CAP 36- Orquestrando reuniões com o grupo✉

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Capítulo 36 _________________________

— Mentira?! E ela te chamou para sair?! — Antônella exclamou dando uma chupada generosa em seu milk shake no momento em que compartilhei o que havia acontecido entre Letícia e eu.
 


Corei e observei a pequena praça florida e os banquinhos coloridos que a enfeitavam. Do outro lado da avenida, oHelinor Fast Foods estava com a placa luminosa do restaurante ligada mesmo de dia e um banner enorme sugerindo aperitivos e comunicando o prato do dia. Eram batatas palitos com hambúrguer de frango e maionese. Um refrigerante de groselha era aconselhado como acompanhamento da refeição.
Voltei a encarar minha amiga, que na verdade já estava praticamente preenchendo o lugar que Eliza deixou vago quando morreu, e agradeci mentalmente por conseguir tê-la tirado de dentro de sua casa ao menos um pouquinho. Fui inteligente porque sabia que hoje tinha treino de natação dela e fiquei plantado na porta do ginásio até encontrá-la saindo. Avisei que o grupo marcou uma reunião para falarmos sobre o jogo às 15:00 horas e aproveitei que ainda faltava bastante tempo para o horário marcado e convidei-a para comermos alguma coisa no Helinorantes que precisássemos encarar as responsabilidades. Pedi fritas com hambúrguer cheddar extra e cremoso. Ela pediu somente um milk shake para não sair tão fora da sua dieta atlética com tão pouco tempo para um nova competição que poderia salvar sua família do inferno que viviam e quitar parte da dívida com o agiota. Optamos comer do lado de fora, na pracinha "Borboletas e flores", pois àquela altura do campeonato, já sabíamos que celulares diversos tinham ouvidos e não queríamos que os comparsas do agiota nos ouvissem. Precisávamos de privacidade e paz, colocar o papo em dia com calma e despreocupação e fingirmos que ainda podíamos ser adolescentes normais, pelo menos por um curto momento antes do grupo aparecer.
 
— Sim... — confirmei totalmente tímido. — Vamos ao parque amanhã... — incrementei a informação. Um suspiro nervoso escapou das minhas narinas. Encarei o chão com um certo pânico. — Eu estou nervoso pra caramba, Nella — compartilhei imerso em minha ansiedade. — Não sei, mas do jeito que tudo foi... Acho, acho que ela vai tentar me beijar... Não sei se eu estou pronto para perder o BV, mas eu quero muito beijá-la, mas... Mas e se não for bom? E se eu achar ruim?... E se ela achar ruim?
 
Minha amiga gargalhou achando meu desespero divertido.
 
— Vai ser ruim — garantiu de forma esnobe.
 
Arregalei os olhos e a encarei com indignação.
 
— Antônella! — repreendi. Poxa! Eu havia a chamado para conversar para me acalmar e não ter conspirações negativas jogadas na minha cara.
 
Ela riu acentuado e fez uma careta de deboche.
 
— Calma — pediu tentando controlar seu riso. — Não estou jogando praga nem dizendo que vai ser ruim porque você não sabe e essas coisas, e sim porque é o primeiro, e o primeiro quase sempre NUNCA. É. BOM. Vai por mim, vai ficar um tempão se perguntando o porquê as pessoas gostam tanto de beijar, mas com o tempo, depois de dar mais de um, vai se questionar como um ser humano consegue viver sem isso?! É viciante depois que aprende e pega a prática, o beijo passa de um ser desconhecido e asqueroso para algo gostoso e muito bem vindo, mas claro que com o parceiro certo, com ambos querendo e com o encaixe ideal das bocas... AAA! Quando o beijo encaixa com o da pessoa que você está afim é tão bommm! Dá até um alívio, porque quando não encaixa é decepcionante, sério, você não sente vontade de beijar a pessoa nunca mais!... Bem, pelo menos eu me sinto assim, não sei você, pode ser diferente. Tem gente que fica com nojo mesmo depois de dar vários, sabe? Cria repulsa.
 
Fiz uma careta meio enjoado com seu depoimento. A contextualização de beijo sempre me deixava com o estômago revirado. Era difícil para eu entender como compartilhar saliva, língua e BACTÉRIAS! Era algo tão almejado pelas pessoas, e mais difícil ainda para eu aceitar que estava de fato louco para fazer aquilo, desejoso para finalmente entrelaçar os lábios de Letícia nos meus. ÉÉÉ! Tenho que concordar com os mais velhos, a adolescência é uma fase bipolar e cheia de novidades e sensações estranhas, um mundo desconhecido e que às vezes vira de cabeça para baixo!
 
— Acha que eu vou criar repulsa?... — perguntei preocupado de verdade e com os dentes trincados. Eu me conhecia e sabia o quanto eu era do contra. Meu corpo podia muito bem querer me sacaniar e moldar o meu cérebro para odiar algo importante em uma relação amorosa, ôh se ele podia! E o que me assustava, é que eu não queria odiar! NÃO MESMO!
 
Antônella deu uma chuchada sádica em sua bebida. Com uma expressão crítica e uma postura despojada, negou convicta:
 
— Nãoo, você tem mais cara de que quando começar, não vai querer parar mais. Théo, na boa? Você tinha de tudo para ser o MAIOR pegador da escola, de verdade. As meninas sempre te põe nas classificações mais altas de gatinhos da QM, você é um gato e para completar é “misterioso” “sombrio” e ATRAENTE PARA CARAMBA! Tenho até medo do que você pode se tornar quando descobrir o seu valor e sua beleza, e mais medo ainda de quando apreciar a “arte” de beijar. Prevejo meninas de corações estraçalhados arrependidas por terem caído na lábia do “tímido-gato-pegador-leitor”.
 
Fiz uma careta de reprovação e nojo e semicerrei os olhos com repulsa de seu comentário.
 
— Cala a boca — lhe dei um tapinha de leve no braço.
 
Ela riu.
 
— Estou te falando, você poderia ser um monstro se quisesse. Felizmente, ou infelizmente, não chegou a perceber e nem querer isso.
 
Revirei os olhos discordando de seu argumento. A criatividade de Antônella era tão grande que não sei como ela mesma não escrevia um livro ou fazia cinema. Conteúdo ela tinha para entregar para os outros.
 
— Definitivamente me intriga o fato de você deixar claro que me vê como uma espécie de galã misterioso a cada vez que entramos em assuntos do tipo — confessei com um pingo de ojeriza na entonação. — Eu sou tão estranho que os verdadeiros galãs devem é ficarem ofendidos pela comparação mal feita. Toma cuidado, eles podem querer ir atrás de você por espalhar calúnias por aí — caçoei.
 
Ela revirou os olhos.
 
— Se eu estivesse com paciência, eu até tentaria trabalhar na sua autoestima agora e quebrar a merda de um espelho na sua cara até os vidros dele te cortarem tanto e impregnarem tão agressivos na sua pele que você não poderia nunca mais negar que é um belo de um partidão! — Enrijeci o corpo com medo da ferocidade da ameaça. — MASSSS! Como hoje eu não estou com paciência de repetir outro discurso de autoajuda e nem a fim de alimentar seu ego que já é topetudo demais mesmo se achando feio, vou fingir que não ouvi isso para não acabar derramando o resto deste milk skake na sua cabeça. Sério, Thé-o A-ze-ve-do van de Berg — meu nome saiu tenebrosamente horripilante de seus lábios e com pausas vagarosas, propositais, estratégicas e assustadoras. A Antônella chegou perto me encarando com os olhos grandes semicerrados. Contraí a mandíbula morrendo de medo da sua postura minaz. —, a próxima vez que eu escutar você se chamando de feio, até mesmo de brincadeira, eu juro, JURO! Que esfrego a droga dessa sua cara bonita no asfalto até a quentura do concreto deformar todo o seu rosto!
 
Tremi com medo da sentença cruel que me acometeria. Engoli em seco.
 
— Credo, falando desse jeito parece até que a ameaça é verdadeira... — tentei brincar e sair por cima. Ela estava blefando, não tinha porque temer.
 
A Nella arqueou uma sobrancelha e rebateu cética:
 
— E quem disse que não é?
 
Balancei o corpo tentando espantar um calafrio.
 
— Ai! Para com isso! — pedi desviando meu olhar do dela e focando no meu lanche. — Está parecendo uma psicopata... Estar me deixando com medo...
 
Ela riu com escárnio e melindrou um “tão medroso” com deboche, encarnando uma personagem totalmente diferente da anterior. Ao invés da superioridade feroz, agora minha vizinha tinha optado por uma postura fofa, meiga e desleixada, bem parecida com a verdadeira Antônella. Aquilo me acalmou.
 
— Aoww, tá bom, parei! Você é mesmo um gatinho assustado, sr desespero. Ahhh! Ficou até vermelhinho de medo e vergonha. Gracinha! — apertou minhas bochechas.
 
Espantei nervoso, suas mãos.
 
— Ei, ei, para! — repreendi irritado.
 
Minha amiga sorriu e retirou seus dedos gelados e molhados, por causa da garrafa do milk shake, de mim e apoiou com deselegância a coluna no banco duro de alumínio colorido da pracinha.
 
— Hummmm! MAS ENTÃO QUER DIZER QUE AMANHÃ MEU AMIGO NENEZINHO VAI DAR O PRIMEIRO BEIJO?! — retomou o assunto, provocativa.
 
Corei.
 
— Para de gritar isso, sua louca! — recriminei com vergonha e de olhos arregalados. Pessoas que passaram me encararam com um ar de desprezo e desaprovação da gritaria de Antônella. Encolhi meu corpo na cadeira desejando ter poderes de me tornar invisível e desaparecer.
 
Ela gargalhou e aconselhou:
 
— Paro não! Isso é motivo de alegria! Meu menininho está crescendo!! A sociedade inteira precisa saber disso! — a fuzilei deixando claro que mais um grito do tipo eu levantaria e a deixaria sozinha e nunca mais contaria nada relacionado a minha vida amorosa a ela. A Nella percebeu, pois baixou, mesmo que contrariada, bastante o tom de voz, voltando à normalidade de um diálogo entre duas pessoas, e não com a cidade inteira. — Afff! Você é tão problematiquinho! Qual é, todo mundo nessa cidade vai ter que dar ou já deu o primeiro beijo, ninguém está nem ligando que estou gritando isso. — Arquei uma sobrancelha nervosa e avisei só pelo olhar que se eu abrisse minha boca para rebater, nós iríamos acabar brigando. A Nella revirou os olhos. —... Tá bom, parei — se rendeu emburrada. Cruzando os braços e de cara feia, aconselhou — Não esquece de comprar uma balinha para o hálito ficar gostoso, ninguém merece beijar alguém com bafo e com gosto ruim na boca. Ah! E importante, depois do beijo você vai sentir que sua boca está meio babada, sabe? É normal, liga não... Eeee, você quer que eu te passe umas dicas de como beijar?! Mano, sério, eu vi um vídeo muito bom que ensina uma técnica, se você quiser eu posso te passar e...
 
— Antônella — a interrompi cansado de pensar naquele assunto, com pânico na realidade. Minha vizinha ser tão ligada nos 220 com tudo às vezes era cansativo e até desgastante demais para mim. Balancei a cabeça de um lado para o outro mostrando o quão desconfortável eu estava. — Valeu pelas dicas, mas sério, não quero ficar pensando muito nisso agora, senão eu acho que vou desistir. Não me leve a mal, mas a forma como você engrandece o beijo e passa “n” instruções de como fazê-lo me deixa inseguro. Estou começando a criar fobia disso de tão complicado que parece ser dar a bosta de um beijo. Não é só enfiar a língua na boca da pessoa?! Ou nem enfiar?! Sei lá! Para quê tanta regra num troço tão... BACTERIANO!?
 
Dessa vez a gargalhada de minha vizinha foi tão alta que cheguei a repassar mais de uma vez o que eu falei na mente para entender o que era tão engraçado assim. Ela se remexia que nem uma pipoca estourando numa panela, sob o banco da pracinha.
 
— “Bacteriano?” — zombou o termo que eu usei e enxugou uma lágrima de alegria que escorria dos seus olhos. — Ai, Théo! Só você mesmo para pensar nessas coisas na hora do beijo, é um neném mesmo, um neném desesperado — Passou a mão pelos meus cabelos. Não preciso nem dizer que retirei suas palmas de mim sem nenhuma elegância e morrendo de raiva de ser caçoado. Ela sorriu para mim como quem não liga de mexer com a paciência de uma fera prestes a atacar. — Mas tudo bem, você parece nervoso mesmo, vamos mudar de assunto — concordou.
 
Suspirei aliviado.
 
— Vamos — reafirmei mordendo com gosto meu hambúrguer e ficando tenso ao ousar perguntar, mesmo sabendo que era melhor não. Mas eu não aguentava mais, precisava saber aquilo — Como estão as coisas na sua casa?
 
Antônella, que alguns segundos atrás parecia tão alegre e despreocupada com a vida, abraçou escabreada o próprio corpo e fixou o olhar nos pés com uma frieza indecifrável. Ela trincou os dentes e contraiu o maxilar de forma nada generosa.
 
— Se existisse um guardião de pesadelos que gostasse de fazer suas presas humanas sentirem na pele as desventuras que tem nos ocasionais sonhos de horror das badaladas da madrugada, pode ter certeza que ele escolheu minha vida para fazer todos os sonhos ruins virarem realidade. Minha casa está um caos tão grande, que me arrisco a dizer que caos ainda é um termo muito pequeno para descrevê-la. Estar tudo um inferno horripilante.
 
Enrijeci o corpo preocupado com seu depoimento e apoiei tenso minhas mãos sobre as pernas para ficar mais próximo dela.
 
— Está tão ruim assim?
 
A Nella riu amargo.
 
— Ruim é pouco. O casamento dos meus pais está indo por água abaixo. Meu irmão resolveu enfrentar os capangas e agora está acamado de tanto apanhar. A Zóe chora o dia inteiro e se prendeu dentro do quarto temendo sair e algo ruim acontecer. Os capangas ficam me vigiando e me cercando aonde quer que eu vá dentro de casa, alegando que já que não tenho celular mais, vai ser daquele jeito agora. Olho no olho, e é melhor eu me comportar, senão você vai ser o próximo a ter uma visitinha deles. — Um calafrio passou agressivo pelo meu corpo.
 
— Eee... Eles sabem que está aqui? Comigo? — me apavorei com o quanto as coisas estavam graves para ela, e admito, uma parte egoísta de mim temeu ser acometida da mesma desgraça só por estarmos conversando. Senti vontade de ir embora, mas permaneci ali. Do. Lado. Dela. E era onde eu ficaria até que tudo se tornasse seguro, ainda que para isso eu tivesse que enfrentar os mesmos fantasmas que os dela: Os capangas ou, quem sabe algum dia, o próprio agiota.
 
Minha amiga balançou a cabeça de um lado para o outro.
 
— Acho que não. Geralmente eles me deixam sair para treinar sem vigilância. Sabem que estou correndo atrás de uma forma de conseguir dinheiro e não seria “estúpida” de tentar fazer coisas para atacá-los. Não quando o mais sábio é mantê-los longe do que nutrir o ódio deles e fazerem chegar mais perto. Mas pelo visto — Deu uma chuchada no milk shake. O líquido escasso sendo sugado tendo quase nada na estrutura da garrafa de plástico, tilintou um ruído alto e incomodativo. —, eu sou uma “estúpida”, aliás, estou aqui justamente para armar planos contra eles. Ai se soubessem...
 
Lhe lancei um meio sorriso indeciso de fazer piada com o comentário, ou tratá-lo de forma delicada e séria. Seu rosto inexpressivo não deixava muito claro se ela estava caçoando de si, ou lamentando a trágica realidade. Decidi me abster de complementos na sua retórica e mudei de assunto puxando uma bolsa de praia desgastada e de textura verde que eu tinha pegado do fundo da gaveta do guarda roupa dos meus pais, na parte da minha mãe. Ela me mataria se sentisse falta daquela bolsona, graças a Deus, estava inverno no vilarejo dos lírios e ninguém era doido de encarar as águas gélidas da praia em plena frente fria, a não ser que pretendesse ter uma hipotermia... Ou morrer, como algum dia eu já pretendi. Sorte a minha de naquelas águas, para esse assunto, não sentir vontade de me banhar mais:
 
— Eu trouxe o restante das fitas de Eliza. Acha que alguém tem um aparelho que dê para assistir vídeo cassete?...
 
Minha vizinha arqueou uma sobrancelha descrente.
 
— Acho difícil — confessou. — Estamos em pleno século XXI, na geração Z, os “milenions”, quem atualmente teria um conversor de...
 
— OI, PESSOAL!! — A voz masculina, rouca e esganiçada de Takashi, brotou abruptamente atrás de nós, enquanto seus braços se entrelaçaram em nossos pescoços, quase nos enforcando.
 
Nella e eu pulamos no banco. Minha vizinha lhe deu um tapa merecido no braço.
 
— ESTAR DOIDO, TAKASHI?! — repreendeu furiosa. — Você quase matou a gente de susto!
 
Ele nos olhou com uma expressão despreocupada e avoada.
 
— Ah foi é? Que bom que não morreu então. Quem eu iria chamar de borboleta aquática? Ou orca encalhada? Seria uma lástima perder você, Nenella — Lhe deu um beijinho ousado na bochecha e se tacou com tudo entre nós, escalando o banco com os pés, flexionando o corpo para cima com as mãos e separando nossos corpos um do outro sem nenhuma elegância, esfregando o bumbum no alumínio relaxadamente e nos empurrando com esgueira para as pontas. — Mas e aí, estão falando de quê?!... E, calma aí! Vocês compraram lanche no Helinor e nem me chamaram?! Que absurdo! Eu tenho cupom de desconto até essa sexta, tá legal? Achei mancada não me convidarem, sejam sensatos na próxima vez e chamem a formidável companhia desse nobre que vos fala. Para a sorte dos dois, eu sou gentil com plebeus.Orca encalhada, eu estou muitíssimo magoado com você.
 
Orca encalhada?! KKKKKKKKK, essa é boaaaa!! Não aguentei segurar o riso, já sabia que viraria adepto do apelido. Antônella o fuzilou.
 
— Já falei que não gosto que me chame assim! — recriminou.
 
Takashi deu de ombros e roubou uma batata do meu lanche despreocupado de ao menos perguntar se eu me importava. Relevei. Eu sabia que a fama dele era de não ligar para nada e fazer piada com tudo. Aquele era Takashi Akira, e se eu quisesse ser amigo dele, teria que me acostumar com o seu jeito.
 
— Se eu ligasse para o que os outros gostam, eu nem estaria morando aqui, borboleta aquática, estaria na Coreia, como os meus pais queriam, perturbando coreanas e coreanos que certamente me odiariam... E, a-há! Eu não ligo! Que me odiassem, hehe. Ei, tem ketchup?  — virou para mim.
 
Franzi a sobrancelha desabituado com as mudanças repentinas de assuntos dele. Me sentia entrando numa teia desconexa de frases. Tirei um pacotinho da sacola e estendi para o garoto.
 
— Aqui.
 
— Valeu! — rasgou o embrulho com os dentes com inquietação e tacou eufórico o molho por pencas de batatas que na verdade eram minhas. Eu odiava ketchup. — Hummm! Isso está bom! — comemorou se lambuzando na minha comida.
 
Em outra época, eu teria ficado extremamente ofendido e até mesmo ser um monstro com ele por comer minha comida, estragá-la e nem sequer ter pedido. Mas era Takashi, e todos sabiam que Takashi era louco, folgado, despreocupado e avoado, não estava fazendo por mal, ele só achava que eu não estava me importando, mas duvido que pediria perdão se soubesse que sim, inventaria uma desculpa para me convencer que era uma honra para mim ter minha própria comida sendo devorada por ele, pois o mesmo estava engolindo calorias, gordura, fritura e até mesmo doenças, no meu lugar, deveria era considerá-lo um herói por estar se sacrificando tanto por mim. Ri por saber que meu pensamento era verdadeiro, ele realmente faria aquilo.
Parte do meu cérebro questionou novamente o impasse que sempre se passava na minha cabeça quando eu estava perto de Takashi. Se a forma que ele agia, era por saber que ele era tão inteligente, mas tão inteligente, que poderia governar o mundo algum dia se quisesse. Acho que se reconhecer como um crânio, o fez parar de se importar com as consequências das coisas, pois ele sabia que no final, sempre saberia ou elaboraria uma fórmula mágica para se safar. Mas em contrapartida, ele era tão esperto que fazia cálculos impossíveis de matemática de costas da lousa, mas agia como um alienado que nem sabia o que estava fazendo. Sempre tive certeza que aquilo era um truque para as pessoas não perceberem de cara do que ele era capaz, do quão poderoso podia ser se quisesse, e as enganá-las se comportando como um bobalhão ambulante para que na hora certa, as atingisse onde mais machuca, e de surpresa ainda. Ninguém em sã consciência esperaria que Takashi fosse cruel com alguém, ninguém menos eu, que sempre desconfiei dos mais “bestinhas” da escola.
 
— Théo — me chamou de repente, engolindo e mastigando ao mesmo tempo a comida. — Sabe por que eu chamo a Nenella de orca encalhada? — arqueou uma sobrancelha sapeca ansiando contar a história.
 
Minha vizinha arregalou os olhos e lhe deu outro tapa que fez um som alto de pele batendo contra a outra.
 
— TAKASHI! NÃO! NÃO É PARA VOCÊ CONTAR ESSA HISTÓRIA PARA E...
 
— Porque um dia a gente foi na praia e ela levou um caldo que começou no fundo do mar e terminou na areia! A Nenella ficou estendida no chão arenoso que nem uma morta viva, ficou toda branca de areia! Foi surreal, você precisava ter visto! Olha, eu tenho foto e... Ai, caramba! CELULAR!! EU TROUXE ESSE DEMÔNIO!! — entrou em pânico e levantou de supetão do banco tacando desesperadamente o aparelho pracinha afora. O celular dele rolou, rolou, rolou e rolou, até se partir em pedaços. Nella e eu nos encaramos completamente assustados com a cena. Takashi limpou as palmas satisfeito com o trabalho e se sentou mais uma vez no banco, como se nada tivesse acontecido. — Ufa, ainda bem que eu me livrei dele antes que fosse tarde demais. Já imaginou se os capangas descobrem da gente? Ia ser loucura. Licença, vou pegar mais uma batatinha.
 
Antônella e eu nos entreolhamos mais uma vez, preocupados. Será que ele não discerniu o que tinha acabado de fazer?! Que pessoa em sã consciência quebrava o próprio smartphone e ficava calma?! Ele só podia ser um robô! Era isso.
Acredito que pensando o mesmo que eu, Nella cuidadosamente repousou uma mão sobre as costas do garoto e contou lentamente, como se ele precisasse de alguém para narrar o que fez:
 
— Takashi, você... Acabou de... Quebrar seu celular novo...
 
Semelhantemente a uma bomba explodindo, o menino arregalou os olhos finalmente parecendo notar a gravidade do que fez e gritou saindo correndo com pavor atrás do aparelho:
 
— MEU CELULARRRRRRRR!!!!! — Se ajoelhou aos prantos recolhendo os pedaços mortais do que sobraram dele. — Não, não, nãooo! Meu filho, eu matei meu filhoo, de novo, de novoo! Vive para o papai! Fala com ele!
 
Sei que era cruel, mas não consegui fazer nada além de rir da cena. Se antes eu suspeitava, agora eu tinha certeza, o Akira era louco!
Duas figuras femininas se aproximaram de braços dados, do nosso banco. Era Ayla e Felícia.
 
— Takashi quebrou o celular dele de novo? — Ayla supôs com uma gargalhada de deboche e pena.
 
A Nella assentiu. Felícia passou furiosa as mãos pelo rosto. Eu sabia o porquê, eles eram primos (de quarto grau, mas eram) e ela morria de vergonha das doideiras dele.
 
— Arghhh! Quando esse menino vai aprender a se controlar?! — rosnou e saiu batendo os pés atrás dele. Quando minha colega parou em sua frente, não lhe consolou como achei que faria, lhe deu um tapa bem forte na cabeça e começou a discutir algo com o primo, que só sabia esfregar as mãos no coro cabeludo e reclamar que ela era agressiva demais com ele.
 
Mais uma vez ri.
 
— Alguém pode me explicar por que a Felícia está batendo no primo? — a voz de Victor Shehu brotou atrás de nós, junto a passos silenciosos e sua áurea de mistério de sempre. Os pés sujos de tinta e papel higiênico pendendo de um dos seus bolsos, unidos às roupas velhas e esfarrapadas costumeiras, me fez ter certeza que ele estava fazendo algum trabalho sujo para alguém antes de nos encontrar. Ele sempre estava fazendo um.
 
— Adivinha — Ayla desafiou lhe saudando com um sorriso encantador. Ela abraçou o próprio corpo demonstrando vergonha à presença do menino. Eles eram ex-namorados, mas tinha boatos de que ela não havia o superado. O término deles não foi bom. Ele a pegou dando um beijo em um garoto do segundo ano A, quando ela e Victor ainda estudavam na mesma sala e ele não tinha reprovado e muito menos ficado mais misterioso do que nunca. Foi num acampamento, na festa da fogueira. Dizem que o garoto forçou o beijo, outros dizem que foi ela que beijou por vingança por Victor não ter ido. O ponto de vista certo acredito que é o que ela foi forçada, mas isso não mudou o que aconteceu depois. Victor pretendia fazer uma surpresa a Ayla e chegou à fogueira exatamente no momento em que os lábios dela e de Noah Centríolo estavam entrelaçados. Desde então, as coisas passaram a ser meio nebulosas para eles. — Takashi quebrou o celular que comprou semana passada, mais um.
 
O garoto repetente arqueou uma sobrancelha cética e descansada, aparentando não estar surpreso com a resposta.
 
— Sério? Que merda. Alguém precisa ter uma conversa séria com Takashi sobre cuidar bem dos próprios pertences — comentou. Sua voz transbordava desconforto. Ele não queria e nem gostava de conversar com a Ayla, desconfiava que não queria nem mesmo conversar com a gente. Estava escrito no rosto de Victor que se não fosse pelo jogo, ele daria as costas para nós no primeiro momento e fingiria que éramos seres inanimados que infelizmente apareciam no caminho dele.
 
— Pois é... — Ayla concordou insegura também, coçando sem jeito às costas do próprio pescoço.
 
Nella percebeu o clima de tensão se formando no ar e resolveu puxar assunto:
 
— A Berenice está demorando, né? Será que ela vem?...
 
Só de ouvir o nome Berenice, meu peito bateu mais rápido. Engoli em seco incomodado com aquilo. Eu estava disposto a investir em Letícia, precisava me livrar daquele sentimento afetivo por Berenice, que sem minha permissão estava crescendo, o mais rápido que eu pudesse. Eu ficaria com Letícia, Letícia!
 
— Estou demorando não, já cheguei — sua voz macia e doce inundou a pracinha. Eu sabia que não podia, mas dentro de mim, não pude negar o quão afetado fiquei com sua aproximação, por saber que ela estava ali, tão perto. Depois de que combinei de sair com Letícia, quem tinha passado a me evitar foi Berenice, mas agora não tinha escapatória, ficaríamos cara a cara por bastante tempo.
 
Respirei errado por ter consciência daquilo. Vagarosamente, levantei meu olhar para o dela e não aguentei vivenciar as batidas erradas no meu coração e o calafrio que passou por mim por conta do soslaio de nossos olhos. Sorri para ela e me crucifiquei por isso. Letícia, você gosta de Letícia!
Desviei o olhar e murchei o sorriso mais rápido do que raio caindo no céu. Seja quaisquer reações que ela tenha quando está perto de mim, não queria descobrir. Éramos amigos e ponto, e seria mais fácil para eu pôr isso de uma vez por todas na cabeça se a tratasse como tal e parasse de achar que os olhares, os toques nas mãos e a atração forte que sentia por ela, era outra coisa, além disso: Amizade.
... Mas que droga, ela tinha que estar tão linda?!
 
— Uhhh! Que gatinha! Miau! — Takashi comentou e uma pontada de algo semelhante a ciúmes alfinetou meu coração. Parecia que eu não tinha sido o único a notar sua beleza.
 
Ela sorriu constrangida e suas bochechas ficaram coradas.
 
— Valeu... — agradeceu tímida. — Eu estava no culto, não tive tempo de trocar de roupa... — explicou o motivo de tanta arrumação para um encontro na pracinha.
 
A encarei meio que de susto.
 
— Você é da igreja? — questionei o óbvio.
 
Ela sorriu para mim.
 
— Sou sim — confirmou.
 
Aquela notícia causou uma euforia grande em mim, e não sabia muito bem o motivo.
 
— Legal... — comentei. — Evangélica? Católica? Ou outra?
 
— Dããã, evangélica, né? — Takashi respondeu passando os braços pelo ombro dela. Mais ciúmes e incômodo pela proximidade deles preencheu meus sentidos. Mas que droga estava acontecendo comigo?!?! — Você não vê as postagens que ela faz convidando as pessoas para seminários, viagens e confraternizações, não? O pai dela é pastor, vai me dizer que não sabia? Ele já foi um montão de vezes fazer pregações lá na escola. Ele e o padre Teobaldo, mas o padre é parente da Victoria do primeiro ano.
 
Baixei meu olhar para o chão para espantar a vontade de tirar Takashi de cima dela. Eu estava ficando doido, só podia.
 
Letícia, é de Letícia que você gosta e é com ela que vai sair amanhã”, a vozinha da minha mente me lembrava com tom de repreensão por eu estar claramente ficando interessado até demais em Berenice.
 
— Ah... Legal... — foi o que consegui comentar. — Não sabia que o pastor Murilo era seu pai...
 
A dona da manchete de fofocas da QM deu um leve sorrisinho de canto sem graça e se aconchegou nos braços de Takashi. Será que eles estavam tendo alguma coisa?!
 
— Pois é, ele é — confirmou e deu o assunto por encerrado. — Mas e aí, galera, vamos conversar sobre o jogo aqui mesmo?
 
Sua frieza comigo me atingiu em cheio. Decidi levar aquilo como sinal de que a garota não estava a fim de mim, ótimo! Porque eu também... não... estava a fim dela.
Arranhei a garganta ávido para lhe dar uma resposta.
 
— Não, não mesmo... Conversar sobre o jogo em praça pública é...Insano. — Takashi continuava a segurá-la em seus braços. Agora, para variar, ele estava brincando com um fio de cabelo solto que encontrou em seu vestido, fazendo curvinhas num formato de caracol em seu braço, com o cabelo. Ela ria em meio as atitudes dele.
 
Tentei ignorar aquilo, juro que tentei ignorar com todas as minhas forças. Eu precisava ignorar. NÃO ACREDITO QUE EU ESTAVA MESMO COM CIÚMES!? Esfreguei uma palma nervosa por minha face, não sabendo se estava com mais ódio dos meus sentimentos ou de mim mesmo por não estar prestando atenção no que importa: o JOGO, ou com mais ódio ainda por sentir uma vontade IMENSA de ser eu fazendo caracóis invisíveis em seu braço, e não ele.
Com uma engolida generosa de saliva, forcei-me a engolir junto a raiva controlável que os dois “pombinhos” a minha frente despertaram em mim. Substituí o sentimento ruim por um bom e esbocei um meio sorriso (Que torci para não ter saído arrogante) no lugar, com intuito de mostrar que eu não me importava pela proximidade deles, ou talvez convencer a mim mesmo que às suspeita de que talvez eles fossem mais que amigos, não tivessem me afetado tanto.
 
— Hummm! — Ela comentou pensativa, se desvencilhando dos braços de Takashi, que não demorou muito e a abraçou por trás, cruzando os braços na barriga dela. Suor frio escorreu pela minha têmpora. Aquelas coisas, aqueles gestos, a intimidade... Não podia ser, não podia! Mas as nossas mãos, a ligação... Eu não podia ter imaginado tudo sozinho! Eu tinha certeza que nós dois tínhamos sentido, ela... Não, não podia ser! Berenice e Akira... Não fazia sentido! — Faz sentido — concordou repousando as mãos sob as de Akira. Meu peito acelerou de ódio, desespero e coisas ruins. Eles eram namorados, não era possível. Sentia que uma faca estava sendo enfiada lenta e cruelmente em meu peito. — Então, aonde vamos? Tem que ser um local sem aparelhos tecnológicos... E não sei se atualmente exista algum para nos escondermos.
 
O grupo todo assentiu.
 
— Vish, é mesmo, nem tinha me ligado nisso... — Felícia consentiu preocupada.
 
— Mano, o problema é que agora eu não estou conseguindo lembrar de nenhum lugar assim aqui na vila... — Ayla confessou. As sobrancelhas franzidas como gesto de aflição.
 
Takashi agora sussurrava algo no ouvido de Berenice que o encarou diretamente nos olhos, aparentando captar algum tipo de mensagem que ele passou. Não sei o que falaram, só sei que olharam discretamente para mim e riram juntos. Fechei o cenho sem entender a piada que viram em mim e cruzei os braços insatisfeito com as confidências deles que, certamente, me envolviam. Os dois nem tentavam disfarçar que me observavam.
 
Sorrie e acene, garotos, sorrie e acene”, os comandos dos pinguins de Madagascar nunca fizeram tanto sentido para mim, pois involuntariamente eu estava me obrigando a fazer aquilo, sorrir e acenar para esconder minha vulnerabilidade ao notar que talvez, Berenice nunca esteve interessada em mim como eu achei que estava. E que talvez, os dois estivessem caçoando da minha cara por perceberem meu receio de vê-los tão grudados assim. Ela tinha namorado e ele estava a segurando e a mimando. Na. Minha. Frente. Sem dó ou piedade do meu coração estraçalhado por descobrir tal informação, somente por ler as entrelinhas. Eu não precisava que me contassem em voz alta, vê-los era o suficiente, eles namoravam.
 
Sorrie e acene, garotos, sorrie e acene”, a frase ainda me controlava e me impedia de entrar em um ataque nervos.
 
— Théo — a voz da Antônella me despertou de meu devaneio, por meio de um sussurro íntimo e baixo o bastante para que só eu ouvisse. — Perdeu alguma coisa na Berenice e no Takashi? Estar encarando os dois há um tempão. Já está estranho. Seja o que quer que estiver pensando, pare agora e foque no jogo, por favor, precisamos da sua ajuda — convocou, e só então percebi o quão alienado a tudo eu tinha ficado ao tentar decifrar o enigma dos dois na minha frente e em quanto tempo eu deveria ter ficado os encarando que nem um lunático. Baixei a cabeça rapidamente ao pensar nisso. Meu rosto ficou extremamente vermelho e quente de vergonha.
 
— Éééé... Tem que ser um local que tenha algum aparelho que passe fita cassete... — voltei a falar para o grupo com a voz saindo aos frangalhos. Meus olhos grudados na sacola que eu tinha trazido. — Eliza tinha um na cabana, mas... Acredito que tenha quebrado com o desmoronamento... Então... Só nos resta torcer para acharmos algum para conseguirmos assistir o resto das informações dela... Alguém...?
 
Todos ficaram em silêncio e se entreolharam com angústia. Pelo visto, ninguém tinha. Engoli em seco. Merda.
Meus ombros relaxaram desesperançosos.
 
— Temos dois problemas então... — concluí com desânimo. — Não temos nem um local seguro para conversar e nem um conversor de fita cassete. Ótimo, começamos bem, para variar... — resmunguei entredentes.
 
Estava ajeitando as fitas no meu colo, quando a voz grave e baixa de Victor Shehu, anunciou insegura:
 
—... Na ver-da-de, eu tenho as duas coisas. Um local seguro... E um conversor de fita cassete.
 
Todos nós o olhamos de olhos arregalados.
 
— Sério?! — comemoramos em uníssono.
 
O garoto misterioso esfregou com desconforto as costas de seu pescoço.
 
— Na minha casa... — disse. — tem uma cabine acústica bemm grande... Que serve para... Para... Reuniões sigilosas da minha... Mãe... Não tem nenhum aparelho tecnológico lá e muito menos formas de pessoas do lado de fora ouvirem nossa conversa. O que acontecer lá, fica lá.
 
Franzi as sobrancelhas em meio à informação de “Reuniões sigilosas da minha... Mãe.”. Uma dúvida repentina tomou conta de mim. Eu não fazia ideia de quem eram os pais daquele garoto, nenhuma! E acho que o resto do grupo, tirando Ayla (que parecia estar completamente ciente de quem ele falava), também não faziam, pois ambos estávamos tomados de confusão nos rostos.
Não sei por que, mas vê a forma que Victor se vestia, sempre com as mesmas blusas, os mesmos gorros, os mesmos tênis esfarrapados e estar cotidianamente andando sozinho e invisível de um lado para o outro da cidade, muitas vezes me fez suspeitar que ele não tinha família, que era um garoto sozinho que morava sozinho em algum local sombrio e misterioso, ou em um orfanato. Acho que eu estava errado então, Shehu tinha mãe, que tinha uma caixa acústica em casa, e todo mundo sabia  o quanto isso era caro. Tive três ideias cruciais em minha mente. Ou ela era dubladora, ou cantora ou trabalhava com algum otorrino fazendo testes na audição dos pacientes. Só isso explicaria o motivo do aparelho.
Victor percebeu nossas feições embaraçadas e prosseguiu no seu raciocínio, mais desconfortável do que nunca:
 
— E minha avó... Tem um aparelho de fita cassete no guarda roupa dela... Quando ela vem passar as férias na cidade, gosta de relembrar os velhos tempos e assistir filmes antigos e de fita cassete. Eu posso... Pegar emprestado no quarto dela. Aí assistimos o resto das fitas e discutimos sobre nossos planos na sala acústica.
 
Todos nós nos entreolhamos felizes.
 
— Isso é perfeitooo!!! — Felícia comemorou contagiando todos nós.
 
Alegria também me percorreu. Victor tinha tido o poder de resolver nossos dois problemas numa cajadada só, glória a Deus. Iria parabenizá-lo em voz alta também, como todos estavam fazendo, mas me contive ao notar os olhares de aflição que ele e Ayla trocavam para o outro. Não sei o que significavam, mas sabia que eram de insegurança. Ela estava tentando induzi-lo a lhe dar alguma resposta sobre algo, tal como se estivesse questionando: “Tem certeza mesmo que quer fazer isso?”. E ele respondendo: “Não tenho escolha. É isso, ou nunca saio do jogo.”.
Franzi as sobrancelhas em meio ao diálogo silencioso deles. Desconfiança inundou meus pensamentos. Tinha algo errado acontecendo na casa dele e algo me dizia que não era para nós descobrirmos, mas o jogo o forçou aquilo. Enrijeci o corpo ficando arisco com minhas notas mentais.
 
— Vamos? — Takashi chamou o grupo.
 
Levantei com um pulo.
 
— Antes... — intervir cuidadoso. — Quero propor que nós revisemos os bolsos um dos outros para garantir que nenhum de nós está mesmo com celulares — minha sugestão ríspida fez todos me encararem desacreditados com minha intimação. Relevei. Já tinha me ferrado uma vez por acreditar que alguém que eu confiava não estivesse com o celular na hora errada, não ia me ferrar novamente, quer eles gostem da sugestão, quer não. Era minha saúde mental que estava em risco agora. — Não estou acusando ninguém, muito menos dizendo que não são confiáveis. É só para termos certeza de que estamos de fato seguros. Não quero que a mesma coisa da mata aconteça hoje, não mesmo. Se não temos nada a temer, qual o problema de verificarmos uns aos outros?
 
Meu discurso pareceu convencê-los. Dando de ombros também, puseram-se a revisar os colegas. Pela má sorte do destino quem veio me revisar foi Takashi. Bufei. Depois de ter roubado minha comida e paparicado Berenice, algo em mim me fez criar uma espécie de apatia dele. Tentei abafar aquele sentimento, pois eu de verdade não queria ter inimizade com ninguém por paranóias da minha cabeça. Eu teria que conversar sobre aquilo com minha psicóloga.
 
—Licença aí, cara — pediu passando as mãos por mim.
 
Lhe dei um meio sorriso (totalmente forçado) aprovando sua verificação. Quando ele terminou, o verifiquei também. Não encontrei outro celular, além dos pedaços mortais do que tacou na pracinha. Ele jogou o aparelho fora para provar que não era um espião ou algo do tipo. Terminando, Takashi parou do meu lado e sussurrou de forma bem íntima e quase que intimidadora:
 
— Para alguém que marcou de sair com Letícia, você está babando até demais em Berenice, em? — Uma linha de susto congelante passou severa por mim e o encarei com espanto, incapaz de discernir se as palavras eram de piada ou uma ameaça. Seu rosto se comprimiu em um sorriso fingido, mas com um aspecto angelical e saiu dando três tapinhas nas minhas costas.
 
O encarei voltando a envolver Berenice nos seus braços e não ousei partilhar sequer uma palavra com ele no caminho, estava tenso demais tentando fazer meu coração parar de bater errado... Como ele sabia que eu tinha marcado de sair com Letícia? Ninguém além da Nella sabia!...
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Ps: Ft de representação do Takashi lá em cima!

Loucuras da aventuraOnde histórias criam vida. Descubra agora