Eu seguro a faca como se fosse a única coisa me separando de uma morte violenta e inevitável. E realmente é.
Meu pé direito em breve abrirá um buraco no chão exatamente no ponto em que o bato incessantemente. Meus olhos estão áridos, ávidos por umidade, por uma piscada que fosse, mas eu não posso me dar ao luxo.
Ninguém podia, mas se davam. E morriam por isso.
Eu não vou morrer, vou sair por cima, vou persistir e superar. Meus pais falharam, minha irmã falhou, minha Rebeca falhou. Absolutamente todos em minha vida sucumbiram. Mas eu não.
Nem fodendo.
Três batidas na porta me fazem pular da cadeira. Caminho rapidamente em direção ao som e giro a maçaneta; respiro fundo, e puxo a porta com força.
- Beto? Eita – Fernando recua, torcendo o nariz – Que cheiro é esse? – Fernando manteve os olhos fechados e o nariz franzido. Burro, burro, burro...
- Você trouxe? – Estendo a mão, tentando controlar o tremor, quase implorando pela arma.
- Quando foi a última vez que você dormiu, mano? Seus olhos estão esquisitos. E sério, que porra de cheiro que é esse? – Continuo com a mão estendida, ignorando as perguntas. Fernando suspira, e me entrega a .38 – Não preciso me preocupar com você, né? Tu vai usar essa merda para o quê?
- Valeu, Nandinho. Tchau. – Fecho a porta com um estrondo. Se pudesse adivinhar, apostaria que Fernando deu de ombros e foi embora. Afinal, não era mais problema dele.
Encaro a arma com uma fome horrível. Abraço-a com força, meus olhos injetados ameaçando piscar. Não, jamais, nunca. Me viro e caminho rapidamente até a cozinha, meus passos soando como tiros contra o piso de madeira.
Não que importasse para qualquer um além de mim e os fantasmas que me rondavam.
Fita. Preciso de fita. Faca, fita, não, fita. Faca seria o último recurso, último. Abro a gaveta de tralhas do armário, e pego a fita isolante. Com certeza essa vai servir.
Deixo a arma na mesa, e rodo a fita várias vezes procurando a ponta. Merda, merda, cadê a porra da ponta?
Finalmente a acho, mas a porra da ponta tá grudada demais. Volto para o armário e abro as gavetas uma a uma até encontrar os talheres. Pego a faca de churrasco e passo a ponta na beirada da fita, rasgando-a.
Puxo a ponta da fita e a rasgo, pendurando o pequeno pedaço na ponta da mesa. Puxo mais um e repito o processo. Estico bem as pálpebras e as grudo. Arde, como arde, meus olhos parecem estar abaixo de uma tigela de veneno que goteja sem parar.
Pinga. Pinga. Pinga. Pisca.
Não pisque, não, jamais.
Pego a arma de cima da mesa, e a encaro. Ele está vindo, eu sei que ele está vindo, e preciso estar preparado. Em breve ele chegará, e essa arma vai me salvar, essa arma que vai me livrar da forca eterna no Inferno.
Todos fecharam os olhos, todos dormiram, todos sucumbiram. Mas eu não, jamais.
O homem no escuro. O homem que surge junto das luzes cintilantes que aparecem em minhas pálpebras quando meus olhos se fecham com força. O homem do sorriso macabro, o homem das luzes piscantes.
Meus olhos não o enxergam, ele se manifesta nas pálpebras. Será? Será que realmente é nas pálpebras? Eu não sei, não sei, eu sei. No escuro. O problema é a escuridão. Por isso ele aparece nas pálpebras. Afinal, se eu nunca fechar os olhos, nunca vou ficar no escuro.
Ele só fica lá, me encarando, e eu não entendo nada. Um sonho, sim, um sonho distante e maluco.
Um sonho que me rasga a garganta e leva meu fígado.
Tolos, burros, idiotas. Não pisque, não durma, não vacile. Ele vem, sim, ele vem. Eu sei que a arma está tremendo violentamente em minha mão, destravada e perigosa. Eu a encaro, e ela zomba de mim.
Mortal para mim, mas pior para o homem no escuro. Na cabeça, um tiro na cabeça com certeza resolveria. Será que é possível não resolver?
Claro que não, impossível. Faca, último recurso, vai resolver tudo. Sinto minhas pálpebras perigosamente perto de cair. Os pelinhos de minha sobrancelha ardem ao serem puxados um a um pelas fitas.
Elas não aguentariam. Merda, merda, merda...
A faca, no chão. É mais afiada que a faca de churrasco. Viro-me e caminho até a faca que larguei no chão perto da cadeira de frente para a porta. A porta.
Aberta.
Pego a faca e me lanço contra a porta, fechando-a com um estrondo. Giro a chave, trancando-a, e encaro o infinito escuro. Meus olhos estão lacrimejando, meus pelinhos ardem e a canseira era inevitável.
O sono. O sonho. Sonho que mata, trucida, destrói.
As sombras se erguiam, absurdas, opressoras. O escuro fica cada vez mais escuro. Toda a luz, sugada. Do que adianta manter os olhos abertos se não haveria luz para me salvar?
Sons. Sons estranhos. O arauto de sua iminente chegada. Sons altos, ensurdecedores, rasgando meus malditos tímpanos.
Não há tempo. Largo a arma na cadeira, e pego a faca. Puxo as fitas, torturando minha própria face, mas sem fechar os olhos. Jamais.
Estico a pálpebra direita, e com um movimento certeiro, arranco-a. Meu grito reverbera pelo vazio eterno da escuridão, afastando todos os demônios que espreitam minha alma.
Com as mãos trêmulas, puxo a pálpebra esquerda. Não há volta, não mais. Arranco-a, dessa vez sem gritar. Meu corpo inteiro treme de forma violenta, mas agora eu estou seguro.
Pego a arma, alegre, em paz, apesar das ondas de dores que me comem os nervos.
Não, não, não, não é possível. Que forma é essa que enxergo através do mar de sangue em minhas retinas? Por que aquele sorriso macabro se manifesta em minha visão?
A pálpebra. O escuro. O problema era o escuro, como tinha desconfiado desde o início. Merda, merda, dor.
Dor desnecessária.
Olho para a arma o melhor que posso, meus olhos queimando furiosamente. Pego-a e a aponto para minha cabeça. Respiro fundo. Um estrondo me assusta, e a arma dispara contra o teto.
Viro-me para trás e observo, sem acreditar, conforme a polícia invade minha casa. Fernando, do outro lado da porta, me encara com um misto de nojo e preocupação. Não, não, agora eles estão contaminados. O que Fernando fez?
Minha família, ah não, eles vão ver minha família. Como vão entender? Eles morreram pelas mãos do homem no escuro! Mas vão achar que foi pelas minhas, e agora?
Não, não, droga, merda, não. Cadê a arma? Minhas mãos estão algemadas. Quando? Droga, eu o vejo. Mais claro do que nunca, o homem no escuro. Um policial grita no andar de cima, eu sabia, são fracos, não aguentariam ver o estado da minha família. O homem das luzes cintilantes é cruel demais.
Fernando me encara como se eu fosse um demônio. Mal sabe ele que o verdadeiro demônio está atrás dele agora, no escuro. No infinito escuro.
- O que você fez? – Fernando sussurrou para mim quando passei por ele, arrastado por algum pobre coitado que me segurava com mãos de aço. Encaro sua expressão de nojo. Ah Nandinho, o que você fez?
- Não pisque, não durma, jamais. Entendeu?
Fernando pisca e me repreende com desgosto. Burro, burro...
O homem no escuro me encarava com deleite. Fui levado para o hospital, onde ficaria sob custódia até que minhas feridas se recuperassem.
Meu corpo foi encontrado na manhã seguinte, virado do avesso com um tiro em minha cabeça. Minhas entranhas estavam esparramadas pelo chão, minha barriga rasgada por um pedaço de metal arrancado de minha cama defeituosa. Um bilhete em uma mesa ao lado da cama, escrito em uma letra grotesca e sem forma que claramente não me pertencia não dizia nada e dizia tudo.
Vocês são os próximos.
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Contos Embaixo da Cama [Em Revisão]
HorrorVerdade seja dita, é muito difícil assustar ou chocar um brasileiro. Com tudo que vivemos na pele todos os dias, um demônio espreitando sua cama durante a noite é nada mais que um leve incômodo. Portanto, se está procurando por um livro de terror na...