Capítulo 32 - Areia Movediça

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Na casa mal assombrada, havia um fantasma. Ele derrubava móveis, zunia com o vento. Chorava às madrugadas, desaparecia à luz do dia. Invadia corpos que não lhe pertenciam, desprezando aquele que chegou a habitar. Era uma massa carmática, algo orgânico, inconstante e incontrolável. Ele viveu, embora não se lembrasse de quando. A morte era sua velha amiga, para quem sempre tentaria retornar.

O fantasma era Angelina? Cassandra? Ele não saberia dizer. Identificava-se com o fim e o pavoroso. Era causa e consequência. Nascera quase morto, para viver como se nunca houvesse vivido. Como viver sem saber o que é? Como dizer verdades ao sonhar com a mentira? Tudo a seu respeito era paradoxal, digno de debates internos fadados a não terem conclusão, a terminarem com mais perguntas. Desejava caminhos impossíveis direcionados a uma felicidade inalcançável.

A mulher morta respirava. E o fantasma dentro dela delirava.

Cortes vestiam sua pele de vermelho. O tecido líquido queimava e escorria. Vagava pela camisola branca, atingia o chão à sua volta; os cacos de vidro que clamavam por sua cor para se fantasiarem de rubi.

Ela pensou em linha e agulha. Ambas saltando por sua pele, enfiando-se dentro dela, costurando sua carne, unindo tudo que estava partido. Enxergou-se remendada, e pensou que talvez houvesse conserto. Mas daquele momento em diante, Cassandra entendeu que sempre estaria pela metade. Ela era algo que ficara para trás, enquanto sonhava pelo que ainda não havia chegado — e talvez jamais viesse.

Não ele, entretanto. Ela sabia que ele estava prestes a chegar.

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Nova Orleans havia amanhecido ensolarada. Os céus vibrando em dourado escondiam as entranhas tempestuosas que se acumulavam por baixo dele. O detetive recebeu os feixes escaldantes diretamente em seus olhos, abrindo-os, forçadamente. A manhã acalorada revelou o suor descendo em gotas por sua pele, o fervor dominando seu corpo.

O sol maligno revelou a cama mais uma vez vazia. Os lençóis arrumados demais, os travesseiros precisamente no mesmo lugar que ele os vira antes de dormir. Içou-se para longe, a ansiedade exterminando qualquer resquício de cansaço que ele ousasse sentir.

Dana não havia voltado para casa.

A ansiedade fundiu-se à angústia, e a todos os seus fantasmas, enquanto Jack decidiu se aprontar para sair. Ele não pensava. Ao menos, não tinha a capacidade de definir os relâmpagos mentais que lhe acometiam como pensamentos. Escapou em instantes para a rua, saltando ao primeiro táxi que cruzou seu caminho.

As frases certeiras ditaram o trajeto ao motorista, e o palhaço diabólico logo germinou na paisagem. Ainda mais podre e enferrujado. A tinta branca trajava recortes pútridos, que contornavam os grandes olhos amarelados como olheiras — menos intensas que as do detetive irado que passava por baixo dele, porém.

Foi ao lugar que o Guadolomon deveria estar, deparando-se com o carrossel. Jack o interpretou como o prelúdio do próximo giro de sua roda da fortuna, uma mensagem do além, uma reverência de Marjorie Montgomery. Pensou nas mulheres de sua vida; seus olhos preciosos, nos quais ele mergulhava quando as encontrava. E correu mais rápido ao acampamento.

O trailer, desta vez, encontrava-se além da cerca delimitadora do Golden Gate. Mas continuava ali. Jack conteve um suspiro de alívio, e se espremeu por um buraco no arame farpado. Um rasgo ardeu em sua pele, gotas de sangue mancharam sua camisa branca. Ele rosnou para si mesmo, apropriando-se da dor repentina para impulsioná-lo a correr mais rápido.

Myers! — esbravejou.

Jack chocou-se contra o corpo de Rick, empurrando-o. O rapaz o encarou com espanto.

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