Capítulo 31__________________________
Perdi o ar. A adrenalina do pânico batia meu coração tão agressivamente, que meu peito chegava a doer. Zonzo! Eu estava zonzo! O mundo ao redor girava! Meus pensamentos giravam! As lamentações de pânico de Antônella giravam! Minha sanidade girava!
“Morrer não! Morrer agora não!”, era tudo o que eu era capaz de pensar, tudo que eu hipocritamente desejava. Ficar vivo, são e salvo, carne e osso, respirando, VIVO!
— Ah nãooo! Eles chegaram! — minha vizinha choramingou enrolando seus dedos em seus cabelos. Ela puxava os fios com tanta força, que me instigava a imaginar se aquela era uma forma que havia arrumado de puni-la por ter trazido o celular. — Acabou, vamos morrer! E a culpa é minha! Eu sou uma estúpida, burra!
As vidraçarias da casa estalaram, como se alguém estivesse tacando pedras nela, tacando pedras na casa, para nos assustar.
— Já estamos aqui!! — cantarolou uma voz rouca e masculina. Enrijeci meu corpo ao som do anúncio indesejado. Meu corpo parecia fraco, prestes a capotar no chão. Eu estava suando e acelerado demais e respirando e agindo de menos. — Podem sair dos seus esconderijos, “caçadores”, venham aqui brincar com a gente... Ou melhor, não saiam! Deixá-los em um beco sem saída correndo que nem galinhas de um lado para o outro será divertido. Faísca, trouxe pipoca?
Ouvi uma gargalhada feminina alta e acentuada.
— Claro, um espetáculo desses merece um pouquinho de aperitivos para acompanhar!
Antônella tremeu dos pés à cabeça ao escutar as vozes de nossos inimigos, tão próximas. Seus olhos encheram de lágrimas e sua voz falhou quando se jogou inofensiva e frágil em mim, suplicando instável em meus braços:
— Thé-Théo, por favor, a gente tem que sair daqui. Me diz que já pensou em alguma coisa, por favor, por favor!
Ela tremia tanto, que seu corpo sacudia freneticamente. Seus dentes batiam abruptamente contra o outro. Eu a responderia e diria que tinha um plano, se eu não estivesse tão apavorado quanto ela, tão sem raciocínio como nunca. Minha garganta tinha fechado, não conseguia falar, sequer uma palavra, tinha ficado mudo de pânico!
“Morrer não, eu não posso morrer, não posso!”, era o que ainda pensava, o desejo impossível que me prendia imerso em meu transe medroso.
A porta de entrada rangeu com potência, espalhando seu eco e o aviso horripilante de que os capangas do agiota já estavam aqui dentro, para todos os arredores da cabana. A casa chacoalhou de um lado para o outro, mas de forma mais agressiva dessa vez, como se provocar a abertura dela por sua porta velha, tivesse a danificado mais do que poderia suportar.
Olhei assustado para o teto balançando de um lado para o outro e gritando esfregando suas madeiras contras outras, para a iminência dele cair em nossas cabeças. Comprovando minha tese, um pedaço generoso de telha despencou com tudo do teto e caiu que nem um raio poderoso e perigoso entre Antônella e eu.
— CUIDADOO! — Gritei em pânico para ela a empurrando para longe antes que fosse tarde demais e joguei meu corpo no sentido contrário, caindo de mau jeito no chão empoeirado. Sei que não era a melhor hora para reclamar de dor, mas meu corte na nuca, que fiz no teatro, deu uma pontada forte pela brutalidade de meu movimento contra o piso. A dor se alastrando avassaladora dentro de mim me obrigou a gemer e fechar meus olhos tentando espantar o espasmo muscular. Estava doendo tanto que o ar havia se tornado pouco. A tonteira me possuiu.
— AAAA! — Minha vizinha berrou assustada, quando não só uma telha, mas duas, três, quatro, começaram a cair ao nosso redor. Mesmo desnorteado pelo desconforto crescente provocado pela ferida em minha cabeça, arrastei assustado e trêmulo e sem forças, meu corpo para longe, tentando me desvencilhar da enxurrada de materiais de construção velhos prestes a nos esmagar. — THÉOOO!! — Minha amiga suplicou por meu socorro. — Por favor, me ajuda! Minha perna está presa debaixo de uma telha!! — chorou desesperada.
Me alarmei. Já tinha terminado de levantar para auxiliá-la e começado o caminho em seu sentido, mas um pedaço de Eternit caiu rasgando perto de mim, perfurando sem dó nem piedade meu braço esquerdo.
— AAA! — Gritei de dor e permitindo de uma vez por todas as lágrimas que se aglomeravam em meus olhos, descerem. Mais dor aguda se expandiu devastadora por meu corpo. Cambaleei para trás não suportando as feridas. Tanto minha cabeça e meu braço latejavam, ardiam, me consumiam por inteiro. O sangue fresco descia como um rio do meu ombro ao cotovelo.
— Théo!! — Antônella se apavorou.
Apoiei minha nuca contra parede. Estancar, eu precisava arrumar um jeito de estancar aquilo, precisava! Tentei me mover para rasgar o meu casaco, no entanto isso só gerou uma nova sequência insuportável de dor. Não aguentei segurar o soluço que escapou de minha garganta. ESTAVA DOENDO MUITOO!
— Estar doendo demais, demais! — choraminguei fraco e entredentes, desejando poder me jogar no chão e deitar. O peso do meu corpo parecia grande demais para que eu fosse capaz de mantê-lo em pé.
— Não, não, não, Théo! VOCÊ NÃO PODE DESMAIAR! — Antônella suplicou lutando para se desvencilhar da telha enorme que a prendia no chão. — Aguenta!! A gente tem que fugir!
Fugir parecia uma realidade tão distante de nós como a existência da possibilidade de conseguirmos ficar vivos.
— A casa está caindo! VAMOS SAIR! — uma voz feminina, julguei ser a de Faísca, informou temerosa.
— Mas e as crianças?! — o companheiro questionou.
— Se a casa não matá-las, a gente as mata do lado de fora, quando o desmoronamento terminar! VEM!
— Eles saíram! — Antônella também percebeu os passos pesados deles no piso caminhando para longe da cabana. Ela arregalou os olhos estampando em sua expressão um vislumbre de esperança. — É a nossa chance! — As telhas despencando no chão pareciam nos alertar o contrário. Não tínhamos chances de sair dali, nenhuma. Morreríamos esmagados ou, se eu ainda respirasse debaixo dos estrondos, com certeza morreria por hemorragia. O sangue já encharcava minha blusa quase toda agora, uma poça se formava sob meus pés. Eu queria desmaiar. Estava fraco e tonto, muito tonto. — A gente precisa fugir agora! Me ajuda a me soltar! Por favor! A telha é muito pesada!
—... Não consigo, Antônella... — confessei. Minha voz saindo pesada e arrastada, o mundo dançando em minha vista. —... Eu estou zonzo... — avisei dominado pela vertigem. —... Muito zonzo... — escorreguei caindo sem forças no porcelanato velho e quebrado. Minha cabeça se assemelhava a chumbo, de tão pesada que estava.
— THÉOOO! — Antônella gritou alto, soluçando. — AH MEU DEUS!! SOCORROO!! ALGUÉM AJUDA A GENTE!! — Implorou, mesmo sabendo que de nada adiantaria. Os comparsas do agiota deveriam é estar satisfeitos pela casa estar fazendo o trabalho sujo de nos matar, por eles. — O THÉO ESTÁ SANGRANDO MUITOOO! POR FAVOR! EU SUPLICO!!
Como eu esperava, nenhum socorro apareceu, só a dor que insistia em aumentar dentro de mim. Intrusa e avassaladora.
“Eu não quero morrer.”, pensei mais uma vez. As lembranças do meu afogamento forçado invadiram meus pensamentos e senti ódio de mim mesmo por ter tentado fazer aquilo, por ser tão idiota e tentar partir sem claramente estar preparado para isso. Tudo o que eu queria agora era ficar vivo, vivo! Era até estranho pensar que algum dia desejei o contrário com todas as forças que há dentro de mim. “Eu não quero morrer!” ainda pensava.
As madeiras da casa pendiam, minha vizinha gritava louca e desesperada, lutando como podia para viver, juntando as forças que lhe restavam para ser capaz de se livrar da telha que a segurava no chão, a empurrando o mais forte que conseguia e gritando com intuito de conseguir mais força.
Chorei. Chorei por não conseguir ajudar, por não ser capaz de levantar, por sentir que eu estava indo embora e não iria demorar muito para que eu descobrisse o que acontecia depois da morte. Me entreguei a única coisa de verdade que me restava, a única certeza que eu tinha que se fosse da vontade d’Ele, sairíamos daquela vivos.
“Pai, clamo pelo poder e a vida que a no sangue do senhor Jesus, me perdoe de todos os pecados que eu fiz e que eu faço e muito obrigado de verdade por tudo, Deus, de verdade. Se for da sua vontade, por favor, nos livra da morte... Senão, me perdoe por tudo de errado que eu fiz, por favor? Que eu possa ter um lugar no céu. É esse o clamor que eu lhe faço agradecendo desde já por tudo, em nome de Jesus, amém.”
Já estava pronto para ir embora depois disso, quando de repente, o grito agudo e comemorativo de minha vizinha ecoou alto pela sala, anunciando eufórica:
— Consegui!!
Não tinha forças para encará-la, estava tonto. A senti ajoelhar do meu lado.
— Théo, levanta, vamos fugir! Rápido! A casa está prestes a desabar de vez — me reanimava com sua voz rouca. — Você tem que ser forte, levanta. Quando estivermos seguros, cuidamos do seu braço — me pôs de pé.
Mais uma vez a vertigem dominou minha vista. Senti que eu estava pendendo para o lado, mas a Nella me segurava firme, como se não fosse me soltar até que eu estivesse bem.
— As fitas — murmurei desnorteado. — A gente tem que levar as fitas... Põe na mochila, por favor, pelo menos algumas...
Sem questionar, ela me obedeceu. Porém não pôs todas, algumas estavam presas debaixo de Eternits.
— Pronto! — avisou aprumando a mochila nas costas e voltando a me dar apoio com seu corpo.
Fechei os olhos porque mantê-los abertos e falar ao mesmo tempo era uma tarefa impossível para mim naquele instante. Eu queria vomitar.
—... Seu celular, deixa ele aqui.
— O que?! POR QUÊ?! NÃOO!
—... Eles vão saber onde nós estamos se o levarmos com a gente, Nella — a lembrei o óbvio. —... Precisa deixá-lo aqui, precisa...
— Mas... — ainda lutava.
A casa rangeu com mais potência e acho que esse aviso de que não tínhamos mais tempo, foi o suficiente para fazê-la desapegar do aparelho e jogá-lo no chão de supetão.
—... Meus pais vão me matar — resmungou antes de nos empurrar afobada pela fenda que entramos.
Gemi ao passar pelo buraco estreito. Meu ferimento roçou pelas madeiras podres e senti alfinetadas agressivas nele. Fechei os olhos, tonto. Péssima hora para ficar machucado, péssima!
— Vem, eu te ajudo a levantar — a Nella me puxou com firmeza para cima.
— Valeu... — agradeci meio cambaleando, meio zonzo, meio perdido.
Ela me encarou preocupada.
— Consegue correr?
Eu não tinha certeza, acreditava que não, mas sabia que aquele era o único modo de escaparmos, então garanti sem saber se aguentaria pelo menos o começo do caminho:
— Consigo, mas vai ser difícil.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas antes que pudesse, as vozes dos capangas, gritaram:
— ELES ESTÃO ALI!
Entrei em pânico. Tanto Antônella e eu olhamos para trás apavorados e, para nossa infelicidade, avistamos um homem e uma mulher mascarados correndo disparados em nosso sentido.
— AH MEU DEUS! CORRE!! — Minha vizinha me puxou, me obrigando a fugir.
Fechei os olhos com a dor crescendo mais forte, mais devastadora, mais sufocante. A cada passo novo, era uma latejada nova na minha cabeça e mais uma no meu braço. Tentei ignorar a dor, seguir em frente sem parar, correr o quanto eu aguentava, o quanto eu podia. Viver.
— NÃO ADIANTA FUGIRR! VAMOS PEGAR VOCÊS!! — as vozes deles ameaçaram. De repente, ecoou pela mata ranger de motos. Eles estavam próximos e para “ajudar”, meu sangue ainda pingava no chão, dando aos nossos adversários a visão perfeita do caminho que estávamos trilhando.
— Eu preciso estancar — supliquei fraco para a Nella. — Estar pingando na terra... Entregando nosso caminho. Preciso estancar.
Creio que pela primeira vez na nossa corrida, minha amiga decidiu olhar para trás e até deu um pulo temeroso ao se deparar com o caminho que já havíamos percorrido. Seus olhos se arregalando, a pele ganhando um aspecto pálido.
— Théo, você está perdendo muito sangue! — anunciou o óbvio.
Sua voz entrou embolada dentro de meus ouvidos.
— Estar pálidoo! Ai meu Deus! Agora não é hora de morrer, menino!! O QUE EU FAÇO?! O QUE EU FAÇO?!
— Preciso estancar — repeti mais fraco. O mundo se tornando embaçado em minha vista. — Por favor, rasgue o meu casaco e amarre bem forte no meu braço, voltamos a correr depois disso...
Ela balançou a cabeça afirmativamente como uma criancinha assustada obedecendo alguém depois de uma bronca. Sua mão pousou firme em meu agasalho para rasgá-lo, quando, para o nosso desespero, uma sombra em formato de um humano, surgiu entre as árvores e bradou com escárnio enquanto a pegava e tampava sua boca:
— PEGUEI VOCÊ!
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Loucuras da aventura
Misteri / ThrillerProblemas psicológicos, ansiedade, fobia social e falta de motivação para viver de longe era um dos maiores problemas de Théo, um garoto totalmente fechado e incompreensível que tinha como companhia somente uma amiga doente, prestes a morrer, que al...