Capítulo 26 - Observador

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                         |Observador|   

  Nix obteve êxito até então.
   Ela aproveitou a viagem marítima para barganhar com as duas divindades marítimas primordiais, Pontos e Talassa. O deus das profundezas foi um pouco mais difícil de se convencer, apesar da queda de Poseidon, ele não tinha se convencido de que os mares deviam retornar para suas mãos, afinal, não deveria organizar a bagunça de outro. Além de bater o martelo no fato de Nix ser imprudente ao amaldiçoar os deuses sem antes ter certeza da ajuda dos primordiais para uma nova geração ou da coordenação dos planos terrenos.
   A dama da noite sabia que o primordial era poderoso e possivelmente um dos mais rígidos em sua liderança, mas também preguiçoso, bastou apenas massagear seu ego e diminuir sua participação no plano para que ele cedesse, afirmando que ele teria uma legião de divindades menores para servi-lo e que Poseidon falhou ao não pedir conselhos do ancião, pois o deus caído do mar fazia do reino profundo de Pontos um lugar de lixo.
   Já para conversar com Talassa, Nix pediu que Hemera fizesse a conexão, já que a deusa primordial da vida marinha é filha da deusa do dia e as duas possuíam uma relação próxima. Mas Hemera não poderia comparecer à reunião, pois estaria atrás do Éter, apenas avisou sua filha que a deusa da noite gostaria de conversa importante com ela. Talassa aceitou participar da criação da nova ordem de Nix, sem condições ou empecilhos. A deusa primordial da vida marinha compareceu através de animais marinhos, onde peixes pequenos, algas e águas-vivas formavam o que seria um corpo humano, e a reunião terminou quando uma baleia apareceu engolindo sua forma na frente de Nix.
   Tal pomposidade fez Hipnos, que acompanhava Nix em sua missão de ir atrás dos primordiais, querer rir da cena, pois ela claramente estava querendo impressionar Nix com esse espetáculo, mas também o fez perceber da extrema diversidade que são as divindades da família, já que Talassa era sua sobrinha e mesmo assim era uma primordial de poder inigualável, como todos os outros. Durante essa jornada, observando os argumentos de sua mãe a grandiosidade do que planejou para o horizonte, o deus do sono se questionava cada vez mais se seu papel se limitaria apenas naquele momento, se teria que mostrar mais para ela, fazer algo para ser um dos líderes do futuro. Ela estava indo atrás dos primordiais, mas ele esperava que o pedido se estendesse a ele em algum momento.
   Hipnos havia sido absolvido da maldição, o que provava que ele era mais importante do que o que Nix dizia ou não.
   Os dois saíram de uma ilha pequena no meio do oceano atlântico, onde ocorreu o encontro com Talassa, na carruagem prateada de Nix. Eles atravessavam sentados o céu noturno e estrelado, enquanto uma manada de cavalos celestiais os puxava de forma graciosa. Hipnos nunca havia andado na carruagem de Nix, e poucos tiveram esse privilégio. Eles passavam por nuvens finas e vazias, as estrelas cobriam o céu e a escuridão parecia se mover entre elas. Olhando atentamente, poderia se perceber o véu noturno sendo guiado por onde passavam, influenciados pela presença de Nix.
   Eles pareciam andar levemente nas alturas, mas olhando para baixo, o mundo parecia um borrão. Hipnos analisou brevemente a carruagem, era prateado com ornamentos nas bordas, dois bancos um de frente para o outro, estavam cobertos de seda cinza, era mais simples do que ele imaginava, mas trazia uma elegância e autoridade que só Nix transmitia. Ele percebeu que abaixo da carruagem, era feito literalmente de noite, como uma camuflagem de quem olhasse por baixo. O deus sentiu vontade de abrir suas asas e deixar abertas ao vento e sentir a sensação do ar forte entre elas, da escuridão noturna que os rodeava, patenteando por entre suas penas.
   Mas se conteve, para não parecer um tolo diante de sua mãe. Tanto, que nem escutou quando ela falou com ele:
   — Você me ouviu? – Nix perguntou no banco da frente.
   Ela estava com o capuz cobrindo seu rosto, a sua capa se perdia no ar, mesclado à noite, era lindo de se ver, ela parecia coberta com o céu noturno. Hipnos não respondeu de imediato, tentou lembrar de algum resquício do que teria sido dito, mas não conseguiu. Ele sabia que Nix odiava ser ignorada ou repetir algo, mas não teve jeito, então ele negou. Mas ela não parecia irritada ou algo assim, estava mais pensativa. Ela era uma primordial, conseguia abrir portais pra vários lugares, mas mesmo assim, estava tomando aquela passeata na carruagem, para ter um tempo sobre seu domínio, para pensar e se concentrar.
   Ela não havia parado desde que retornou da forma humana, sempre fazendo uma coisa trás da outra, aqueles momentos eram raros. E Hipnos se perguntou a honra que estava tendo ao ser permitido ali, e não ser mandado ir voando ao lado da carruagem tentando acompanhar.
   — Controle seu poder, está afetando meus cavalos, eles estão sonolentos – ela repetiu. – Está com alguma dificuldade?
   A pergunta havia um tom de acusação, mas Hipnos ignorou.
   — Não, mãe – respondeu tentando pensar em algo plausível, mas não conseguiu. – Me distrai.
   O que em partes era verdade, a emoção e a influência o fizeram perder o controle por um momento, mas ele não admitiria. Hipnos era poderoso e controlado, mas algo na presença constante de Nix mudava qualquer um, de diversas maneiras. Não era só a presença dela, eram suas palavras, sua aura, a magia que ela carregava embaixo de seus longos mantos. Como resposta, teve uma risada seca de Nix.
   — Com o que exatamente? – perguntou a dama da noite, o que surpreendeu Hipnos. Ele estava costumado a ficar em silêncio na maioria das situações, não esperava que ela puxasse assunto e também não estava disposto a começar uma conversa.
   — Muita coisa mudou nos últimos dias – explicou o deus do sono. – O sono das pessoas lá embaixo está fraco, eles estão mais despertos, não sinto a mesma força de antes.
   — E direcionar parte de seu poder aos primordiais te afeta? – Nix questionou.
  Hipnos responderia que sim, que colocar os deuses primordiais em um momento de "cochilo" requeria boa parte de sua influência. Mas falar sobre isso, poderia insinuar que logo ele poderia não ser mais útil. Se mentisse, Nix perceberia, então pensou em redirecionar a conversa lentamente.
   — Os humanos não dormem mais por conta da confusão que o mundo deles está – Hipnos explicou. – Isso desde que a noite sumiu, o sono biológico está afetado, o que acaba chegando até mim.
  — Tenho ciência disso – Nix argumentou. – Isso vai mais longe do que você pensa, Pontos somente mostrou resistência porque o mal humor que seu sono vem trazendo o afetou, já que você estava encarregado de dar à ele um descanso merecido.
   — Sim, e por isso me pediu para liderar os daemons, os humanos estão mais propensos pela influência deles a fazerem coisas que não fariam em sã consciência.
   Nix assentiu.
   — Sei que tem questionamentos sobre o que ouviu de minhas conversas com Pontos e Talassa – Nix disse.
   — Não precisa me dar satisfação – Hipnos interrompeu, o que tirou um olhar irritado de Nix. O deus abaixou o olhar.
   — Não preciso – A deusa continuou. – Mas gostaria de lembrar o dia em que colocou Zeus para dormir, eu te protegi da ira dele não porque é meu filho, e sim porque achei ousado seu feito, colocar o rei dos deuses para adormecer requereu grande coragem e poder, o que não era de seu feitio.
   Hipnos não sabia se levava como elogio ou ofensa, mas não respondeu, deixou que ela conduzisse a conversa.
   — Às vezes é preciso dar um passo fora da realidade, arriscar para saber onde o poder e sua coragem vão – Nix não olhou para ele, e sim para seu céu noturno mais no horizonte. Apesar de toda sua sabedoria, ela não sabia ter conversas daquele tipo, era o tipo de coisa que passava entre seus pensamentos uma vez por dia, no meio dos milhões de coisas que ela podia pensar. – Ali soube que você poderia fazer coisas mais do que demonstrava, assim como todos os outros poderiam, mas infelizmente nem todos tentavam ou se tentavam, nunca iam em uma boa direção, foi onde tudo arruinou. Essa experiência te levou até os primordiais, não?
   Hipnos prestava bastante atenção, mesmo que parecesse que a deusa não falasse com ele. Ele concordou mentalmente, aquele acontecimento o fez perceber que poderia exercer influência até sobre divindades maiores, na medida certa e com o tempo certo.
   — É exatamente o que quero que veja que estou fazendo, arriscando um pouco mais, dando um passo que ninguém nunca tentou antes, indo no limite, colocando reis deuses para dormir quando achava que não poderia fazer isso, analogicamente falando – Nix falou então algo que mexeu com Hipnos, como nada havia feito. – Mesmo que se algo der errado no fim, não terá ninguém para me proteger.
   O deus do sono percebeu que não saiu de forma involuntária, que Nix precisava dizer aquilo em voz alta. Foi quando Hipnos se deu conta de que apesar da mão firma de Nix, da forma fria que ela amaldiçoou todo um panteão e colocou a humanidade contra seus próprios demônios, ela sabia do risco, do que estava em jogo. Que apesar de uma decisão ousada, poderia levar a um caminho fora de seu alcance. Ele sabia que isso dificilmente aconteceria, mas há variações no cálculo geral do destino, que nem as moiras ousariam mexer, que poderiam chegar ao que ela não poderia intervir.
   Pensar no fardo que ela carrega, além da fachada de poder e autoridade o fez admirar ainda mais. E que por mais que ela não fale, ele é visto, e tem muita coisa ainda minuciosamente calculado por ela, nada havia sido feito de forma impensada. A maldição contra a noite foi só o estopim de algo já pensado.
   Um silêncio se formou entre eles de forma que Hipnos nunca ousaria quebrar. As sombras no rosto de Nix ficaram mais densas e esconderam ainda mais o que ela pudesse revelar através de feições. Então um feixe de luz atravessou o céu na direção da carruagem, como uma aurora boreal que serpenteava até eles. Hipnos se levantou em um pulo e empunhou a espada da bainha, brandindo as asas e pronto para o ataque. Mas Nix nem se moveu, o que o fez pensar se ela queria que ele lutasse por ela ou que ninguém seria estúpido de atacar a carruagem da dama da noite.
   Mas o que aconteceu não foi um ataque, mais próximo da carruagem, ele reconheceu como sendo uma luz de Hemera, um constructo da deusa em forma de luz que pousou no centro da carruagem. A imagem iluminada da deusa do dia não atravessava a escuridão que a rodeava o local, mas ofuscava um pouco a visão do deus do sono. Hemera estava de frente para Nix, onde o deus não conseguia ver seu rosto, mas podia ouvir o que dizia.
   — Como foi seu encontro com Éter? – Nix perguntou
   — Infelizmente não obtive sucesso em encontrar ele – Respondeu a deusa, hesitando um pouco. – Mas estou trabalhando nisso.
   — E qual o motivo do nervosismo?
   — Preciso de sua presença – Hemera disse, disfarçando. Ninguém poderia desconfiar da mentira que ela acabou de contar.
   — Estamos a caminho de encontrar o primordial Eros, não pode esperar?
   — Creio que isso precise mais de sua atenção – Hemera argumentou. – Estou na montanha de Gaia, ela foi libertada com a ajuda de Tifão.
   A expressão de Nix mudou completamente, tudo ao seu redor tremeu com o choque da deusa, a noite pareceu escurecer ainda mais e a carruagem oscilou por um segundo, foi possível até ouvir sua respiração mais alta.
   — Estarei aí em um segundo – foi tudo o que ela disse.
   A imagem de Hemera se dissipou no ar, ao passo que Nix ergue a mão para a parte da frente da carruagem e um portal surge no ar, então passam atravessando.
   Como dito, em um segundo estavam no local.

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora