.
   Começo a caminhar lentamente até o banheiro do outro lado do quarto, minha cabeça gira um pouco, mas não por conta de dor, sinto que estou apenas um pouco dopado. Consigo chegar no banheiro, faço minhas necessidades e logo vou tomar um banho, a água gelada me desperta ainda mais, e só consigo banhar parte por parte, o frio não deixa entrar completamente no chuveiro. Me olhando no espelho, vejo que estou até melhor do que da última vez que me lembro, as olheiras sumiram, minha expressão não está mais enrugada e meu cabelo antes duro, está até macio.
   Quando procuro a toalha, me dou conta que não peguei quando vim pra cá, nem pensei nisso. Então saio do chuveiro pra ir procurar uma dentro do grande guarda roupa, mas sou interrompido. A porta se abre levemente, e uma mulher alta entra no quarto.
   — Uau – Hécate entra carregando o livro enorme nas mãos, ela me vê pelado apenas um segundo antes de eu tampar minhas partes íntimas com as duas mãos, desajeitadamente.
   Sinto minhas bochechas esquentando e sei que estou corado, me esguio um pouco, afim de cobrir ainda mais do corpo. Ela abre um sorriso de canto de boca, percebendo minha vergonha.
   — Parece que você está bem – ela diz passando o olhar de cima a baixo e caminhando até a cama. – e muito bem de saúde – enfatiza ironicamente.
   — Poderia fechar os olhos, por favor? – balbucio, quase implorando.
   Ela apenas revira os olhos e ergue as mãos na minha direção, em um gesto de desdém. Uma pequena ventania e uma sensação de calor perpassa meu corpo, um brilho intenso cobre ele por um instante e então estou vestido. Usando uma camisa de seda azul, uma calça jeans e um sapato de couro preto. Uma combinação estranha e nada parecido com o que eu vestiria, mas foi o que Hécate fez surgir em mim.
   — Deuses não batem na porta?
   — Achava que ainda estava adormecido, não precisava de todo esse drama, eu já vi mais impressionantes – ela diz, colocando o livro na cama e abrindo.
   Não sei o que responder, ainda estou constrangido e tenho certeza que se tentar falar algo, acabarei me atrapalhando. Então espero que ela mude de assunto, enquanto vou até onde a deusa está, mudando meus pensamentos. Hécate usa um vestido roxo e dourado, enfeites pequenos de caveiras e espinhos de ossos de projetam no colar e nas ombreiras do vestido. Seus ornamentos e expressões caem bem em seu tom. Analisando Cada deusa que já vi, cada uma exala algum tipo de essência; Hemera domina a elegância, Nix desperta o medo, Ártemis emiti confiança e Hécate inspira conhecimento.
   — Onde está o Raven? – pergunto, chegando próximo dela, tentando recompor a voz.
   — Foi buscar algo para mim – responde. – ou melhor, para você.
   — Para mim? O que é? – digo confuso.
   — Você verá quando ele chegar – a deusa abre o livro e ergue as mãos sobre ele. – agora temos outras coisas para resolver.
   Das páginas do livro aberto, uma leve luz púrpura começa a surgir das páginas, linhas pretas saem da folha e se misturam no ar, formando frases. Mas está em outra língua, não consigo entender, mas não só pelas palavras, está muito confuso ainda.
   — Ontem nosso plano foi um sucesso, conseguimos entrar no quarto de Nix – ela começa enquanto mexe as mãos para lá e para cá, movimentando a magia que surge do livro. Percebo por sua fala, que estive adormecido por apenas um dia. – tivemos que ser rápidos, mas consegui o que buscava.
   — Que era?
   — Os ingredientes necessários para criar a maldição – ela responde rapidamente, um sorriso se abre em seu rosto. – e com o que li no livro, nossas chances subiram em setenta porcento de conseguir recriar.
   — E os outros trinta por cento?
   Ela vira o rosto pra mim, sem perder a empolgação.
   — Fracassamos e somos pegos pela noite – diz.
   O que faz meu corpo estremecer e eu engolir em seco. Sempre soube que tinha essa possibilidade, mas Nix parece estar bem ocupada, por enquanto tenho que fazer algo também. Imagino que na primeira presepada que acontecer e der tudo errado, Hécate será a única que poderá se proteger e não fará nada por mim ou Raven. Mas isso é problema para outra hora, foco nos avanços que estamos tendo.
    — Então o que descobriu? – pergunto, passando o olho pelas anotações projetadas no ar.
   — Não muito, mas os estágios iniciais são promissores – ela continua. – tudo isso aqui são os ingredientes necessários para recriar a maldição inicial, e a partir dela, vamos para a última modificação feita. Alguns ingredientes consegui pegar do quarto dela, outros consigo encontrar no submundo, como as águas do rio Lete.
   Puxo da memória o que sei sobre os rios do submundo, o mencionado pela deusa é o rio do esquecimento, desde eventos específicos até uma vida inteira.
   — Faz sentido, um dos principais focos da maldição é os deuses esquecerem quem são – comento.
   — Sim, Hades utilizava nas almas mais perturbadas ou propensos a confusão, era meio que um ato de misericórdia, esquecer as dores de uma vida sofrida – Hécate continua. – mas mexer com os rios de lá é perigosos até para deuses, exige cuidado e conhecimento.
   — E você vai conseguir usar a água desse rio?
   — Eu tenho o cuidado e o conhecimento – ela diz convicta, e então retoma o olhar para a magia flutuante. Ela separa algumas palavras das outras. – esses ingredientes determinam cada aspecto da maldição; esquecimento, poderes, teletransporte do amaldiçoado, consciência humana, modificação física...
   — Como assim consciência humana? Modificação física? – é muita informação e com a cabeça ainda um pouco voada, tento digerir tudo na minha mente.
   Hécate não se importa de explicar, ela parece atenta a tudo que conseguiu extrair do livro. Ela lembra levemente a mim, gosto de aprender e gosto de explicar, foi assim minha vida toda, e isso me faz relembrar as tardes com a sara contando histórias e levando a imaginação dela até onde eu conseguia guiar e feliz a cada pergunta que ela fazia, pois mostrava o interesse e a atenção dela. Ah, sara, cadê você?
   — A mente dos deuses possuem milhares de anos e consciência, sempre prontos para compreender o que mortais jamais conseguiriam, quando transformados em humanos, todo o vácuo deixando por esse repentino apagão no cérebro, os fariam virar amebas, sem saber nem falar ou entender o básico – ela explica de forma resumida, mas claramente. Vejo que se esforça para não usar uma linguagem mais mística, para que eu possa entender. – a modificação física, faz com que eles assumam uma aparência humana, muitos deuses possuem características físicas distintas fora do habitual humano, como asas, caudas ou escamas.
   A maldição é mais complexa do que eu imaginava, possuem detalhes que eu não havia pensado antes e nem como funcionava.
   — Tudo foi pensado nos mínimos detalhes, para que fossem permanentes, Nix foi genial – ela diz com certo brilho nos olhos. – o que me leva a perguntar, como uma deusa assim foi enganada por Hades e pega pela própria maldição? E porquê não usou alguma defesa contra o que ela própria criou?
   Não sei o que responder, minha cabeça não está pronta para pensar longe assim, mas as dúvidas de Hécate preenchem meu subconsciente, quando estiver mais desperto, tenho certeza que tirarei um tempo para pensar nisso.
   — E qual o próximo passo? – pergunto.
   Ainda analisando as escrituras, ela responde.
   — Ouvi boatos de que ela está atrás dos primordiais, mas não sei o motivo, o que quer que seja, está meio caminho andado – Hécate desfaz o sorriso ansioso, e torna sua expressão fria, o brilho no olho some. – temos que ser rápidos também, preciso dos outros quatro livros, quero entender todo o trajeto da maldição atual.
   — Espera aí, combinamos que seria um livro por vez – digo, olho franzido pra ela, confuso com a proposta. – ainda não sei se confio em você.
   Hécate revira os olhos e repuxa a boca.
   — Fizemos um pacto de sangue, não tem o que temer – ela diz. – a questão aqui não é confiança, é praticidade. Antes eu não acreditava que daria certo o que você propôs, mas depois do quarto e desse livro, sei que podemos conseguir.
   Abaixo o olhar por um instante, as coisas estão acontecendo muito rápido, e a deusa está muito confiante, ela estar empolgada quando no começo hesitação sobre o que iríamos fazer me faz pensar que eu deva ceder e confiar nela. Hécate cumpriu o acordo e me contou o que descobriu, se me quisesse morto, teria feito isso enquanto eu dormia ou nem se esforçaria para me salvar.
   — Em quanto tempo? – pergunto levando o olhar até ela.
   — Não sei – admite, sua empolgação diminuí. – por isso quero ir direto ao ponto, para a maldição atual. Preciso descobrir o que mudou e como reverter, como tirar esse arma que ela colocou na minha cabeça.
   A deusa se senta do meu lado e coloca as mãos no colo.
   — Nix havia testado a maldição enquanto refazia, havia uma contagem em sua mesa – Hécate conta. – ela testou a maldição em alguém antes de usar contra os deuses.
   — E quantas vezes ela teve que testar? – pergunto.
   — Uma – Hécate responde com a voz ríspida, e isso me faz encolher. – ela conseguiu de primeira, talvez isso tenha a ver com a prática de ter criado a primeira maldição, por isso quero começar por ela. Mas para isso, vou ter que testar também.
   Ela diz a última frase meio vaga, como se não quisesse entender o peso dela. Eu não havia pensado nessa parte, ao tentar recriar a maldição de Nix, a deusa da magia terá que testar sua eficácia em alguém. Não sei se ela tem alguém em mente ou esse é justamente sua hesitação. E ao fazer isso, Nix com certeza ficaria sabendo e logo descobriria o que estamos fazendo. Teremos pouco tempo para resolver tudo.
   — Em quem?
   Ela vira o rosto pra mim, revelando o lado que mostra a sua face mais velha, destemida e ousada.
   — Talvez tenha alguém perfeito para isso.
   Mas não me diz quem é. E eu não sei se devo temer por isso.
   No mesmo instante, um farfalhar de asas acontece atrás de nós. Me viro a tempo de ver uma ave voando através de janela. Demoro apenas um segundo para reconhecer que é o Raven na forma de corvo. Ele carrega uma bolsa pequena em suas garras e a joga em cima da cama, próximo de nós, para então pousar na mesinha ao lado.
   O corvo alterna o olhar entre nós dois e abre as asas em um tipo de saudação.
   — Ah, poulí, achei que não viria mais – Hécate comenta ao puxar a bolsa para perto de si.
   — O que é isso? – pergunto.
   Raven então começa a crocitar e bater as asas, chamando nossa atenção. As vezes me esqueço que ele é originalmente uma ave, e não um humano como estava ultimamente. Tenho algumas dúvidas sobre essa transformação, se pode ser permanente, ou ele prefere transitar entre as duas formas. Ele já demonstrou interesse em aprender a ler, então pode ser que tenha apreço por algumas habilidades humanas. Talvez seja uma questão para outro momento, quando estivermos a sós.
   Hécate expira rapidamente e ergue a mão na direção dele, ela mexe os dedos brevemente e surra um conjunto de palavras breves. E então a transformação acontece. As asas se esticam e contorcem virando braços, o rosto vai ficando mais largo e as penas se transformam em pele, um manto negro aparece magicamente cobrindo seu corpo e sua coluna arqueia.
   Raven balança a cabeça, como se tirasse alguma poeira do cabelo.
   — Eu prefiro que me chamem de Raven – ele diz pra Hécate, que citou o nome que Nix deu para ele. Raven olha para mim, desviando atenção. – oi Sr. Sintuell, sinto muito ter entrado assim. Você parece estar melhor, como está se sentindo?
   — Estou bem, melhor do que achei que ficaria – digo abrindo levemente a boca em um sorriso curto. – obrigado por ter se preocupado.
   — Ora, é o meu dever cuidar de você – ele diz fechando os olhos e acenando levemente com a cabeça. – devo dizer que foi muito inteligente ter lembrado do livro pra impedir o escudo de avançar.
   Antes que eu responda, sou interrompido pela Hécate.
   — Ah! Você conseguiu mesmo! – exclama a deusa empolgada, ela retira da bolsa que o Raven trouxe, um pequeno espelho redondo, com bordas douradas e um pegador ladeado com ornamentos finos. – não foi tão difícil, como eu disse que seria né?
   Raven bufa.
   — Foi pior, aquele lugar está em ruínas e as criaturas de Tifão já se acomodam por lá – ele diz de forma repugnante. – acho que Lady Nix não irá mais usar a cidade dourada e o pai dos monstros parece ter feito moradia pros filhos ali.
   Consigo perceber que eles falam do Olimpo, pela menção ao local como cidade dourada. Mas não entendo que é esse objeto.
   — Você foi no olimpo atrás de um espelho? – pergunto um pouco preocupado. – correndo risco de ser atacado por monstros?
   — Eu sabia o que estava procurando, saí e entrei rápido – ele da levemente de ombros. – também não tive opções – ela joga um olhar de soslaio para Hécate.
   — E esse não é um espelho qualquer, é o espelho da rainha Hera – Hécate explica. – uma das maneiras como a deusa descobria as canalhices do marido. Eu já estava pensando em ir atrás dele, mas não tinha tempo e não queria chamar atenção.
   — Fiquei surpreso quando vi que não havia sido destruído no meio da batalha – Raven completa, se aproximando de nós. – pelo menos não por completo.
   Hécate vira o espelho e é quando percebo a rachadura que atravessa todo o objeto de um lado a outro. A deusa repuxa a boca e balança levemente a cabeça.
   — Isso vai complicar um pouco mais – diz.
   — Ainda não entendo pra que serve – pergunto intrigado. – e nem porque queria isso.
   Hécate então levanta o olhar para mim, seus olhos roxos refletem por um momento a luz fina do sol que invade.
   — Ele serve para poder se comunicar com pessoas que estão a quilômetros de distância, em qualquer lugar do mundo – ela começa a dizer e sinto meu coração batendo mais rápido, abro a boca já pensando no que isso pode significar. – eu queria ele para poder falar com meus gêmeos, e talvez você pudesse falar com a sua filha. Bom, Raven me convenceu a fazer isso pro você, ele pode ser bem persistente quando quer.
   Uma onda de sentimentos invade meu corpo de uma vez, um sorriso enorme brota no meu rosto e sinto meu corpo acelerado, minha respiração fica mais ofegante e só de pensar que verei como a sara está, minha me encho de esperança.
   — Ah gente, vocês... – começo a dizer, mas Hécate me interrompe.
   — Nada de papo furado, temos que ser rápidos – ela pede para que Raven puxe a pequena mesa do quarto. – vamos fazer logo isso, antes que alguém chegue.
   Hécate coloca o espelho na mesa e Raven fica do meu lado.
   — Talvez por estar quebrado, precise de um pouco mais de concentração – ela diz, colocando as duas mãos unidas sobre o objeto, com as palmas viradas para o mesmo. – Wesley, preciso que se aproxime, e Raven, pegue alguma coisa que pertenceu diretamente à Sara.
   — Tem algumas roupas que ela usou no último mês e... – tento sugerir.
   — Não, roupas são versáteis, podem ser de qualquer um – Hécate diz de olhos fechados com as mãos erguidas.
   — Que tal fio de cabelo? – Raven propõe. – deve ter por aqui em algum lugar.
   — Perfeito – Hécate concorda.
   — Procura pelo banheiro, na escova de cabelo dela – digo, e Raven assente. Eu me aproximo de Hécate.
   A deusa toma a minha mão direta e em um único movimento um corte surge na palma dela, que ela fez com um anel pontudo. A ferida arde momentaneamente e uma ardência atravessa meu pulso, o que me faz retrair, mas Hécate não solta a mão. Ela a fecha e aperta, até uma gota de sangue escorrer pela palma da mão e cair em cima do espelho.
   — Pense na Sara – a deusa ordena. – pense nela com tanto afinco, com todos os pensamentos que puder.
   O que não é muito difícil pra mim. A primeira coisa que vem na minha mente é a noite em que Nix chegou com ela nos braços, tão pequena e indefesa, com a pele clara e reluzente, cabelos negros e lisos, os grandes olhos verdes inocentes, enrolada em um lençol preto de seda, meu coração explodiu de felicidade nesse dia, mas também de preocupação. Quando ela ia pro meu quarto em plena madrugada, com medo e dizendo que estava sendo observada por alguém – o que poderia ser verdade, já que Nix vigiava a filha – e pedia para que eu contasse alguma história. A primeira queda dela de bicicleta, onde a ferida no joelho cicatrizou em apenas um dia e ela nem desconfiava que tinha a ver com sua herança.
   Pensar nela me trás certo conforto, um sorriso sincero e genuíno brota no meu rosto, junto com lágrimas de saudades. Nos últimos dois estávamos um pouco mais distante, mas tudo que eu fazia, era pensando nela e em como fazer dela uma pessoa feliz. O último pensamento que aparece entre minhas memórias é ela saindo de dentro do quarto e sumindo através do corredor, onde prometemos nos ver logo. Já faz dias desse momento.
   — Aqui está – escuto Raven dizer, provavelmente para Hécate. Mas não abro os olhos, continuo revivendo meus pensamentos, o fundo do baú do meu cérebro.
   Meu corpo não reage bem, não sei o que sentir, não sei como reagir, tudo passa minha mente como um filme e tento capturar cada momento como se minha vida dependesse disso.
   Mas ela é minha vida, e estou fazendo isso principalmente por ela.
   — Está dando certo! – Hécate exclama e eu abro os olhos.
   A ferida na minha mão sumiu, a deusa leva um fio de cabelo da Sara até o espelho e o vidro parece consumir isso como a superfície de uma água. Ela ergue o objeto para mim.
   — Agora olhe para ele e foque nela – diz, com o olhar confiante e surpreendente reconfortante, como se estivesse com pena e soubesse que eu preciso disso.
   E faço o que a deusa manda.
   Mentalizo a sara, seu rosto, a última vez que a vi, cada detalhe está vivo na minha mente e meu coração acelera a cada momento, meus olhos começam a encher de água, minhas mãos tremem e preciso respirar fundo para manter o objeto imóvel. Algo começa a acontecer no espelho, uma leve neblina gira dentro da superfície do vidro, a imagem tremeluz, ofusca e oscila.
   Então vejo ela. Reconheceria minha filha em qualquer circunstância, de qualquer ângulo possível. Sara está de costas, agachada perto do corpo de alguém no chão. Não consigo ver muito do cenário ao redor, está um pouco borrada. Mas vejo de relance o mar, mas ela não está em uma praia, parece um cais, observo o borrão de um barco. Ela usa uma jaqueta preta e calça jeans, aparentemente está bem.
   Ela conversa com alguém, enquanto passa alguma coisa na perna da pessoa no chão.
   — SARA! – grito para o espelho.
   Nada acontece.
   — OLHA PARA TRÁS! SARA! – Tento novamente, mas ela continua entretida com a outra mulher, que está molhada. A empolgação em mim se esvai aos poucos. – porque ela não me escuta? – pergunto com a voz embargada para Hécate.
   A deusa parece um tanto confusa quanto eu.
   — Não sei, talvez por que esteja quebrado – deduz ela. – normalmente ela conseguiria te ver e ouvir, mas acho que assim, só você ver ela.
   Engulo em seco, um tanto decepcionada. A onda de frustração que me enche repentinamente me faz querer ter um acesso de raiva, jogar isso na parede e explodir. Mas consigo me controlar, consigo me contentar com o fato de que estou vendo ela e que sei que ela está bem. Apesar de não poder falar com minha filha, estou vendo que está viva.
   — Ah, meu amor – digo querendo chorar. Mas não consigo continuar, não sei o que dizer para o reflexo dela que nem me escuta.
   — Sinto muito, Wesley – Hécate diz. – mas espero que isso conforte de alguma forma.
   — Talvez – digo, continuo olhando para o que o espelho me mostra.
   Sara explica algo para a mulher do lado dela, que presta bastante atenção e comenta algo. As duas parecem estar em uma discussão acerca de algo complexo.
   Então algo inesperado acontece.
   Outra pessoa entra em cena, chegando perto das duas, e eu reconheço imediatamente a melhor amiga da Sara, a Winney. O que ela está fazendo ali? Ela está de bem com a Sara? Minha mente antes nebulosa começa a trabalhar com as dúvidas que surgem. Porém, uma breve onda de alívio perpassam meu coração, é bom saber que Sara está com alguém em que ela confia, ou pelo menos confiava, alguém que ela conhece.
   O que me faz pensar que talvez ela esteja em nossa cidade natal, mas descarto a possibilidade ao lembrar que lá não tem mar.
   — Vocês conseguem reconhecer esse lugar? – pergunto pros dois que estão do meu lado.
   Hécate se aproxima e analisa o espelho com o rosto concentrado, mas nega com a cabeça.
   — Difícil, a imagem do fundo está muito desfocada.
   Raven senta do meu lado para olhar junto comigo.
   — Lady Sara está bem, fico feliz – ele diz.
   Na imagem, ela se levanta e coloca um pequeno pote de vidro dentro de uma bolsa de couro que ela carrega. Ela abre a mão e aponta os cinco dedos, como se fizesse uma contagem para a Winney e a outra mulher. Essa última também se levanta e finalmente sai de detrás da Sara, revelando ser uma mulher alta e bastante bonita, tem um corpo formoso e a expressão fria, mas também concentrada, como se estivesse desconfiada.
   Não é ninguém que eu conheço, não lembro de já ter visto ela.
   Raven semi cerra os olhos, focando na mulher, e inclina a cabeça, tentando ver melhor, como se estivesse reconhecendo a mulher de verde.
   Então seus olhos se arregalam surpresos.
   — PELOS DEUSES! – Ele berra exaltado. – ELA NÃO! ISSO NÃO É POSSÍVEL!
   Ele se levanta com as mãos tremendo.
   — Acalme-se, corvo – Hécate diz. – de quem você está falando?
   Raven não consegue dizer, então apenas aponta para o espelho.
   — Deixe-me ver isso – a deusa toma o espelho da minha mão e analisa a imagem, imediatamente seus olhos se arregalam. – minha santa, magia. Como ela está assim? – ela diz confusa, franzindo o ceio e olhando para o Raven preocupada, enquanto devolve o espelho para mim.
   Os dois se encaram como se estivessem conversando telepaticamente, focados nos pensão um do outro. Já estou nervoso e o aperto que assolava meu coração volta.
   — De quem estão falando? Quem está com a Sara?
   Pensar que alguém que faça esses dois ficarem preocupados está acompanhando minha filha me deixa preocupado. Busco resposta nos dois, mas eles estão focados em seus próprios pensamentos.
   — Então a maldição está mais diferente do que eu imaginava – Hécate comenta consigo mesma. – preciso ver os outros, tirar a prova a limpo – a deusa vira pra mim sem se preocupar em responder minha pergunta. – Wesley, preciso dos livros para agora!
   — Não antes de me falarem quem é essa mulher de verde! – me oponho, cada vez mais ansioso, e temendo a resposta.
   Os dois se entre olham, decidindo quem vai me dar a resposta.
   Antes disso, dou mais uma olhada no espelho, a imagem da Sara ainda está lá. Mas em um momento, ela vira a cabeça para trás, olhando diretamente para mim. Ela franze as sobrancelhas e logo e seguida arregala os olhos.
   Mas a imagem some.
   E não consigo mais ver ela. Uma lágrima solitária escapa dos meus olhos e cai sobre o vidro liso.
   Raven se aproxima e senta do meu lado.
   — Sinto muito, Sr. Sintuell – ele diz.
   — Quem é aquela mulher, Raven? – pergunto sem me importar com a minha dor, tentando trazer a raiva a tona, somente ela pode me motivar a seguir com isso. Derrotar Nix e ver minha filha novamente.
   O corvo engole em seco e com a voz trêmula me responde.
   Mal escuro sua voz quando o nome dela chega na minha cabeça
   — Aquela com a Sara é a ex-sacerdotisa de Atena – ele explica. – Medusa.

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora