A PAPISA

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Um quadro torto nunca foi tão perfeito. Sabe o significado de tal quadro? Alguns dizem que é um velho sábio sendo apunhalado por uma sombra. Outros especulam que seja a representação do famoso quadro "O grito"... É impressionante como meros borrões vermelhos e pretos criam tantas teorias. O que eu vejo? Só enxergo alguém sem inspiração. Até hoje, não sei o que pode significar de verdade.

– Fala de você mesmo?
Minha voz quis conversar comigo, mais uma vez sobre desabafos da minha vida cotidiana.

– É o que quer ouvir?

Pergunto a ela, querendo saber as verdadeiras intenções de suas palavras.

– Não sei dizer... Parece que você nunca quis contar.

– Sou do tipo que prefere observar os arredores antes de tirar as próprias conclusões.

– Nunca vi você fazendo esse tipo de coisa, ainda mais se formos considerar o que você fazia no seu passado.

– Por que sempre me lembra desses acontecimentos?

– Gosto de te ver tentando.

– Sei... Apenas sente prazer do sofrimento alheio.

– Pense o que quiser... Enfim, vai ficar observando este quadro por quanto tempo?

– Gosto de imaginar o que existe nesses borrões.

– Sua teoria é a do velho sábio ou a do Grito?
Cruzo os braços, abaixo a cabeça e penso por alguns segundos antes de responder a minha companheira tagarela.

– Vai responder?
A voz insiste, impaciente pela minha lenta tomada de decisão.

– Hmmmm... Vejo um mar de sangue, com uma sombra olhando ele seguir o curso.

– HA! Entendi o seu joguinho!

– Só falei a verdade.

– Conheço você... Criou apenas uma desculpinha para fugir da pergunta... Seria um sangue envenenado? 

– Tanto faz. Você é só uma voz da minha cabeça. Nunca suas opiniões serão bem aceitas pelo meu ego.

– E pensar que eu sou a fagulha do caos nesse corpo... Quão idiota eu pude ser para terminar contigo?

– Ninguém pediu você criar aquela confusão naquele dia.

– Eu ainda não existia... A culpa de todos acabarem agredindo uns aos outros foi sua... E pensar que você traiu dois na mesma noite.

– O quê? Não foi bem isso... Está inventando coisas para me causar algum efeito.

– Foda-se... Não vale a pena discutir contigo.
Descruzo os braços, dou uma ajeitada no pescoço, estico o corpo e, após isso, faço mais uma pergunta a voz:

– Tá... Aceita uma bebida? Tô precisando relaxar depois de te aturar.

– Sabe que eu não gosto de álcool. Mas pode pegar. Não ligo de ficar bêbada outra vez.

– Você faz boas piadas, de vez em quando.
Ando até a bancada da cozinha, agarro uma garrafa com pouco de gin, pego um copo quadrado e encho o objeto até a metade. Depois de cheio, tomo a bebida em um único gole.

A bebida desce rasgando rasgando, cortando as placas da minha garganta e esquentando tudo, de dentro para fora. O gin parece ser a única coisa que não me irrita nessa casa idiota, toda acabada e destruída por faltas de cuidado. Nem sei se o dono realmente se importa com sua residência... Acho que sei a resposta pra tal dúvida. Gasto toda a grana com bebidas e esqueço de pagar as burocracias de nosso país... Ainda bem que existe distrações perfeitas para cada pessoa. A minha é encher a cara.

Tomo outro copo... Outro... Mais um... e a garrafa, que ia esvaziando aos poucos, finalmente secou. Creio que foram umas cinco doses de uma vez, todas cortantes como a primeira. Seco, incolor, queimante, porém, gostoso, prazeroso e escapatório. 

O mundo, então, começa a girar, e andar fica mais complicado do que o normal. Trombadas contra móveis já não era algo novo dentro da minha casa, mas, sim, uma nova rotina que acabei adotando depois de cada bebedeira. Uma coisa que pode provar tal ponto, são os diversos vasos que estão devidamente lançado contra o chão, divididos em diversos cacos cortantes.

Fazer besteiras também faz parte dessa outra parte de mim: cortar o sofá, desmontar a cama, queimar algumas roupas... O bom de ser isolada, é que ninguém de fato se importa. A voz vive dizendo que eu tenho um problema sério, mas ela só quer saber de me dominar... É uma imbecil! Assim como os demais! Tudo está em perfeita ordem! E isso basta...

... Deito no sofá, cambaleando o máximo antes de encontrar um lugar confortável entre as corcovas do móvel. Dali eu já iria dormir, a fim de fazer o tempo de um dia para o outro passar de uma forma mais rápida, para, assim, os mesmos acontecimentos se repetirem: olhar para o quadro, discutir com a voz, comprar outra garrafa, beber ela até a metade e ir dormir... De novo, de novo, de novo, até algum dia eu ser morta pelo próprio ego.

Quando finalmente me deitei no sofá, o mundo começa a girar mais uma vez e, como consequência disso, meu estômago decide jogar tudo o que bebi para fora, ainda deitada sobre os estofados rasgados. 

Expilo algo vermelho, misturado com uma cor verde espalhafatosa, algo que nunca imaginei que sairia de dentro de mim. Sujei as roupas, o tapete, o piso, me sujei e deixei tudo marcado por aquela mistura de cores errantes... Quem dera se fosse somente esse o problema... Não paro de vomitar as duas cores juntas. Meu corpo queria expurgar algo que estava vivendo dentro de mim, e parece que ele conseguiu chegar em tal objetivo . Foi tão repentino, que não consegui sair daquela situação. Me debati freneticamente, balançando a cabeça para todos os lados, manchando tudo de vermelho e verde.

Foi aí que me toquei: o vômito serve para me matar engasgada... As vias respiratórias não param de clamar por ajuda, sem brechas para manter a respiração normal. O desespero só piorou as condições, coisa que fez meu corpo se contorcer por todo o sofá, me deixando "batizada" por líquidos oriundos das entranhas de uma bêbada fodida. 

O tormento não ia parar tão cedo... Entrou pelos narizes, orelhas, feridas passadas. Saía da boca e voltava para ela... Fico atolada numa lama de perdições. Perdições que eu mesma criei... A voz  armou pra mim? Foi traçando seu plano sem eu perceber? Julguei ações erradas como se fossem as corretas? Acontecimentos passados cruzam-se com os do presente?... Creio que a voz estava certa... O quadro era sobre um velho sendo apunhalado pelas costas por uma sombra... O mar de sangue era só o fundo do cenário, nada de importante. No fim, nada disso importa. O quadro acabou virando mais uma memória distante.




O que as cartas me escondemOnde histórias criam vida. Descubra agora