Capítulo 20

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   Eles avançam rápido, mas organizadamente.
   Parecem já saber como funcionam e não estão agindo de forma impulsiva, na verdade escuto mais as risadas, conversas altas e comentários sobre as mesas cheias de comida e a decoração exponencialmente simples. Algumas pessoas de terno e óculos escuros ficam perto da mesa, enquanto próximo a coluna com a estátua do animal na ponta do cais, tem um pequeno palco, com um microfone em uma haste flexível.
   — Não gosto de multidões – Agnes comenta, desviando o olhar a todo momento, procurando algum sinal de perigo. Involuntariamente, puxo a bolsa para mais perto do corpo, uma questão de segurança.
   — Não temos que ficar – digo. Apesar de estar curiosa pra ver como isso funciona.
   A ideia de oferecer comida o suficiente capaz de abastecer uma cidade me parece muito uma tradição antiga de algum rei que buscava esconder os problemas da aldeia entregando alguma distração mentirosa.
    — Se pegarmos alguma comida, já é uma economia nas despesas de refeição – Winney diz dando de ombros. – e amanhã isso aqui ainda vai estar cheio, das pessoas limpando.
   — Então temos que fazer amizade com eles, pra não nos expulsarem amanhã – concluo.
   As pessoas nos cercam e eu digo para não falar mais nada sobre as asas. Agnes está prestes a falar algo, quando escutamos um barulho vindo do palco. Mexendo no microfone, está a Gal, de forma graciosa. Tudo nela parece planejado e delicado, mas seu carisma fala mais alto.
   — Boa noite, cidadãos, turistas e pessoas que passaram o dia sem comer esperando por esse momento – muitos dão risada e ela parece aliviada pelo humor ter dado certo. – sejam todos bem vindos a mais um solstício de Hélio, que nesse momento, está descansando para que possamos desfrutar de suas bênçãos. Esse evento acontece há..
   Gal começa a explicar a origem do evento e como perdurou durante antes, e em como em todos esses anos, serve como uma oferenda de ambas a parte, pois o titã parece sempre abençoar essas terras enquanto eles alimentarem a todos de forma igual e abundante. Estou ouvindo o discurso dela, tentando entender mais, quando ouço a voz de um rapaz próximo de mim. Acho que ele está falando comigo, mas quando viro a cabeça, percebo que está falando com a Agnes.
   — Desculpa, não quis esbarrar assim – ele parece nervoso e tímido. Agnes não olha para ele, mantém o olhar na Gal, claramente fingindo não se importar. – Uau, você... – ele cora e abre e fecha a boca sem dizer nada. – você é linda, caramba.
   Eu desvio o olhar dele e foco nela por um instante, não surpresa com o motivo de ele estar chocado. Mas Agnes não reage de forma notável, mantém a expressão fechada, percebo que seu olhar não foca na Gal, na verdade parece vago.
   — Aliás, me chamo Charles, não faz sentido elogiar você e não saber nem o meu nome – ele ri rapidamente e quando estende a mão para que Agnes aperte, percebo que treme levemente de nervosismo.
   E então percebo as mãos de Agnes, que se fecham e o punho parece pronto para um ataque. Ela desvia um olhar fuzilante para ele, capaz de lançar lasers, e eu reajo rapidamente. Foi algo parecido com o que ela fez na vila, com o Daniel. Não sei o que está acontecendo, já que ele não fez nada de errado, mas sei o que vai acontecer. Eu rapidamente seguro o punho dela e a puxo para longe do rapaz. Ele olha confuso para gente, um pouco decepcionado.
   — Droga, Charles, que apresentação ridícula... – ele resmunga consigo mesmo enquanto nos afastamos.
   Agnes não se deixa levar por mim por mais de três metros, e então dá um tapa no meu braço.
   — O que está fazendo? – ela me pergunta irritada.
   — Impedindo você de fazer alguma besteira – respondo na mesma intensidade. – eu vi que você iria fazer com aquele rapaz, o mesmo que fez com o Daniel.
   Ela não responde, apenas mantém o olhar em mim com a respiração alta. Tento imaginar o porquê dela ter esses gatilhos, não se dá bem com toques e não sabe nadar, quais deusas se encaixariam nessa descrição? Mais tarde tenho que fazer uma filtragem e ver se consigo chegar perto de descobrir quem ela é.
   — Você não pode sair matando as pessoas – continuo.
   Ela demora mais alguns segundos me encarando, pensando em algo que seu rosto rígido não denuncia.
   — Que bom que você está aqui pra me impedir – ela diz.
   Tento pensar em uma resposta, tentando entender a insinuação dela, mas os barulhos ao nosso redor aumentam. As pessoas começam a se movimentar em todas as direções. Um empurra-empurra vindo de todos os lados, braços me puxam e se chocam contra meu corpo. Agnes parece distribuir cotoveladas na mesma intensidade, e olha para todos os lados, nervosa com o tumulto. O cheiro de comida infesta o ar perto de nós.
   — Por aqui – uma voz diz, e me puxa entre a aglomeração.
   O mesmo acontece com a Agnes, ela consegue reagir, dando um chute na barriga da pessoa que estava atrás dela, puxando-a. Tento fazer o mesmo, mas as pessoas estão muito próximas e mal me movo. Agnes começa a vim na minha direção, e quando estou pronta para reagir, percebo que estou em uma área aberta, um pouco menos lotada e na margem do cais. A pessoa que segurava meu braço, me solta. George.
   — Aqui, senhora – ele diz para Gal.
   Agnes aparece correndo atrás de mim, com os punhos cerrados, pronta para algo e o olhar quente, até entender o que está acontecendo. Winney está ao lado de Gal, comendo alguma coisa em um prato.
   — Vocês duas sumiram – ela diz de boca cheia.
   — Onde está o rapaz que foi pegar você? – George pergunta para Agnes.
   Ela desvia o olhar por um segundo, entendendo que fez besteira. George percebe que ele ficou na multidão e resmunga algo, indo até lá.
   — Pedi pra que tirassem vocês de lá, assim que as vi do palco – Gal diz.
   — Porque? – Agnes interroga, analisando a correria.
   As pessoas avançam em cima das mesas, comendo o que conseguem pegar. Alguma usam pratos e talheres, mas a grande maioria come com as próprias mãos. A medida em que uma mesa vai esvaziando, uma equipe rapidamente se encarrega de reabastecer. A única coisa mais normal que analiso, é que nenhuma comida é desperdiçada, nem mesmo quando cai algo no chão.
   — Ora, hoje vocês são minhas convidadas de honra – Gal diz, com um sorriso caloroso, e colocando champanhe em uma taça. – o primeiro solstício de vocês deve ser marcante.
   — Sara, sério, prova isso – Winney, ainda de boca cheia, empurra um prato na minha direção, com o que parece uma lasanha, recheada com carne moída e berinjela.
   Ela mal espera que eu segure o prato e se vira para o que parecer ser uma mesinha particular da Gal e sua equipe, enchendo outro prato com frutos do mar. Eu hesito um pouco, antes de comer, estou realmente com fome e exausta, e o cheiro é delicioso.
   — Coma, querida – Gal diz, estendendo um garfo para mim. – você parece tensa demais, aproveite!
   Eu pego o garfo dela e dou a primeira garfada, assim que mastigo, o mundo parece mudar para mim. O queijo derretido explode na minha boca em um sabor prazeroso, a carne é macia e suculenta, o gosto da berinjela se mistura bem em meio a esse paraíso que sinto na boca. Rapidamente sinto que tudo ao meu redor sumiu, e eu apenas sinto a delícia que está essa lasanha, como uma garfada atrás da outra, até ficar sem ar e tirar um tempo para respirar.
   — Eu avisei que era bom – Winney diz comendo um prato com camarão e molho.
   — Ah, fico feliz que tenha gostado – Gal diz, orgulhosa.
   Agora entendo o motivo das pessoas agirem assim. Se toda essa comida for tão boa quanto a lasanha, não me surpreende que eles ataquem feitos animais. A multidão está espalhada pelo cais em um caos absoluto. Os pratos se enchem mais do que suportam, pessoas colocam outra comida na boca antes mesmo de mastigar o que já tinha antes. Mesmo sendo gostoso, não agiria assim por um pedaço de lasanha.
   — É sempre assim? – pergunto, mastigando lentamente, sentindo o sabor do queijo derretido na boca que me faz alucinar. – digo, essa bagunça e falta de educação.
   — Todo ano – Gal responde. – mas é uma noite de fartura e comemoração, não tem como julgar. Todos saem satisfeitos e parecem se divertir bastante.
   Em um canto, onde toca uma pequena banda, pessoas dançam com pratos de comida na mão, colocando colheradas na boca de tempos em tempos.
   — Sua amiga está bem? – Gal pergunta pra mim, apontando para Agnes, que está na beira do cais de braços cruzados, olhando a cidade no nosso fundo, ignorando a festa e o mar atrás.
   — Acho que sim, ela é meio fechada – respondo encarando a misteriosa mulher que anda comigo. Costumo ver a Agnes como uma mulher bela, reclusa e durona, mas começo a me preocupar o que se passa na cabeça dela em relação ao seu passado inexistente. Ela se irritou quando o rapaz falou com ela, por que algumas pessoas ela aceita normal e outras não?
   — Ofereça isso para ela – Gal instantaneamente aparece com um prato de guisado na mão, nem vi quando ela se levantou para pegar. Se é que se levantou, acho que teria percebido. – encher a barriga faz os problemas de qualquer um desaparecer.
   Hesito por um segundo, mas concordo, vou até ela segurando o guisado e o que resta da minha lasanha.
   — Gal está oferecendo isso – ergo o prato na direção dela, que mal olha para a carne e volta o olhar para meu rosto e logo em seguida para a mulher carismática que organizou essa festa.
   — Não consigo gostar dela – Agnes diz. – isso tudo aqui, também é estranho.
   — Mas Gal é tão legal, não vejo mal nela – argumento. – talvez você não esteja acostumada com pessoas simpáticas.
   — Simpática era a Sra. Josélia, essa daí é no máximo legal – Agnes rebate.
   — Quais seu critérios de julgamento? – pergunto, curiosa e um pouco irritada pelo jeito rabugento dela. – aquele rapaz não te fez nada e você parecia prestes a socar a fuça dele.
   Agnes não responde, ela mantém o olhar rígido contra o meu. Quando de repente uma brisa suave passa por nós, fazendo o cheiro de guisado cozido com batatas pairar ao nosso redor, fazendo minhas narinas se abrirem e minha cabeça se deslocar por um segundo.
   — Obrigada por isso – Ela toma o prato da minha mão e se vira, voltando a encarar a cidade enquanto come, depois da primeira garfada, ela come com mais rapidez.
   — Ei, vai devagar aí – digo, enquanto ela come com ferocidade.
   — Isso é muito bom, experimenta – Agnes muda totalmente a reação, ela fica mais animada. Antes que eu recuse, ela já coloca um pedaço de carne na minha boca e assim que sinto o gosto da carne maciça na língua, quase reviro os olhos de tão gostoso que é.
   — Caramba, será se toda comida desse local é bom assim? – pergunto quase não mexendo a boca, com medo do sabor sair do meu paladar.
   Esqueço totalmente o que estávamos conversando, parece ter se tornado um assunto obsoleto, minha mente vagueia por um momento. Meu apetite parece se abrir mais, ofereço um pedaço da lasanha e ela tem a mesma reação prazerosa que eu. Comemos rapidamente, sentindo cada gostinho peculiar da comida. Caminhamos até a mesa de Gal, que está conversando com algumas pessoas de sua equipe e encontramos Winney se servindo de um bolo de morango.
   — Por isso é bom ter amigos VIP’s – ela comenta de boca cheia, fazendo comida cair na sua roupa e no chão, mas ela não se importa. – senão estaríamos ali, lutando com eles.
   Estou olhando para a multidão estupefata, que avança cada vez mais em cima das mesas e distribuem cotoveladas em todas as direções, o cheiro de comida se mistura em vários aromas gostoso, doces e salgados. Então, em uma das mesas, vejo um homem com a mão no peito, seu rosto está retraído em dor e completamente vermelho, ele parece sem ar e em alguns segundos cai no chão. Ninguém ao redor parece perceber, ninguém faz nada.
   Eu começo a me mover na direção dele e crio coragem para gritar por ajuda, quando uma mão segura meu pulso.
   — Não – escuto Gal falando. Me viro pra ela surpresa.
   — Aquele homem está morrendo! – digo alto, a voz quase tremendo.
   — Não podemos criar alarde sobre isso – ela diz, e eu fico mais confusa. – está vendo como as pessoas estão felizes? Estão preocupadas em devorar o máximo que podem, se verem que tem alguém passando mal, irão achar que é a comida e irão parar de comer, acabando com o evento, é isso que você quer?
   A fala é tão absurda que minha mente não consegue processar, um pensamento passa pela minha cabeça, algo que a Agnes disse recentemente. Assim que estou prestes a me soltar da Gal e ajudar o homem, um cheiro de algo assado invade minhas narinas. Tão gostoso e suculento que meu cérebro reseta. O aroma me faz salivar e me deixa arrepiada só de imaginar. Enquanto processo o cheiro, esqueço totalmente o que estava fazendo, e foco apenas no que estou sentindo. Algo no fundo da minha mente diz que tem algo errado, mas essa sensação se esconde atrás de uma cortina de fumaça de churrasqueira.
   Avanço até a mesa, guiada por Gal, e vejo de onde está vindo o cheiro, de uma porção de pratos com variados tipos de carne assados e fritos, com legumes e feijão. Mal consigo me controlar, e quando percebo, já estou com a boca cheia, sentindo um ataque de sabores explodindo meu paladar e abençoando minha barriga.
   — Não consigo comer mais – Winney diz. Ela está com falta de ar e se apoia na mesa, para se manter em pé.
   — Nem eu – Agnes diz, colocando o prato que estava segurando na mesa e respirando fundo, enquanto retrai o rosto.
   — Talvez eu possa ajudar vocês – eu nem percebi George do nosso lado, até ele dizer isso. Ele tira dois pequenos frascos de sua calça, com um líquido verde. – tomem isso, vai ajudar nessa situação.
   — É remédio para azia ou digestão? – Winney pergunta.
   Ele solta uma risada baixa, mas tensa, quase forçada.
   — Não, bobinha – ele diz. – isso vai fazer vocês vomitarem, assim, vão poder comer mais quando tiverem jorrado toda a comida de dentro de vocês.
   Winney olha para mim nervosa, como se tivesse lembrado de algo. A ideia de fazer as pessoas vomitarem apenas para comer mais é errada em algum sentido, mas não entendo qual. O fundo da minha mente exclama um tipo de injustiça, mas minha concentração está na mastigação de um pedaço de carne com cenoura cozida.
   — Olha, não sei se posso aceitar tomar isso, já que eu... – Winney começa a dizer, trêmula, não sei se por causa da barriga cheia ou está nervosa com alguma coisa.
   — Me dê isso – Agnes toma um dos frascos da mão do George e tira a tampa em um segundo, então toma o líquido em um só gole.
   — Ela sabe aproveitar uma festa – George diz para Agnes, e então vai embora.
   — Agnes, você já provou disso aqui? Pelo amor de deus, é maravilhoso – não consigo sentir meu maxilar, ele parece trabalhar involuntariamente, o que me atrapalha também na hora de falar.
   Dando uma rápida olhada no evento, vejo que muitas pessoas estão caídas no chão, outras se debatem em cima das mesas e muitos brigam entre si por algum pedaço de algo, o que me faz rir, a cena é engraçada. O que estão no chão, acho que estão descansando depois de comer demais, comida dá um sono.
   — O que está acontecendo? – Winney pergunta séria, mas logo sua atenção desvia para um pedaço de torta de frango. – será se eu consigo comer só mais um pedacinho? – rio um pouco da expressão dramática que ela faz.
   Estou começando a sentir minha barriga cheia demais, minha garganta está entalada e mal consigo puxar o ar sem fazer meu estômago doer.
   — Agnes, esse remédio faz efeito mesmo? – pergunto, me virando para onde ela estava.
   Vejo que ela está na beira do cais, vomitando perto de um barco. Ela se curva para frente com a mão na barriga enquanto a comida sai de seu corpo. Ela fica assim por um minuto, até mal ter forças para levantar, e quando o faz, suas pernas tremem, o vômito está em suas roupas e na botina. Quando tenta caminhar, Agnes cambaleia e tropeça nas próprias pernas, até cair no mar.
   Ela está sem muitas forças, mas começa a se debater com o que resta dela. Agnes tenta manter a cabeça acima da água, mas sua movimentação faz ela afundar e engolir água. Ninguém que está perto tenta ajudar, e apesar da minha preocupação, hesito por um momento deixar a comida que seguro, mas não por quê eu quero, algo me atrai a preferir isso. Então quando o faço, e crio coragem para correr e salvar ela, vejo uma pessoa saindo de um aglomerado de pessoas e correndo até a Agnes, que já começa a se debater menos.
   Demoro alguns segundos para reconhecer que quem está mergulhando é Charles, o rapaz que deu em cima dela. Ele mergulha com uma precisão incrível, como se já soubesse técnicas de salvamento. Winney, Gal e eu vamos até a borda do cais, dessa vez consigo sentir o desespero brotando em mim aos poucos, meu coração bate mais rápido e a voz sai da minha garganta. Pareço sentir dificuldade de sair de uma bolha.
   Agnes está boiando, não se mexe mais, o corpo flutua entre as ondas leves. Nesse momento, meu coração quase para, minhas pernas bambeiam e mal respiro. Charles chega por trás dela e coloca o braço por entre os dela e a segura pela barriga e puxa rapidamente para a beira do cais, onde eu e Winney puxamos o corpo da Agnes com dificuldade, ela não é pesada, mas é alta e nós estamos cheias e sem forças. Agnes está inconsciente, e eu grito por ela.
   A tensão do momento parece explodir dentro de mim e finalmente tenho consciência real do que está acontecendo. Minha respiração fica mais rápida e começo a me desesperar por não saber o que fazer e nem ter feito nada enquanto ela se afogava. Charles rapidamente sai da água e vem até nós.
   — Se afastem – diz, já agachado.
   Ele começa a pressionar o peito dela com as duas mãos e tampa o nariz dela, enquanto faz respiração boca a boca. Ele se mantém assim por alguns segundos, mas Agnes não reage. Meu coração se aperta e meu corpo enrijece, calafrios mórbidos perpassam meu corpo e minha mente se enche de pensamentos ruins, sinto lágrimas querendo brotar nos olhos, enquanto começo a ficar enjoada, já querendo vomitar também.
   — Você sabe o que eu está fazendo? – grito angustiada.
   — Sou salva vidas – ele diz, tirando a boca da dela, e começa a pressionar novamente o tórax.
   Em um segundo, nada acontece, seu peito não sobe com a respiração e sua pele começa a ter uma coloração azulada, até que ela reage no momento seguinte. Ela cospe água em uma jorrada. Charles vira o corpo dela de lado, para que ela possa tirar a água dos pulmões. Agnes tosse fortemente, e treme muito com o frio, além da dificuldade em respirar, mas está aparentemente viva, o que já me deixa mais aliviada. Uma parte de mim se pergunta porque demorei reagir, e a outra questiona o quão forte senti o impacto de imaginar ela morta.
   — Respira devagar – Charles diz, dando tapinhas nas costas dela.
   — Você está bem? – Winney e eu perguntamos em uníssono.
   Agnes não responde, ainda se atendo ao que aconteceu.
   — Ele está aqui? A água... – ela diz olhando pros lados, como se procurasse alguém, temendo algo.
   — Ele quem? – pergunto, sentindo o coração desacelerando.
   Ela vira o rosto pra mim e me encara por alguns segundos, seus olhos estão vermelhos e eles parecem pesados, carregados de medo e perigo. Agnes ignora a pergunta e coloca a mão na cabeça.
   — Ninguém – responde baixo. – você me tirou de lá? – ela pergunta pro Charles, a voz mais pendente pra acusação do que agradecimento.
   — Sim – ele responde tímido, com um pequeno sorriso. – fico feliz que esteja bem.
   Agnes se afasta um pouco dele, antes de dizer algo.
   — Eu... É... – ela gagueja, e engole em seco, mas não consegue concluir.
   — Ora, mas que contra tempo – Gal interrompe, com uma risada baixa, como se tivesse acontecido algo levemente engraçado. – espero que esteja bem querida, vamos, vou pedir para que tragam uma toalha para você e alguma comida quente...
   Com a cabeça mais limpa e a adrenalina ainda correndo pelas veias, percebo que o rumo da conversa está indo para onde tudo começou.
   — Ela não vai mais comer nada – digo. – você tem que parar com isso, Gal.
   — Parar? – Winney pergunta por ela. – do que está falando, Sara? Agnes está bem e...
   — Ela, mas não os outros – então me lembro claramente do homem tendo um infarto a alguns metros de mim, e em como ninguém se importou. Isso começa a tomar peso em mim, que sinto uma pedra no estômago. A imagem de várias pessoas no chão de alguns minutos também saem de alguma caverna do meu subconsciente, mas dessa vez com mais importância e realismo, e não uma brincadeira forçada. – várias pessoas estão passando mal, isso tem que parar.
   — Elas escolheram isso – Gal diz. – ninguém as forçou comer. Você não pode decidir quando esse evento vai acabar – a voz dela se mantém calma, como se ela falasse pra uma criança que não pode fazer tal coisa.
   — Não, mas você pode – me levanto, forçando a encarar ela. Sinto o vômito na garganta, meu estômago dói com azia. – eles estão morrendo! Agnes quase morreu! Que tipo de evento sádico é esse?
   — Quanta precipitação – ela continua. – esse evento acontece a anos e sempre acontece coisa do tipo, e você que nem ao menos conhecia, quer atrapalhar tudo?
   — Como pôde apoiar isso? As pessoas passam mal e vocês não fazem nada para ajudar.
   — Ora, mas veja bem... – ela começa a dizer, então o cheiro no ar começa a mudar, um cheiro de doce. Uma chave gira na minha cabeça, a lembrança de isso já ter acontecido antes, mas quando foi? Minutos atrás? A falta de memória só me faz perceber que é por isso que estou com a cabeça bagunçada. Dessa vez meu corpo reage antes da cabeça.
   — Respirem pela boca – grito pra elas. Não sei como, mas entendi que o cheiro de comida é o que influencia e abre o apetite, mesmo que não esteja com fome, sendo algo psicológico e não físico.
   Winney me olha confusa, mas tampa o nariz, Agnes não faz o mesmo, mas abre um pouco a boca. Percebo que Gal arregala os olhos por um momento, fechando o rosto.
   — Se não quer parar com isso, chame médicos, mas eles não podem ficar assim – continuo, quase implorando. Começo a temer pela vida deles, assim como temi pela de Agnes, e isso parece me manter mais alerta.
   — Isso estragaria tudo o que planejamos, e seria o primeiro fracasso em décadas – ela rebate, perdendo a postura amigável. – não estou te obrigando a ficar, e nem nenhuma de vocês. Não precisam estar presentes, vão embora e deixem que o evento continue, como sempre foi.
   Não consigo considerar isso nem por um segundo, deixar com que se destruam por comida quando há em abundância, e quando já estão satisfeitos é desumano. Mas não sei o que fazer, não tenho poder para impedir nada. E se for como ela diz, e está acontecendo, parece ser permitido, e nenhuma autoridade está fazendo algo a respeito. Em um momento, tudo se mistura na minha cabeça, os acontecimentos do dia anterior, o Matias no templo e o que aconteceu lá, Winney reaparecendo, as asas possivelmente perdidas naquele local, Agnes quase morrendo, e mal consigo tomar uma decisão.
   Tudo no meu consciente diz que devo fazer algo, minha barriga dói e meu estômago arde, sinto a garganta entupida, mas mal sei distinguir se o que está acontecendo é real de tão bizarro, e em como considerei normal apenas alguns minutos atrás. Nenhuma ação grande o suficiente passa pela minha cabeça, apenas meu corpo quer reagir por impulso.
   — Não posso fazer isso – junto a voz o máximo que consigo. Quase sem pensar, coloco a mão na bolsa e sussurro a palavra lança, ao tempo em que tiro a arma de dentro dela, ergo na direção da garganta de Gal, que se assusta com a surpresa e não se move, temendo que o menor movimento possa fazer sua garganta ser cortada. – mas você vai, por bem ou por mal.
   Todos ao redor se espantam, os membros da equipe de Gal que estavam pertos ficam confusos, parecem paralisados, mas não de nervosismo, e sim como um comando interrompido. Winney solta um gritinho baixo e coloca as duas mãos na boca. Dois homens que acompanhavam a comitiva de Gal, vem até nós correndo, como se estivessem se tocado do perigo. Mas antes que eu reaja, vejo uma adaga – a minha adaga – voando da mão da Agnes direto na perna de um deles, que cai no chão gritando de dor e sangrando aos montes, ela se levanta em um pulo e corre até o outro segurança, ele consegue desferir um soco no ombro dela, que range os dentes de dor, para logo em seguida, Agnes desferir um chute nas genitais dele.
   O homem se curva, e ela aproveita para dar um chute atrás do joelho dele, ao passo em que ele cai de joelhos no chão, ela aproveita esse momento para se projetar em cima dele e em um pulo selvagem, coloca as pernas ao redor do peito dele, como uma cobra segurando uma presa, e pressiona os dois braços em volta do pescoço, em um mata leão.
   — Uau – Charles sussurra.
   — O que está acontecendo!? Isso está demais! – Gal diz com a voz um pouco trêmula, tentando se recompor, a irritação tomando vez. – eu já dei a única opção, boa o suficiente para tirar a sua culpa, simplesmente vão embora!
   — Não iremos, até que isso pare – consigo dizer, mas soa mais forçado do que quero, talvez pelo fato de eu estar participando disso até pouco tempo. Não sou uma heroína, e agora pensando melhor, talvez ameaçar uma mulher importante como ela pode me trazer problemas nessa cidade que nem conheço. Mas não desisto, já fui longe e só daria razão.
   — Não digo que você está de toda errada – ela admite. – mas também não tem consciência nenhuma do que realmente isso significa. Você não parece ser o tipo de pessoa que vai me matar, vai?
   — Não me testa – digo entre dentes, apesar de hesitante. Não sei se conseguiria, de verdade, mas um misto de raiva, arrependimento e desespero brota em mim, e consigo imaginar mil coisas diferentes agora. Eu poderia piorar tudo matando ela, não me perdoaria, mas o que posso fazer? Ir embora seria uma opção tão viável, não é da minha conta.
   Mas a morte deles também seria minha, sou uma da demais lúcidas aqui para impedir isso. Apesar de nem mesmo eles parecerem se importar, posso impedir algo mesmo que seja por uma vez, não posso carregar mais essas mortes.
   — Sara, o que pensa fazer? – Winney se aproxima de mim, com a voz mansa. Ela parece estar com medo de que eu faça besteira.
   — O necessário – respondo, engolindo em seco.
   Gal e eu nos mantemos em um embate de olhar, eu respiro fundo, pronta para qualquer coisa, tentando considerar qualquer ação, e ela exala desconfiança e uma pitada de fúria. Não parece a mesma pessoa de momentos atrás, mas sua elegância ainda se mantém em sua postura, mesmo com a ponta de uma lança a um centímetro de sua garganta. Ela não parece assustada, muito pelo contrário, Gal dá um passo a frente.
   Por eu manter a arma fixa no ar, é inevitável que ela entre em seu pescoço. E é exatamente o que acontece, mas a lança não rasga sua carne, simplesmente atravessa seu corpo. Ela continua vindo na minha direção, e a arma sai pela parte de trás dela, Gal não demonstra incômodo algum, não vejo sangue, e por mais confusa que eu esteja, não estou surpresa por ver algo assim, já vi coisas mais estranhas.
   Mas o que diabos ela é?
   — MAS QUE PORRA? – Winney dá alguns passos para trás.
   Gal se aproxima de mim e fica cara a cara, ela parece ter diminuído um pouco, ou apenas tive essa impressão. Sua expressão, agora é fechada, não contém mais o sorriso cativante que estampava seu belo rosto.
   — Sei que está fazendo o necessário – ela diz. – e não digo sobre isso aqui, falo de sua missão, fico feliz que tenha lutado contra isso, pois os tempos estão loucos, criança, e seria triste um objetivo nobre ser barrado por um desejo primitivo.
   Estou me tremendo, um calafrio ameaça romper minha coluna. A voz dela mantém um tom sombrio, suas palavras parecem palpáveis de tão pesadas. Ela sabe da minha missão? Não consigo absorver totalmente sua fala e me perco em dúvidas estonteantes.
   — O que está acontecendo? Quem é você? – pergunto com a voz trêmula, mal sinto a boca se mexendo.
   — Vi que já passou por um – Gal toma meu pulso em suas mãos, a que está com a fita azul, cobrindo-o. – me pergunto quão longe vai, ou se conseguirá a tempo.
   Gal tira as mãos do meu pulso e ao lado da fitinha azul, agora tem uma laranja. Do mesmo formato, tamanho e intensidade de cor. Uma parte de mim sabe que se eu tentar tira-la, não conseguirei. Estou assustada, mas não com a Gal, sei que deuses e divindades existem, e que ela é uma, agora faz sentido. Mas estou apavorada com o que essas fitas significam, se estou condenada ou marcada.
   — Você ainda não me disse quem é você – pergunto, respirando raso. – e nem o que é isso.
   Seus olhos azuis encaram os meus com afinco e julgamento, e mal consigo segurar o pesar deles, seu rosto de perto é bem mais rígido do que belo, como uma escultura.
   — Você é mais esperta do que isso – ela diz. – olhe ao seu redor.
   A maioria das pessoas estão paradas, olhando pra gente, segurando comida, ou deitadas no chão, enquanto se contorcem com alguma dor. O primeiro pensamento que passa pela minha cabeça é um pouco ousada, mas o que consigo dizer é:
   — A guardiã das asas! – concluo.
   Ela abre um pequeno sorriso, mas que é tão afiado quando a ponta da lança que eu carrego através dela.
   — Não me chamam assim, mas acho que sim – Gal se afasta de mim, a lança passa por seu corpo como se ele fosse de vento. – vocês vieram atrás dela, mas sinto dizer que não está apenas aqui.
   — Se não está aqui, como pode ser a guardiã de algo que não tem? – Agnes aparece do meu lado, limpando o sangue da adaga em um pedaço da camisa que ela arrancou do homem que ela deixou desacordado atrás de si.
   Eu olho pra ela incrédula, quase indo ver se ele está morto, mas consigo ver o peito dele subindo de descendo, então está apenas desmaiado.
   — Sou uma das – Gal responde de costas. Ela ergue as mãos e então algo acontece.
   Todas as comidas desaparecem das mesas e do chão, junto com algumas pessoas de sua comitiva pessoal, entre eles o George. Eles somem igual aconteceu no templo de Ártemis, com as pessoas que andavam com o Matias. As outras ainda permanecem aqui, caídas no chão, sobre mesas ou sentadas na beira do cais, como personagens de um jogo interrompido, talvez é o que sejam.
   — O que você fez com eles? – pergunto confusa.
   — São os condenados, tiveram o mesmo objetivo que você, mas não a mesma recusa – ela diz exatamente como Matias falou pra mim, a sensação de dejavu me consome. – irei decidir o que fazer com eles, ainda.
   Gal se vira, passando o olhar entre todas nós, se demorando no Charles.
   — Ele irá esquecer o que aconteceu aqui, é apenas um turista curioso – ela explica. – foi o único dentre os que eu controlava, que sentiu a necessidade de ajudar você – ela aponta com a cabeça para Agnes. – então permiti que fizesse isso, ela morrer atrapalharia meus planos, mas percebi que quase acontecer teve o mesmo efeito. Alguns sentimentos realmente se sobressaem – dessa vez seu olhar rapidamente vem em mim.
   Gal desvia o olhar para Winney.
   — Muito bom que você tenha pensado por outra vida antes da sua – ela comenta. – mesmo que tenha dúvidas sobre mantê-la, ou não.
   Winney parece perder a cor do rosto, ela engole em seco e segura a respiração, chocada com algo que não entendi. Ela desvia o olhar e percebo que estão marejados de lágrimas, mas não entendo o motivo. O que Gal quis dizer com isso? Estou pronta para ajudar Winney, quando Gal se dirige a mim.
   — Sinto muito não ter as asas aqui – ela fala. – mas você chegou mais longe do que qualquer um. Ártemis já mandou muitas, mas nenhuma conseguiu – ela dá uma risadinha baixa, como se lembrasse de algo. – aquela deusa, precisa controlar o apetite por chocolate, ela sempre exagera, sei disso bem.
   E com um movimento de mãos, desaparece. Simplesmente assim, como uma cortina invisível caindo sobre ela.
   — Espera, você não disse o que realmente aconteceu! – Agnes grita para onde Gal estava.
   “Não me chamam assim, mas acho que sim.”
   As palavras de Gal rondam minha cabeça como moscas. Uma parte do meu cérebro detectou algo, a outra tenta adivinhar o que. A semelhança com o que aconteceu ontem é absurda. Uma nova fita aparecendo no meu braço, logo após uma pessoa esquisita soltar frases aleatórias sobre quem é e o que está acontecendo. As pessoas desaparecendo facilmente, chamadas de condenados, pois não recusaram algo.
   “São os condenados, tiveram o mesmo objetivo que você, mas não a mesma recusa.”
   — O que ela quis dizer com “sou uma das”? – Agnes pergunta pra mim, mas mal escuto sua voz. Minha cabeça gira com tantos pensamentos.
   Olhando ao meu redor, vejo toda a situação se desenrolando devagar. Algumas pessoas parecem acordar de um transe, entre eles o Charles. Que pisca os olhos devagar, como se acordassem. Outras vomitam aos montes, ou se sentam após colocarem a mão na barriga. Lembro que me impedir de sentir o cheiro da comida que havia aqui, me fez manter a lucidez. Toda a comida que ela levou junto consigo, não era de todo real.
   “precisa controlar o apetite por chocolate, ela sempre exagera, sei disso bem.”
   Pensamentos invadem meus pensamentos aos montes e capito coisas do que querem dizer, não consigo formar uma linha de raciocínio de primeira, mas sei o pontapé inicial.
   “Olhe ao seu redor.”
    A palavra Gal, mudaria se tivesse apenas uma letra a mais.
   — Gal é o pecado da Gula – digo, e sinto que minhas palavras tomam mais consistência longe da loucura que é minha cabeça. – e eu acho que sei como estamos buscando essas asas.

Nix - A queda dos deuses Vol. IIOnde histórias criam vida. Descubra agora