O CHEIRO DA MORTE NA FLOR DA MÃE DE TADEU

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Então: eu acredito que Antonio, aquele garoto, ensina que as sensações nos guiam e criam a nossa própria experiência de existir. Aquele garoto me botava algumas coisas nas ideias e, em alguns dias muito específicos e secretos, botava algumas ideias nas minhas coisas. Antonio absorve o mundo por cada um dos presentes divinos que emolduram o seu ser vivente. Cinco ou seis, os presentes, é claro. É a partir disso que ele descobre em todos os dias de silêncios inquietos e infantis a sua vida sempre misturada com um monte de jeitos de existir: a formiga e as outras formigas. Cheiro de formiga parece cheiro de chinelo de couro velho quando pega sol na varanda. Esse é o cheiro da formiga. Vai dizer que não é? A borboleta é estranhamente diferente da formiga. Isso ele sabe manter num estudo inusitado para separar tudo que é formiga de tudo o que é borboleta. É fácil! Pensa que quando você encontra uma borboleta, imediatamente te dá uma vontade de conhecer como ela chegou até ali. Também dá uma certa vontade de comer as asas coloridas com calda de caramelo, mas isso é um outro jeito inusitado e muito fino de reconhecer uma borboleta. Mas o que ele quer dizer da borboleta é sobre a metamorfose dela. Da crisálida ao farfalhar de asas de uma borboleta. E a formiga se diferencia disso tudo porque ninguém fica pensando muito em  como uma formiga foi parida nesse planeta. Você sente o cheiro do tal chinelo de couro ao sol na varanda e pimba, descobre que o que cheira e vê são formigas. Você quer ver uma coisa: mar tem cheiro da bolsa de pescaria do pai do menino. Deu problema na percepção exatamente porque existem dois tipos de peixe. Peixe de água salgada e peixe de água doce. No fim disso, era fácil determinar que mar, oceano e qualquer água salgada era um tipo de peixe que meu pai só pescava no litoral. Rio, lago, cachoeira e copo d'água eram peixe de água doce. Esse doce é diferente. O salgado já não é. Talvez passasse pela cabeça do garoto - Ôoooo...garoto, tá dormindo de olho aberto? – que ele dormia de olhos não só muito bem abertos como também abria desfolhando-se, todos os seus sentidos, pele, poros, sangue e líquidos. Tantos ares por cada tudo antes dito. Era assim que Antonio sentia o mundo.

Naquele dia específico e secreto, ele conheceria um outro ser. Ou mais de um. Um arbusto com flores roxas muito fortes ao lado de flores rosas muito pálidas e, um pouco aqui e acolá, flores brancas. Até aí gato e arbusto podem parecer a mesma coisa para Antonio. Os dois têm cheiro. Era só trocar um cheiro pelo outro e ouviam-se miados no que era um vegetal e viam-se deslumbrantes flores brotando nas barbas do gato. Ele tem que sentir que gato tem cheiro de fumaça de chaminé e o arbusto tinha o cheiro da morte da mãe do amigo dele. O Tadeu. É daqui que a gente começa a saber quem era esse garoto. Bem que não deu tempo de saber direito e perfeitamente quem era o garoto, porque tão logo os meus olhos o fisgavam como um peixe, ele saiu correndo rua afora. Pra mais adiante. Numa aglomeração de vizinhos. Aí ele conheceu que aglomeração de vizinho é aquele jeito de saber o que é tristeza. Aglomeração e cardume podem ser a mesma coisa e faz muito sentido. Mas os vizinhos estavam aglomerados em profunda tristeza, que nesse caso é um consumir-se em si mesmo. Coisa habitual de ver e reconhecer na tristeza. Ela estava lá, mas estava acompanhada pelo cheiro que diferenciaria um gato do arbusto da morte da mãe de Tadeu. Um cheiro roxo e doce de coisas que morrem. Era o arbusto. O gato era outra coisa.

A partir de agora, é só encontrar o cheiro da morte da mãe de Tadeu que ele encontra o arbusto. Tudo era relembrado e o arbusto era o que era. Isso assim é definido num conceito de livro de Biologia. Desde o primeiro a existir assim até os seus atuais descendentes, o arbusto só poderia ser reconhecido da forma que Antonio o interpretou. Foi nesse ponto que Antonio confundiu através dos sentidos duas coisas imponderáveis. Isso é muito compreensível quando alguém se dispõe a entender os mecanismos sensoriais desse garoto e as manobras intensas de seus neurônios. É daqui que outra vez, pode ser que a gente recomece. Talvez. Ao confundir os dois odores, ele entendeu que o não existir era real através do sentir as coisas de uma outra forma. Misturando uma coisa com outra. A outra coisa que surge é o mistério do universo. Experimenta misturar as formas de se reconhecer acima, abaixo, à direita e à esquerda, à frente e atrás ao cheiro da flor do arbusto da mãe de Tadeu no dia da morte dela e você vai entender, assim como Antonio compreende até hoje, a maior de todas as coisas, aquela que sua cabeça vai seguindo infinitamente até dar tonteira. Essa coisa única deve ter um nome. Baleiro, céu, deus, colibri e saudade são a mesma coisa.

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