Ele disse não. Ainda não. Era assim que ele dizia a si mesmo na hora de. Nunca era a hora. Não era o momento. Deixava para depois. Outro dia, outra hora. Quem sabe. Era um modo de viver. Embora tivesse desconfiança de que era uma maneira de não viver. De espreitar a vida. Sabia-se assim desde então. Antes de tomar qualquer decisão vinha sempre a lembrança de limpar o muro da hera que crescia descontrolada, ávida por esticar seus novos ramos e raízes adventícias escaladoras pelos tijolos acima. A hera naquela estação estava enlouquecida. Parecia com desejos desenfreados de desbravamentos. Sede de aumentar territórios. De jeito nenhum poderia deixar que tal coisa acontecesse. Seria terrível demais para o muro ser tragado por novos ramos impiedosos que o sufocariam. Um estrangulamento assistido por um inerte jardineiro. Não poderia deixar que. O equilíbrio faria bem até mesmo a uma planta. Até mesmo a uma trepadeira. Isso era urgente. Antes deveria encontrar a tesoura de poda. Onde estava? Da última vez que a utilizou foi para arredondar as pequenas árvores de fícus no jardim. Arredondamentos de copas.Tão saudável para a nova brotação. Depois do incidente a guardou. Na verdade,escondeu-a de tal modo que não conseguia lembra-se de. Tão difícil se lembrar daquele dia. Não reparara que havia um ninho de pardais no meio dos galhos tão densos. A ponta da tesoura derrubou os pequenos ovos do ninho ao chão. Plac.Plac.Plac. Barulhinho imperceptível. Estrago irreparável na vida ainda em plena burilação. Não. Não teve como evitar. A gosma amarela e celular envolvida noutra de uma transparência viscosa e perturbadora derramada ao solo. O que era a vida senão isso. Viscosidade e transparência. Adeus embriões. Depois não cortou nenhum ramo a mais. Desgostou-se. Teve dó de ter três pardais a menos no jardim a cantar alegremente no início das manhãs vindouras. Faltou poesia para o fragmento do dia. Não há fragmentos poéticos em nada. Só realidade. Quem os encontra, mente para os outros e para si mesmo. Tudo é o que é. O todo é intransponível para a poética num jardim sem pardais. As árvores ficariam carecendo do término de um trabalho meticuloso de domar galhos pontudos e rebeldes. Ele precisaria de energia emocional demasiada para terminar a lida com os fícus. Um desgaste que talvez não ousasse viver no momento em que deveria procurar alívio. A tranquilidade imediata. Uma fonte doce e cristalina da mais pura água para deitar seus pés cansados e esquecê-los submersos até que os dedos enrugassem e a circulação sanguínea diminuísse ao ponto de subir-lhe um formigamento pelas panturrilhas e alcançasse os joelhos como agulhas muito finas. Que fazer? Lá não voltaria. Deu de ombros aos pés de fícus para sempre.Que crescessem à vontade e ignorados. Planejara para eles um descuido eterno. Mas era preciso aparar a hera, poupar o muro,encontrar a tesoura de poda. Haveria ferrugem impedindo o bom corte da tesoura.Ela não exercia seu papel protagonista de ceifadora afiada há algum tempo. Abre e fecha. Um movimento e as folhas caíam ao chão. Os galhos eram ceifados do tronco. Os ramos sucumbiam. As árvores tomariam a forma que ele quisesse. Imposições do jardineiro. O muro também seria um tapete de várias nuances de verde. Por isso era preciso que ele adotasse estas providências com a hera. Antes de qualquer outra coisa, era necessário amolar a tesoura e devolver-lhe o corte afiado e o brilho de relâmpago em noites de tempestades tropicais. Já havia percebido as lagartixas trilhando caminhos secretos e obscuros entre a ramagem trançada. Crescia ali uma população destes pequenos répteis. Por isso podaria tudo com cuidado. Não suportaria enfrentar uma nova situação negativa. Dessas que são difíceis de serem resolvidas. Mas como evitar? A camuflagem das pequenas criaturas seria uma arma contra elas mesmas. A tesoura amolada não perceberia a diferença entre a pele fria, verde e pegajosa dos bichos e a folhagem igualmente verde e fria.Pegajosa não era. As folhas não poderiam ser adjetivadas assim. Não possuíam pele como os bichos. Eram de natureza vegetal densas de fotossíntese. Se olhasse bem veria a diversidade da vida no muro de hera. Formigas, lagartas,grilos, besouros. Era vida abundante naquele micro universo verde e cravavam os olhos miúdos somente nele. Muitos olhos esgueirando-se. Claro que o percebiam ali para o desbaste. Viam-no como o deus ceifador dos jardins universais. O deus finalmente revelado. O destino de cada um deles estava selado. Escrito no livro da vida desde o mais antigo de todos os tempos. Fatum. Era engraçado vê-lo pelos olhos dos animais. Das aranhas e das abelhas. Quem ele pouparia? A sorte da generosidade divina, a quem agraciaria? O grilo seria contemplado. O gafanhoto seria recompensado. E a borboletas teriam suas asas débeis condenadas à amputação. Puro jogo de azar.Ou de sorte. Cartas marcadas. Xadrez. Destino desembaralhado no Tarô de Marselha. No controle do cabo de madeiradas lâminas afiadas havia a mão dele. A tesoura não agia por si só. Não era da natureza do objeto abrir-se e fechar-se de modo voluntário e, vez ou outra,inadvertidamente, ceifar vidas prematuras de aves sendo fecundadas e rabos de pequenas lagartixas. Era a sua mão que imprimia vigorosamente o movimento.Deu-se conta disso e preferiu que suas articulações se sobrecarregassem de grossa ferrugem e que não houvesse óleo capaz de devolver-lhe a desenvoltura.Teria parafusos, molas e alavancas paralisados. Ele era uma tesoura de poda. Um instrumento insensível e ao mesmo tempo muito útil. Era só ver o muro aparado para ter a certeza de que o mundo não existiria tal qual hoje as pessoas conhecem todos os muros se não fossem as tesouras. De poda ou de cortar unhas do dedão do pé. Nada importava mais que o fio cortante do aço. Um espelho refletindo a contenção das coisas. O rearranjamento da vida. Todo mundo devia ver a utilidade daquele instrumento de jardinagem. Isso era indispensável para alcançar além do muro. Com os olhos no horizonte azul acima dos tijolos vermelhos empilhados. Da sombra. Depois do muro. Da hera cortada. Do caminho a ser. E sempre era.
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Acerto de Contos
Cerita PendekNesse livro de estreia, o escritor Luiz Antonio Cavalheiro, traz histórias que , carregadas de estranhamento, podem ser lidas e percebidas como um mergulho profundo em uma mente delirante, simbólica e, muitas vezes, surpreendente.