Capítulo 10, aquele do jantar

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     Não consigo disfarçar meu desconforto. Graças a Deus Thiago não falou sobre o caso nem uma vez sequer desde que chegamos, mas sei que é apenas questão de tempo. Os irmãos estão sentados um ao lado do outro, destacando mais uma vez o quão diferentes são mesmo tendo o exato mesmo rosto.

A cabeça de Thiago é raspada e seus braços são cobertos por tatuagens em preto e branco. Sorri o tempo todo e faz piadas com a menor das coisas que acontecem ao seu redor. Juan é sério, revira os olhos para o irmão, e não rouba comida do meu prato como o outro faz Monique, que está sentada ao meu lado. Ela é divertida também, sorri a todo minuto e o cabelo é completamente azul.

Juan me contou a história desse casal milhares de vezes. Sempre foi um admirador secreto de Thiago e Monique. Eles namoram desde os 16 anos. Começou à distância e ficaram assim por anos, o que me surpreende muito, mas depois, sem contar para ninguém, vieram morar juntos em Jundiaí, onde estamos agora apreciando o melhor que o restaurante caseiro de entrega rápida pode nos oferecer. Ambos são tatuadores, o que faz com que insistam que eu e Juan façamos uma tatuagem sempre que visitamos, mas isso não acontece com tanta frequência para que seja incômodo.

Às vezes parece que eles se evitam sempre que podem, não sei explicar o porquê, mas também não ouvi argumentos que sustentem o motivo do meu marido demorar meses para ver Thiago. Uma vez ouvi algo sobre a necessidade de se individualizar que univitelinos podem ter, já que crescem com sua identidade associada à outra pessoa, e talvez seja isso.

— Ela não come nada verde? — Monique aponta para o prato de Michele, no qual minha filha minera a alface para encontrar o purê de batatas. Desde que a adotamos, ela só esteve aqui 3 vezes.

Thiago solta uma risada abafada.

— Come tudo, filha — pede Juan, assumindo o local de pai que deve ser obedecido e não o bobão que faz todos os desejos da Michele. — Essa é nova. — Juan aponta para a tatuagem de chave pequena na parte interna do pulso de Thiago.

— Tem mais 9 desde que você esqueceu que tem irmão. Dá pra brincar de caça ao tesouro — comenta Thiago, colocando uma garfada na boca e levantando as sobrancelhas para mim. Foi uma bela alfinetada no mais velho entre eles – por cinco minutos, sempre ressaltam. — Olha o que comprei. Peguei uma promo online por metade do preço!

— Ah, não... Você comprou a edição de Star Wars? — Pego a caixa de baralho colecionável que Thiago acaba de tirar do bolso e colocar na mesa. — Que coisa linda!

Eu e meu cunhado temos muitas coisas em comum, mas o amor por baralhos é de longe a maior delas. Contenho minha criança interna por alguns segundos, mas não me aguento e começo a ver todas as cartas.

— Bonitão, né?

— Vai ser incrível te dar uma surra com ele — digo. Thiago não está convencido. — Se eu perder é porque faz tempo que não jogo.

— Essa é sua desculpa sempre — Thiago está rindo quando me diz isso.

Meu celular toca dentro da bolsa pousada no sofá. Encaro o móvel que tem a mesma cor amarronzada de metade da casa de Thiago, a única cor estravagante aqui é a do cabelo de Monique. Não há divisão entre os cômodos e penso em atender enquanto encaro a alça preta caída para fora, mas o olhar que Juan lança para mim me faz mudar de ideia.

— Estamos de folga — sussurro, insatisfeita.

O aparelho para de tocar e dou um gole no refrigerante preto no instante que o de Juan começa no bolso dele. O homem o tira para fora e recusa a chamada. Foi delegado, considerando o seu olhar desconcertado em minha direção.

— Você quer sobremesa? — Thiago pergunta à sobrinha e Juan tenta argumentar que a Michele não comeu tudo do prato para isso, mas é completamente ignorado. Eu sorrio, sabendo que não se pode negar a grande habilidade que Thiago tem em deixar Juan com cara de idiota.

— Come tudo — Juan instrui apontando para Michele enquanto Thiago vai indo para a cozinha.

Meu telefone toca mais uma vez e, agora, o olhar que eu e Juan trocamos é muito diferente. Pela insistência, algo sério está acontecendo. Deixo a mesa enquanto sorrio para Monique e caminho até o sofá, procurando o celular, mas não o atendo antes da ligação cair. Juan atende o seu, que toca em seguida. Ele está falando com o delegado e pede que eu ligue a televisão enquanto aponta para o controle remoto na mesa de centro. Juan já está de pé e o telefone ainda está sobre sua orelha direita quando ele caminha até o meu lado para ver o noticiário.

Porra.

No jornal, a repórter de cabelo crespo preto está falando sobre o caso. Ela afirma, com todas as palavras, que a polícia já sabe não ser o Caçador de Olhos e sim um imitador. Solto um gemido de desprezo e a raiva remexe minhas entranhas, me fazendo fechar os olhos para que consiga me concentrar.

Praguejo até o último descendente da pessoa que vazou isso para a mídia sensacionalista que fará um inferno ainda maior a partir desse momento.

Coço a garganta e olho para trás, pedindo com um gesto que Michele saia da mesa. Penso em pegar logo nossa filha para sairmos daqui, mas logo encontro o olhar de Thiago. Ele está encarando a televisão e depois me olha. O semblante antes animado e descontraído se transformou em um duro como pedra em minha direção. Ele coloca o pote azul claro na mesa e da dois passos em minha direção.

— Você já sabia que não era ele? — pergunta, ausente de piedade, com todo o mais puro amargor que deve estar preso em sua garganta. — Sabia ou não sabia, Lau? — fala mais firme quando me mantenho calada.

Assinto tristemente. Os ombros dele descem e Thiago leva as mãos à cabeça.

— Eu te prometi que não ia falar disso. — Thiago aponta para Monique, mas seu dedo depois caminha até mim. — Mano, Laura, fala alguma coisa.

— Ei, abaixa a voz — Juan se intromete. Olho para Monique, que tem os dedos da mão encostando na boca a cabeça descrente balançando.

Thiago me dá as costas, não querendo gritar ou me ofender na frente da nossa filha, mas sei que é seu desejo. Juan caminha até Thiago e o abraça.

— Eu sabia também — assume Juan, me surpreendendo.

Eu me sento no sofá, mole, observando tudo com o peito queimando e os olhos prontos para lacrimejar, mas contida pelo repetitivo pensamento de que não tenho controle sobre esse fato, mesmo que deseje ter. Juan ainda está me encarando e queria ter algo válido para dizer aos dois, mas de nada vai adiantar falar agora. Não entendo a dor deles, nunca entendi e nunca vou ser capaz de entender. É algo distante de mim o sentimento que borbulha no peito dos gêmeos abraçados.

Há 20 anos eu estava implorando para que minha mãe me levasse ao show da banda mexicana que fazia a cabeça das crianças da minha idade, mas Juan e Thiago estavam enterrando sua mãe biológica, aos 8 anos, morta por aquele que nunca foram capaz de pegar. A vítima que fez os policiais pensarem que o Caçador de olhos não matava apenas prostitutas, mas nunca houve certeza do que ela fazia quando saía às 23h todo sábado. Uma das 7 na lista das que nunca foram vingadas. E a morte de Vanessa caiu no esquecimento da mídia e da polícia ao longo dos anos. Os filhos foram adotados juntos por um casal de empresários e ensinados a apagar qualquer memória da falecida, mas os esforços dos pais adotivos e dos psicólogos nunca foram o suficiente. Eram crianças e provaram, assim com as trigêmeas do caso, que um trauma desse tamanho marca sua vida de sangue para sempre.

Thiago, assim como Juan, desejava que fosse o mesmo homem, mas essa notícia remexe em feridas profundas demais a ele. Poderiam, sim, evitar pensar nas barbaridades que a mãe ficou sujeita, mas no fim sempre restará a angústia, o desgosto e, muito mais, o ódio de nunca terem a chance de ver o Caçador de Olhos pagar pela perda irreparável que provocou em mais de uma dezena de crianças que ficaram sem mãe.

Abro a boca em espanto. Mais de uma dezena de crianças.

Não é o ideal, mas algo se clareia na minha mente. Um padrão. Em nenhum arquivo do caso do Caçador de Olhos existe a constatação que acabo de fazer. Estou relembrando os rostos das mulheres mortas por ele e as informações sobre seus filhos. Todas eram mães, mas não só isso: todas eram jovens e foram mortas anos depois de terem crianças idênticas como filhos. Isso faz sentido? Existe algo mais para explorar que já não foi saturado em quase duas décadas?

Não Deixe a Puta MorrerOnde histórias criam vida. Descubra agora