capítulo 1

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p Ela o observa do esconderijo, como já fizera duas vezes. Na primeira vez, ele cortava lenha, mas hoje, depois da pesada nevasca típica de meados de dezembro, ele estava limpando a calçada. E hoje ela iria pegá-lo.
Com o coração na boca, ela observa a violência cuidadosamente contida com que ele trabalha na neve. Seus movimentos iguais aos anteriores. Os movimentos da pá produzindo marcas exatamente iguais às anteriores. E sob tal rigidez, ela percebia a fúria aprisionada e contida por pura força de vontade, como o invólucro de uma bomba.
Endireitando-se e respirando levemente para que ele não a visse, ela imaginou como faria. Por trás, ela pensou, tão rápido quanto possível, para não dar tempo de ele reagir.
Só um movimento rápido, e tudo estaria feito — se ela não perdesse a coragem, como anteriormente.
Algo dizia a ela que tinha que ser hoje, não haveria outra oportunidade. Ele era cauteloso e disciplinado e - se não estivesse tão zangado – seus sentidos aguçados de homem lobo logo detectariam seu esconderijo na neve, sob a cobertura de abetos do pátio frontal.
Ela tremeu, tensa pelo que havia planejado. Uma emboscada. Débil e covarde, mas, a única possibilidade dela pegá-lo. E precisava fazer isso, porque era uma questão de tempo até ele perder o controle que no momento mantinha, trabalhando com a pá enquanto o lobo se enfurecia dentro dele. E quando seu controle fracassasse, pessoas poderiam morrer.
Perigo. Ele podia ser muito rápido. Se ela falhasse, ele poderia mata-la. Ela precisava confiar em seus reflexos de mulher lobo. Era necessário fazer isso. A decisão deu-lhe forças. Seria hoje.
***
Charles ouviu o SUV, mas não olhou para cima. Tinha desligado o celular e ignorado a voz do pai em sua mente até que desaparecesse. Como ninguém vivia nos arredores da estrada coberta pela neve da montanha, o SUV só podia significar o próximo movimento de seu pai na intenção de forçar seus limites.
— Ouça, Chefia.
Era um lobo novato, Robert, escolhido para ser o mensageiro do alfa do bando Aspen Creek1 por ter cometido alguma falta. Algumas vezes o Marrok ajudava esses tipos; em outras, só restaurava a ordem. Se Robert não aprendesse disciplina, provavelmente seria tarefa de Charles executa-lo. E no caso de Robert não mostrar boas maneiras, sua eliminação não o incomodaria tanto. O fato de Bran tê-lo enviado provava
o quão furioso seu pai estava com o mensageiro.
— Chefia! — O homem sequer saíra do carro. Charles concedia a poucos o privilégio de chamá-lo por outro termo que não seu próprio nome, e esse filhote de cachorro não estava entre esses.

Charles deteve-se e encarou o outro lobo, simplesmente deixando-o perceber onde pisava. O homem perdeu seu largo sorriso empalidecendo e baixando o olhar instantaneamente, o batimento cardíaco fazendo o ritmo sanguíneo pulsar em seu pescoço devido ao medo repentino.
Charles sentiu-se mesquinho. E ressentido pela indignidade do transgressor e pela fúria que ele despertara. Dentro dele, seu Irmão Lobo cheirou a debilidade de Robert e gostou. A tensão de estar desafiando o Marrok, seu Alfa, deixara seu Irmão Lobo querendo sangue. Robert serviria.
— Eu... ahn...
Charles não disse nada. Deixou o idiota fazer o trabalho. Entrecerrou as pálpebras e observou o homem se retorcer ainda mais. O aroma de medo agradou seu Irmão Lobo e ao mesmo tempo fez Charles se sentir um pouco doente. Ele e seu Irmão Lobo normalmente mantinham-se equilibrados, mas, talvez, o problema fosse o fato de o homem no momento também desejar matar alguém.
— O Marrok quer vê-lo.
Charles esperou um minuto inteiro, imaginando quanto tempo o garoto levaria para terminar a mensagem.
— Isso é tudo? — Sim, senhor. Esse “senhor” estava muito longe do “Ouça, Chefia” de antes.
— Diga-lhe que irei depois que meu caminho estiver claro. — E Charles voltou ao seu trabalho. Depois de limpar a neve por algum tempo, escutou o SUV dar a volta na estrada estreita. O veículo girou e depois partiu ao encontro do Marrok, com Robert desejando urgentemente escapar de Charles. O Irmão lobo ficou satisfeito; Charles tentou não ficar também. Sabia que não era certo chamar a atenção desafiando as ordens do pai, especialmente diante de um lobo que necessitava correções, como Robert. Mas Charles precisava de um tempo.
Tinha que ter mais autocontrole antes de confrontar novamente o Marrok. Necessitava estar verdadeiramente controlado para explicar, de forma racional, porque a decisão do Marrok não era boa – ao invés de simplesmente ataca-la, como nas últimas quatro vezes que Charles tentara convencê-lo.
Desejou, não pela primeira vez, ter facilidade com as palavras. Seu irmão às vezes conseguia mudar o pensamento do Marrok com argumentação, mas ele não tinha a mesma habilidade. Charles apenas sabia que o pai estava errado.
Ele concentrou-se na neve, respirou profundamente o ar frio… e algo pesado aterrizou em seus ombros, atirando-o de barriga para baixo no solo. Dentes afiados e uma boca quente roçaram em seu pescoço e rapidamente se foram, assim como o peso que o derrubara. Imóvel, Charles entreabriu os olhos e avaliou de cima a baixo, cautelosamente, o lobo negro que o enfrentava… a cauda agitava-se rapidamente e as patas dançavam na neve, com as garras estendendo-se e retraindo como as de um gato com excitação nervosa.
E algo fez click no interior do seu Irmão Lobo, desativando a cólera aguda que revirava o estômago de Charles há duas semanas. O alívio foi suficiente para que ele enterrasse novamente o rosto na neve. Só ela, somente com ela seu Irmão Lobo se aplacava totalmente. E algumas semanas não era tempo suficiente para acostumar-se a esse milagre — ou para deixar de ser estúpido e pedir a ajuda dela.
Provavelmente, esse era o motivo pelo qual ela tinha planejado a emboscada.
Quando ele estava no limite, explicara para ela quão perigoso seria tentar pega-lo desprevenido. Mas, aparentemente, o Irmão Lobo reconhecera perfeitamente quem o atacava: apenas se deixara derrubar sobre a neve. Charles sentiu-se bem com o frio no rosto.
Pedaços de gelo rangeram debaixo de suas patas, e ela soltou um uivo de ansiedade - provando que não o tinha percebido observá-la. O nariz frio dela tocou sua orelha e ele se esforçou para não reagir. Fazendo-se de morto, com o rosto sepultado na neve, deixou o sorriso aumentar livremente.
O nariz frio se retirou e ele esperou seu retorno com o corpo aparentemente frouxo e sem vida. O leve cutucão das garras dela o manteve firme como uma rocha, mas quando ela mordeu seu traseiro, não pode conter um tremor e soltou um som agudo. Depois disso era inútil fingir, então se virou e ergueu o corpo até curvar-se. Ela rapidamente correu para longe do seu alcance, depois se voltou novamente para ele. Charles sabia que seu rosto não demonstrava nada. Tinha muita prática em controlar sua expressão. Mas ela viu algo que a fez curvar-se para frente e afrouxar a mandíbula em um sorriso aberto de lobo - um convite universal para uma brincadeira. Ele começou a avançar e ela saiu correndo com um som agudo de excitação.
Lutaram por todo o pátio dianteiro, deixando em completa desordem sua passagem bem cuidada e convertendo a neve lisa em um campo de batalha coberto de impressões de patas e corpos. Ele permaneceu na forma humana para equilibrar o jogo, já que seu lobo pesava mais que a forma lupina dela cerca de sessenta ou oitenta libras2. E ela não usou as garras ou os dentes contra a frágil pele dele.
Ele riu dos falsos rosnados que ela soltou quando fingiu atacar o estômago dele — depois riu outra vez quando um focinho gelado empurrou seu casaco e meteu-se sob a camisa, provocando cócegas nas laterais de sua cintura. Ele foi cuidadoso para não machucá-la sequer acidentalmente. Que ela se arriscasse tanto era uma prova de confiança imensamente apreciada, mas ele não deixou seu Irmão Lobo esquecer que ela não os conhecia bem e tinha muitas razões para temer o que eram: macho e lobo dominante.
Ele escutou um carro dar a volta. Ele poderia ter parado a brincadeira, mas seu Irmão Lobo não estava com vontade de entrar em uma batalha real. Agarrou a pata traseira dela e a puxou ao mesmo tempo em que rodava fora do alcance das presas intermitentes. E ignorou o pungente perfume da cólera de seu pai… Um aroma que se desvaneceu abruptamente.
Anna estava inconsciente da presença do pai dele. Bran podia desvanecer-se nas sombras como se fosse um homem qualquer e não o Marrok. Toda a atenção dela estava em Charles, e isso fez com que o Irmão Lobo deixasse até o Marrok em segundo plano. Isso preocupou o homem porque a falta de treinamento dos sentidos lupinos dela poderia deixar passar algum perigo que algum dia a mataria. O Irmão lobo, certo de que podia protegê-la, desfez a preocupação de Charles, arrastando-o de volta à alegria da brincadeira.

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