O PRESENTE

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Lily

Afastei -me o máximo que pude do palácio.  Ao longe, avistei o muro de contenção; eu tinha a intenção de transpô-lo, mas o cançasso e a fome fazia meu corpo se abater. As grandes construções ficaram para trás; havia caminhado por horas e meus passos vacilavam. À essa altura, os sapatos já não eram mais tão confortáveis quanto antes.

O que me separava da liberdade  da liberdade se materializara numa montanha de pedras em formato de muro e um mar de águas- o fosso-  ladeando a construção faraônica. O grande portal só podia ser acessado por uma ponte elevadissa, que naquele momento estava erguida e fortemente vigiada. Entendi que não conseguiria sair, não naquele momento.  Então, retrocedi, procurando não ser vista. Abriguei-me no bosque, entrincheirando-me junto a uma grande árvore.

Tirei meus sapatos e joguei-os de lado; meus pés estavam doendo mais do que poderia supor. Após acalentá-los com uma leve massagem, aconcheguei-me como pude, na tentativa de descansar da exaustiva caminhada. Mal cochilei e já acordei sobressaltada ao ouvir passos;  um vulto se aproximava, o que me fez lançar mão de uma haste de madeira para me proteger.

- Não se aproxime! -ameacei, quem quer que fosse, saltando em posição de ataque.

-Acalme-se...

Aquela voz parecia familiar. Quase fui as lágrimas ao reconhecê-lo.

-Aaron? Como me achou?

- Eu a segui!- ele respondeu se aproximando -Perdão, eu precisava ter certeza de que ficaria bem!- Completou.

-Por quê?

-Fostes gentil comigo!

Ele me pareceu encabulado ao dizer isto.
Já eu, não me contive e o abracei.

-Por Deus, obrigada!

Desta vez, fui incapaz de conter a emoção. Chorei. Aliás, ultimamente eu estava sendo muito chorona, mais do que gostaria.

-Fiz algo errado?- ele pareceu confuso com minha atitude.

-De modo algum! É que os seus nunca me trataram tão bem assim.- desabafei.

-Então, venha! Trouxe-lhe algo para se alimentar! Deve estar faminta!

-Sim! Como soube?

- Não comeste nada no palácio! - lembrou.

-Hum... é verdade...

A fome era tanta que comi com voracidade. Olhando de esguelha, percebi que ele me encarava como se admirado, provavelmente nunca tenha visto uma mulher comer com tanta vontade.  Isso me deixou sem graça.

-Perdoi-me! Deve achar que não tenho educação.

- De modo  algum! Fique à vontade!

Embora, à princípio, eu tenha ficado envergonhada, continuei a comer. Há dias não tinha uma refeição decente, graças à Marek. Não pude deixar de amaldiçoá-lo mais uma vez, mas limitei-me a fazê-lo em pensamento. Ainda o faria pagar por todas as humilhações que sofri. Jurei para mim.

Por enquanto, saciar a fome estava de bom tamanho. Quando me dei por satisfeita, alisei a barriga.

-Acho que vou explodir!

Ele riu com minha manifestação de humor. Seu sorriso era lindo.

-Oh, o que é tão engraçado?

-Não é nada!

-Hum...sei!- também ri - Aaron, se seu rei descobrir que ajudou uma impura, estará com sérios problemas! - Alertei.

-Ele não precisa saber, certo?

-Certo!- concordei e recostando-me a árvore, respirei fundo -Obrigada!

Houve um instante de silêncio entre nós.

-Então, o comandante Marek quer capturá-la?

-Sim!

-Por quê?

-Bem, e não é isso que o marido faz com suas esposas impuras?-Soltei.

-Esposa?- Ele sobressaltou-se- A senhora é a companheira de um comandante e mesmo assim se apresentou como noiva do rei? O que fez, além de proibido, é indigno.

-Ei, calminha aí! Em primeiro lugar: não me apresentei como noiva do rei, foi apenas um terrível engano. Na verdade, eu estava tentando fugir vestida de noiva e terminei ali na sala real. Segundo: fui forçada pelas circunstâncias a me tornar esposa daquele canalha com a promessa de ter liberdade. Cumpri minha parte no acordo, mas ele não. E se quer saber mais, nem mesmo sei se aquela coisa é macho ou fêmea. - Desabafei indignada.

- Aquela coisa?

-Ah, me desculpe! Sei que ele é um de seus iguais. Não foi minha intenção ofendê-lo.

- Não se preocupe, não me ofendeu! - ele garantiu - Qual era o acordo?

-Basicamente, eu fingiria ser sua esposa e no final, ele me daria minha liberdade, já que seu rei nos relegou à servidão por sermos impuros...- Minha voz saiu arrastada, eu sufocava o choro -Desculpe Aaron, não quero mais falar disso...

- É claro! Eu que peço desculpas por minha insistência. 

-É justo! Você se arriscou para me ajudar.

***

Aaron

Continuamos conversando trivialidades por certo tempo, até que a voz dela se tornou arrastada e quando me dei conta, ela dormira.
Estive  meditativo sobre tudo que ouvi; foi inevitável olhá-la com profunda admiração.

Talvez, ela não tivesse se dado conta de que mesmo não sendo sua intenção, havia se tornado noiva do rei assim que adentrara na sala real.

De repente, ela deslizou a cabeça para meu ombro e me abraçou, o que me forçou a sair de minhas cogitações.

-Aqui está tão quentinho! - ela balbuciou.

-O quê?

Olhei-a.  Ela mantinha os olhos fechados. Provavelmente, estava sonhando, o que me deixou sem reação.  Travei uma pequena luta interior, decidindo se a aconchegava ou não em meus braços. Por fim, o fiz.

Eu não tinha planos de permanecer ali por muito tempo, mas acabei adormecendo, também. Abraçá-la foi muito agradável e embora não considerasse honroso o que eu estava fazendo, não pude me abster.

Um pouco antes do amanhecer,  despertei num sobressalto.

-Senhora?

-Sim?

Ela abriu os olhos preguiçosamente.

-Já está amanhecendo...

Ela quase saltou dos meus braços.

-Desculpe!- ela pediu sem graça, afastando-se um pouco.

Ergui-me em silêncio; ia me retirar, mas me lembrei de algo importante e voltei-me para ela.

-Pegue isto! É um presente especial! Revele-o se ficar em perigo!

Disse colocando o objeto na mão dela e me retirei com certa urgência.  Para ela, deve ter parecido que eu fugia de um animal feroz.

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