CAP 64- O fiasco de Alvarez✉

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Capítulo 64 ____________________________

A bala atingiu de raspão Letícia. E, percebendo o que acabou de fazer, Theodoro baixou a arma e pôs as mãos na boca, sussurrando trêmulo:
 


— Oh meu Deus, me desculpe, princesa, desculpa... E-Eu não queria... Não queria...
 
Assustada, Letícia se esquivou pondo as mãos na barriga machucada e fixou os olhos no pai, farfalhando com a voz chorosa:
 
— Você atirou em mim...
 
O agiota contorceu o rosto, balbuciando sem rumo:
 
— Você me provocou... E-Eu... Nem foi profundo, foi só um susto... Não, não te machucou. Perdoe o papai, Lelê, perdoe seu velho. Ele só está tenso demais e... — tentou pôr as mãos na filha, mas Letícia se escondeu atrás da mãe, completamente trêmula. Alvarez se esquivou, percebendo que aquilo nos olhos da filha favorita era medo, medo dele. Perceber isso o atingiu com mais força do que todos pensavam. Alvarez tropeçou no próprio desespero e, num súbito de ódio, rosnou, furioso, apontando a arma para mim, mas dividindo o olhar para os filhos assustados e calados — tudo isso vai acabar! MEUS FILHOS NÃO VÃO ME ODIAR! VOCÊS NÃO TEM O DIREITO! DEPOIS DE TUDO O QUE EU FIZ! TODAS AS BONECAS, PRESENTES, VIAGENS E ROUPAS QUE EU DEI! NÃO VOU PERDER O AMOR DOS DOIS! VOCÊS NÃO TEM O DIREITO! EU FUI O MELHOR PAI DO MUNDO! O MELHOR! SÓ PARA VOCÊS E A RAFAELA! EU FUI! 
 
— O amor não se compra, pai! — Samuel choramingou no chão. — Vingança também não vale nada. Ter dinheiro à custa dessas pessoas também não é motivo de orgulho!
 
— O DINHEIRO É MEU! MEUUU! — gritou rouco, alucinado de loucura, batendo a arma contra seu próprio peito. — Tiraram de mim! TIRARAM! — e apontando para o meu pai que chegava carregado por capangas juntamente aos pais de Eliza, e a minha mãe que abraçava seu corpo com medo, acusou — eles tiraram! Alvarez tirou! SÓ ESTOU PEGANDO DE VOLTA O QUE SEMPRE FOI MEU! MEU! — Olhando para todos os lados parecendo sem ar, ele apontava para mim, com um nó na garganta — e naquele dia, faltou matarem Theodoro, faltou. Eles deixaram o zumbi viver... Não era para deixar, por que preferiram me manter vivo para relembrar cotidianamente todos os horrores daqueles dias? Foi o pior castigo que me deram... Perceber que fui usado, que me envenenavam... Que nem meus próprios avós me amavam... Que a única coisa que atraía pessoas a mim eram minhas posses, meu dinheiro! Sabem como eu me sentir?! SABE COMO É HORRÍVEL OLHAR PARA A PORRA DE UM ESPELHO E ODIAR O QUE VER?! SABEM COMO É A SENSAÇÃO DE SE SENTIR VAZIO?! INSIGNIFICANTE! ESQUECIDO! ODIADO! FRACO! DÉBIL! SOZINHO! E COM MEDO! O TEMPO TODO SE PERGUNTANDO O QUE VAI SER DE VOCÊ AMANHÃ?! OU SE AO MENOS VAI AGUENTAR CHEGAR ATÉ LÁ!
 
Todos se entreolharam confusos quando o agiota ergueu meu corpo para os seus braços com força. Um gemido de tremer os dentes escapou de minha boca e cedi o peso do meu corpo para os seus braços, pois eu não era capaz de me manter em pé, não mais. Seguro nos braços dos capangas, meu pai sibilou em pânico:
 
— O que está fazendo?!
 
— Finalizando o grande espetáculo de: A morte de Theodoro! — respondeu com um sorriso maluco. Seus olhos banhados de maldade. — Ou vão me dizer que o nome do garoto não foi nem um pouco inspirado em mim, seus vermes? 
 
Minha mãe se prostrou a frente da sala, revelando:
 
— Queríamos pôr o nome do nosso filho em referência ao amigo que perdemos no passado! Nós realmente éramos seus amigos, Theodoro! Nunca soubemos que nossos pais planejavam fazer coisas tão terríveis... Que... Que meu tio... O Alvarez. — Minha garganta oscilou. O verdadeiro Alvarez era meu tio?! — quisesse matar seus avós e trancafiar você num orfanato. Nós nos envergonhamos pelo passado, mesmo que tenhamos participado inconscientemente. Nós achávamos que você estivesse morto, eu juro. Se soubéssemos que estava vivo...
 
—... Se soubessem que eu estava vivo — o agiota caçoou a interrompendo. Sua face envolta numa aura nebulosa. — E quem disse que o garotinho inocente que vocês dois conheceram... O Theodoro, está vivo dentro de mim? — os encarou. Com um sorriso cruel, ele balançou a cabeça de um lado para o outro em negação, contrapondo — não, não, aquele menino já se foi há muito tempo. Hoje eu sou O agiota, o grande e temido agiota! Alvarez! O grande! Tratei de acabar com quaisquer resquícios da minha infância da minha personalidade atual... Mas vejam bem, acreditam em reencarnação?
 
Todos se manteram em silêncio. Alvarez chegou mais perto de mim, apoiou a arma em minha cabeça. A ponta fria fazendo contato com minha testa. Respirei errado e soltei um soluço de pânico.
 
— Théo... — a Nice sussurrou trêmula, me encarando prestes a correr até mim.
 
— Vejam bem, não sei como isso é possível, mas reencarnação é uma palavra muito fiel ao que eu sinto quando olho para o filho de vocês. Sei que estou vivo, sei que essas coisas, se existirem, só acontecem quando morremos de verdade... Mas como eu disse, matei o Theodoro dentro de mim e acredito que de alguma forma, ele renasceu dentro do filho de vocês. Não percebem a semelhança?... O quão igual ao passado este menino é? — lançou a pergunta para meus pais. Eles continuaram quietos, mas seus olhos entregavam que eles viam sim a semelhança. — Como isso é possível? Um ser que saiu de dentro de você ser tão igual a quem eu era? Ter meu nome, meu gene, minhas atitudes, meu caráter, meus medos e traumas... Como isso é possível?! Isso me atormenta.
 
— Acredite — minha mãe soluçou afagando o próprio corpo. — Isso também nos atormentou por bastante tempo — confessou trêmula, tentando não me encarar. — Ver que o Théo crescia e cada dia se tornava mais recluso e fechado... Assim como você era...Ver... Ver traços seus nele... Nos perturbou dia após dia. E acabamos sendo rudes demais com ele... O dando tratamentos duros porque temíamos que se transformasse em alguém sozinho como você, sozinho e amargurado que não enxergava que tinha amigos. Pronunciar o nome dele e nos recordar do passado também nos matou por dentro durante alguns anos e só hoje, percebemos o quão injusto fomos com nosso filho. Colocamos seu nome como homenagem a um monstro. Mas sabe? Não me arrependo nem um pouco, pois consigo ver que diferente de você, Theodoro, o nosso Théo, mesmo que tenha passado por todos os horrores que você diz passar, continua um menino bom, convicto de todos os seus princípios! O coração segue nobre enquanto o seu, se perdeu em podridão! Então não, meu filho não é o Theodoro e nunca será! Porque o Theodoro é você! E se acha que Theodoro precisa morrer, então, meu querido, está querendo presentear a morte a pessoa errada.
 
— O Théo pode ser tudo! Menos igual a você! — Nice finalmente se manifestou, cheia de ódio. — Você é LOUCO! ISSO SIM! LOUCO! Que está confuso com a própria cabeça e desconta em vidas alheias! NÃO PERCEBE AS SANDICES QUE ESTÁ FALANDO?! 
 
— Berenice! — seu pai a puxou para trás. Mas ela estava convicta e se soltou com ferocidade.
 
— QUAL É O SEU PROBLEMA?! — rosnou para Alvarez. — Não vê que sua "caça ao tesouro" não causou nada além de destruição?! Destruição até mesmo na sua vida, ouso dizer! Seus filhos não te amam! Perdeu a sanidade! Irá morfar o resto da vida na cadeia! Deixou o filho da sua amante aleijado! E nenhum dinheiro poderá te salvar do buraco em que você se meteu! Então por que insistir? Por que prosseguir nessa loucura de vingança se quando a completar só vai haver mais destruição? Destruição dentro de você! Solte o Théo! SOLTE ELE! — Se jogou em cima do agiota, chorando. Ele a empurrou com maestria e me rebati em seus braços para o impedir de machucá-la, pois nem voz suficiente eu tinha mais para defendê-la.
 
Rouco e fraco, sussurrei implorando:
 
— Nice, para!
 
Ela me encarou, chorando para valer e se ergueu do chão, avisando:
 
— Não vou parar, não vou parar até ele te soltar! Não-vou-parar! — Um tiro soou bem no canto do meu ouvido e passou raspando ao lado da Nice, que deu um pulo assustado e pôs a mão no peito quando os gritos ecoaram. A sala se tornou mais tensa.
 
Entrei em pânico. Encarei a todos sofrendo, vi todos. Pensei, pensei e me sufoquei com os meus pensamentos. Embriagado de terror, implorei rouco, desfalecendo nos braços do agiota:
 
— Chega. Chega!
 
Todos pararam o que estavam fazendo para me encarar. Solucei ao fungar.
 
— Eu não aguento mais, acabe com isso, por favor, só acabe com isso. Já percebi que é a mim que você quer, que não te importa mais nada a caça ao tesouro. Você só quer uma coisa, um único prêmio, que é fazer todos sofrerem, em especial minha família, se vier com dinheiro junto, melhor, mas pouco te importa, né? Afinal, tem mais do que o suficiente para uma vida inteira — pausei para respirar. Meu peito chiava — Já jurei minha fidelidade, já fizemos um acordo, já concordamos em me matar e acabar. Deixe meus amigos em paz, deixe a minha família para lá. Chega! — o último pedido saindo entre gemidos. — acabe com o seu terror. Me mate. Chega. Que a caça acabe junto com a minha morte. Quando me matar, anunciará o fim da caça também. Os jogadores perderam, você venceu. Chega.
 
— Não fale bobagens, Théo! Cale a boca! — Eliza rosnou, os dentes trincados.
 
A encarei, a arma encostando com força em minha têmpora.
 
— Se tem alguém que merece morrer aqui, sou eu — apontou para si. — Fui eu quem trouxe toda essa desgraça para a cidade... Eu — fungou andando até mim. Humilhando-se, Eliza ajoelhou na frente do agiota e implorou — se pretende matar alguém, que seja a mim.
 
O agiota franziu o cenho, a analisando. Os pais de minha melhor amiga começaram a gemer clamores. Engasguei. Liza me olhou nos olhos e disse:
 
— Está tudo bem, eu já estou esperando minha morte desde os 12 anos.
 
Meus olhos encheram de lágrimas e, abalado com tanto sofrimento, abri minha boca para negar seu pedido e apresentar argumentos válidos do porquê teria que ser eu a partir, quando mais vozes soaram declarando e dando passos à frente:
 
— Atire em mim — o pai dela pediu —, pois fui eu que peguei o empréstimo e não tive condições de pagar os juros.
 
— Não, atire em mim — sua mãe ordenou — eu que disse ao meu marido para procurar você, quando veio conversar comigo disfarçado de garçom e se oferecendo para ajudar.
 
— Então atire em nós! — os pais de Heitor bradaram. — Fômos nós quem contratamos esse infeliz e o colocamos a par de todas as fofocas da cidade. Temos tanta culpa quanto.
 
Vagarosamente, todos começaram a declarar motivos pelos quais eram os certos para morrer. A sala se tornou caótica e os olhos do agiota dançavam de um para o outro, completamente confuso e perturbado. Eu sentia seu corpo tremer segurando o meu. Sua mão se apertou no meu braço em tremendo ódio. Seu maxilar contraia e se descontraía, seu corpo rígido. Ele estava perdendo o controle e sabia que iria explodir a qualquer momento. Seus lábios se entreabriram para pronunciar seu discurso de ódio e de paralisar qualquer um, mas não o fez, antes que fosse capaz, o som de um tiro inundou os arredores da enorme sala, calando e disparando o coração de todos. Em meio ao silêncio, a voz de quem disparou a cápsula emergiu do alto da escada, vociferando:
 
— Posso saber o que está acontecendo aqui?!
 
A visão do grupo voltou-se para o topo da escadaria e todos fizeram expressão de horror ao encarar Sarah Grigio, como sempre elegante, no seu salto alto com a arma em mãos. Ana Luiza atrás dela, tremia abraçando o próprio corpo, mas parecia travar uma batalha com ela mesma para parar de demonstrar fraqueza. Logo ao seu lado, duas menininhas gêmeas e loiras como a garota mimada, observavam tudo com olhares temerosos e lágrimas nos olhos. E praticamente inconsciente, Victor era carregado numa cadeira de rodas. Seu rosto pendia para o lado e ele não parecia entender nada do que estava acontecendo, muito menos ver.
 
— Victor...! — meus amigos exclamaram com total horror. Outrora, ao fazer isso, Heitor e Ayla deram um passo para frente, como se estivessem prestes a correr para o companheiro machucado.
 
 Senti meu coração apertar. Victor estava péssimo, muito, muito mal. Tudo isso porque queria me salvar. A culpa era minha! Nervosa, Sarah desceu um degrau da escada, resmungando:
 
— Será possível que uma mãe preocupada com o transporte do filho até o jatinho não tem um minuto de paz? — ela parou no final da escadaria, olhando diretamente para o amante, sibilou impaciente — o que essa gentinha quer agora? Não me diga que ainda não acabou com isso? Terei de ser eu a matar o Théo? Não consegue apertar a droga de um gatilho e fugir?! Tenho que te relembrar que tem quase mil viaturas vindo para esta casa, Alvarez?!
 
O agiota, no entanto, não pareceu feliz em ser afrontado e enrugou o rosto em uma careta que informava a ela que era melhor parar por aí. Sarah não ligou para o aviso, revirou os olhos, debochando:
 
— Está me olhando assim por quê? Acha que eu tenho medo de você? Que sou um desses babacas trêmulos morrendo de pavor só de estar na sua frente? Francamente, Doro, francamente. Eu praticamente cresci ao seu lado, conheço todo o seu corpo, já te toquei e brinquei com você por inteiro e de certo modo, confesso que até já enjoei da forma como me dar prazer. Tão repetitivo. Tão irritante. Faça-me um favor, o dia que esse olhar me assustar, saiba que eu não estarei batendo bem da cabeça. E neste momento, parece que você que não está tão bem, né? Olha, quando minha Analu disse para mim que o pai estava estranho hoje de manhã, juro que não imaginei que estava literalmente se borrando nas calças só para matar um menino de 16 anos que você acha que se parece contigo. O que foi? Por um acaso voltou a se sentir como o Theodoro doente e fútil que era? — sua voz adquiriu um tom de chacota impecável — não consegue matar o Théo? Está com medinho? Com tantas vidas que já tirou, isso é realmente uma vergonha, Doro. Talvez essa história de caça tenha mesmo mexido com você. Mas não lamento, não quando sei o quanto de dinheiro ela rendeu e sou quem confiou para guardar... — um risinho de escárnio escapou de sua garganta.
 
— Cale a boca, Sarah, acredite, agora não é o momento para suas brincadeirinhas de mau gosto — o agiota alertou num tom ameaçador.
 
— Eu calo quando eu quiser — ela rebateu com um sorriso sagaz e passava as mãos na arma com um certo encanto e um brilho nos olhos. Tive medo daquele olhar.
 
Por ironia do destino, minha visão voltou para Letícia, que parecia mais desesperada do que nunca, e remexia no rabo da saia da mão dela, informando algo aos soluços. Sua mãe franziu as sobrancelhas e os olhos de Letícia completamente cheios de lágrimas, encontraram os meus. E só pelo seu olhar entendi. Algo muito sério estava acontecendo. E alguma coisa dentro de mim desconfiou que era ligado a forma como Sarah Grigio apreciava a sua arma.
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Loucuras da aventuraOnde histórias criam vida. Descubra agora