O Contrato

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Karina sentiu-se levemente confusa ao abrir os olhos. Só se sentia assim após tirar uma soneca do nível de acordar e não saber seu próprio nome. A sensação costumava ser boa, mas no momento só sentia o pavor de não ter ideia de que horas poderiam ser.

Lembrava-se que na noite passada fora dormir por volta de 00h, morta de cansaço por conta da festa. Em tese, deveria ter acordado com o despertador às seis da manhã no dia seguinte para ir à escola. Nessa época do ano em São Paulo, pouco antes das 6h os primeiros raios de sol já lhe agrediam os olhos, mas essa manhã estava... diferente.

O céu, se isso fosse sequer possível, parecia pintado de preto. Um silêncio mortal tomava conta da casa, coisa que também não era muito característica de seu lar. A cultura de sua família era de que o primeiro a levantar deveria se encarregar de fazer o máximo de barulho possível a fim de que todo o restante dos moradores acordasse até, no mais tardar, seis e meia.

Como nunca se passava um dia sem que o despertador tocasse e as panelas gritassem, estranhou muito mais o silêncio do que o piche no céu. Era normal, certo? Sempre choveu bastante nessa época, acontecia de às vezes o dia amanhecer nublado.

Alcançou uma lanterna que mantinha em sua escrivaninha, ligou-a e escaneou o quarto, passando lentamente os olhos pela cama de sua irmã abaixo da janela e constatando que não havia ninguém lá. Passou os olhos pela cômoda onde ficavam seus itens de higiene pessoal, bem como alguns quadros com fotos suas e de seus amigos.

Continuou investigando o quarto, esperando encontrar nada. Costumava ter a neura de que, se observasse lentamente cada canto do próprio quarto quando estivesse com medo, ou superaria a tolice ou se depararia com algum demônio que comeria sua cabeça como um aviso amigável de sua presença.

Claro, criatura alguma jamais apareceu, portanto, seu medo sempre era superado. Conforme passava os olhos pelo guarda-roupa, levou um mini susto ao olhar para o espelho. Por alguma razão, seus pijamas estavam pendurados na maçaneta da porta em que o objeto ficava (onde sempre os deixava pela manhã após se arrumar), e podia ver o colarinho vermelho vivo de seu uniforme ao focar bem os olhos no próprio pescoço em seu reflexo. Virou a cabeça para baixo e arrancou o cobertor com tudo, olhando atônita para o próprio corpo. Estava com o uniforme esportivo da escola, o que não fazia o menor sentido. Odiava dormir com roupas sujas, sentia-se imunda.

Levantou, desnorteada, e sentiu uma dor intensa no lado esquerdo da cabeça. Relou a ponta dos dedos de leve e sentiu um galo, que não estava ali no dia anterior. Embora fosse desastrada, não se lembrava de ter batido a cabeça. 

Caminhou até a cômoda, que ficava ao lado das únicas tomadas do quarto, cambaleando por conta da dor na cabeça, procurando pelo celular. Ligou a tela, xingando por conta do brilho exagerado, e verificou as horas. Por alguns segundos, não conseguiu acreditar no que via. Como poderiam ser 20h02 da noite?? O dia correspondia, segunda-feira, 04/02/2019, mas a hora... não era possível que poderia ter dormido por tanto tempo. Após isso, o segundo baque a atingiu: não tinha notificação alguma agredindo seu TOC.

Sentiu-se horrível por conta disso, a autoestima despencando brutalmente de maneira quase instantânea. Claro, era (ou deveria ser) uma segunda de manhã, as pessoas não vão passar a madrugada de domingo bisbilhotando sua vida pessoal na internet..., mesmo assim! Zero notificações era ridículo demais.

Sabia que não deveria se preocupar com algo tão fútil quanto notificações em redes sociais, mas era simplesmente inevitável. Decidiu a ignorar aquele circo ao qual estava se submetendo e desligou o celular. 

Caminhou com passos duros até a porta do quarto. Abriu-a, olhou em volta e, observando todas as portas do corredor fechadas.

Saiu do quarto, tomando cuidado de deixar a porta bem aberta, e caminhou até o início do corredor. Abriu a primeira porta, entrou no banheiro e acendeu a luz. Realizou suas necessidades, escovou bem os dentes, olhou o calendário (por alguma razão que desconhecia, sua mãe mantinha um calendário no banheiro, ao lado do espelho), e viu que no dia seguinte sua menstruação desceria. Abriu a "caixinha das meninas", como seu pai chamava, procurando por um absorvente. Pegou um, abriu-o e se deu conta de que estava sem calcinha. Como não percebera o detalhe na hora de se aliviar era um mistério, mas não se demorou muito nisso. Deixou a questão de lado, pensando que poderia simplesmente colocar o absorvente antes de dormir mesmo.

Contos Embaixo da Cama [Em Revisão]Onde histórias criam vida. Descubra agora