Se não tivesse passado há pouco por aquele lugar, poderia dizer que aquilo ali no canto da parede, perto do rodapé, havia surgido lentamente, para não ser notado. Primeiro deveria ter sido apenas uma manchinha à toa, depois um descascamento da tinta ressecada. Ou alguma rachadura... Mas não, aquilo surgiu de repente. Não havia nada na parede minutos atrás. Num súbito estremecimento, concluiu que a casa poderia estar infestada por roedores ou cupins. Só algo assim para escavar a parede tão depressa. Calculou que seria muito conveniente chamar, por precaução e por avaliar os estragos que esses indesejáveis inquilinos sempre fazem nas madeiras e nos móveis, o serviço de dedetização... mas passara por ali não havia nem mesmo quarenta minutos. Uma hora no máximo. Era mais que isso? Talvez. Impossível ter exatidão... Havia cruzado a sala em direção ao quarto para buscar a sua toalha de banho e não havia dado conta de nada. Disso se lembrava! É certo que aquela reprodução barata da Última Ceia de Da Vinci, logo acima da grande mesa de jantar, estava um pouco torta na parede... Engraçado! Havia um desbotado estranho naquela reprodução que a desafiava... Via agora... As maçãs na fruteira pareciam murchas demais por falta de apetites, desejos, mãos e bocas... As crianças e o marido pararam de comer frutas. Gostavam tanto! E o tapete precisava ser aspirado tamanha a quantidade de pelos do velho gato siamês. Por onde andava o gato preguiçoso? De resto, todas as coisas carregavam em si uma imutabilidade irritante, mas necessária e segura. Um dia faria uma reforma. Era preciso ter tempo.
Não podia ter deixado de perceber aquele buraquinho... Coisa esquisita demais! Fazia uma (uma não! Duas!) revista por toda a casa cotidianamente: pela manhã, quando ainda tentava organizar a desordem das crianças com suas lancheiras e livros em direção à escola e, à noite, antes do jantar, logo após o seu merecido banho.
Não havia de ter sido um dos meninos... Criança não faria algo semelhante... As casquinhas derramadas no assoalho, a parede tão "naturalmente" carcomida... Era algo que vinha de dentro para fora. Quando essa certeza fixou-se em sua mente, dirigiu-se ao pequeno móvel que abrigava o telefone e algumas listas telefônicas. Roedores! Disse o diagnóstico para si mesma. Saber do que estava acontecendo lhe dava um alívio. Vou providenciar para amanhã a desratização disso daqui! Gato imprestável. Caçar ratos era o seu papel. Cadê a porra do gato que sumiu? Abriu as páginas da lista e logo sentiu uns papeizinhos muito bem picados, farelos de uma faina antiga, caírem no seu colo. A lista estava com um rombo perpassando todas as páginas, salvando a capa para não deixar pistas e vários outros menorzinhos salpicados aqui e acolá. Teve um pressentimento de que as coisas não andavam nada bem. Ficou ainda mais irritada quando percebeu que exatamente a folha do serviço que procurava tinha sido a mais danificada. Não dava para ler! Que nervoso! Pegou a caderneta de anotações... Todas as páginas também foram inteiramente devoradas! Meu Deus! Aonde tinha andado (Ela ou Deus?) por todo esse tempo para não notar um trabalho incansável desses... Desses o quê?
Com certeza a sua melhor amiga poderia socorrê-la. Vou ligar para... O nome. O nome... O nome? Qual o nome dela? Esqueci... A página está roída. O bloquinho de anotações destruído. O celular, é claro! Nome por nome... todos estranhos. Faltando partes. Estragados. Indecodificáveis. Quem são essas pessoas? Lista estranha. Nomes desconhecidos. Está louca? Constrangimento absoluto quando se deu conta da sua inexorável solidão diante do mundo.
Por alguns instantes, imaginou a insanidade se apossando da sua cabeça. Como apareceram os buracos na parede e os roídos na lista telefônica? Assim, do nada! Manteve a calma. Não demoraria, no entanto, emergir e voltar ao mundo das sensatas donas-de-casa. Estava quase na hora: primeiro as crianças, a barulheira, as brigas e as novidades de mais um dia de escola. Depois o marido, cansado e consumido pela máquina de fazer infelizes do mundo capitalista. Beijo. Afago. Resmungo. Outro beijo. Tudo estaria na mais perfeita ordem. De volta ao lugar que esteve durante todo esse tempo. Sua vida não seria mais um amontoado de intrigantes buracos pela casa, papéis roídos, aparelho eletrônicos com memória caduca, torneiras pinga pingando nas pias... Torneiras? Mais essa! O barulho vinha do banheiro. Merda. Não notara o desperdício de água? Agora o silêncio dera lugar a uma máquina letal de tortura japonesa. Chinesa? Já ouviram falar? Japonesa ou chinesa? Pingo após pingo no centro da testa do prisioneiro até tudo virar tormento. Loucura.
A hora chegou. Os filhos, não. Foi até a janela e olhou através dos vidros baços. Engraçado... Lembrou-se de ter limpado cada cantinho de vidro da janela. Não limpou direito. Tanto cocô de mosca e poeira... O ônibus escolar passou direto. Nem mesmo reconhecera o motorista. A hora passou. O marido se atrasou demais. Não veio. Não ligou... Sem beijos. Nem resmungos. Existiam os buracos e o medo deles... da vida... dos papéis que se dissolvem... dos sabonetes afogados na pia do banheiro... das coisas que nunca existiram. Os seus olhos marearam e logo se encheram de mágoa e angústia que se tornaram rios imensos...
Antes mesmo que se perdesse num dilúvio de proporções bíblicas, tomou cuidado de secar todas as águas derramadas. Já que era para dar conta de tudo aquilo, apertou a torneira da pia. Secou os olhos. Correu num canto da área de serviço e viu que tinha um bocado de cimento instantâneo lá. Fez uma massa com mãos habilidosas, que jamais havia imaginado possuir, e tapou os buracos. Um por um. Minuciosamente para que o seu trabalho ficasse feito com muito engenho e sabedoria. Jogou fora as maçãs passadas demais que estavam na fruteira. Podres. Há quanto tempo? Substituiria por outras frutas mais coloridas. Bananas, cajás, carambolas, goiabas... Frutas festeiras se é que elas existem. Retirou o quadro da parede. Fora de moda. Quanto à lista telefônica... teve uma solução fácil: abriu a porta e viu que a noite caía estrelada e bonita, o ar estava fresco soprando o cheiro do inverno que se aproximava. Saiu em direção ao lado oposto da rua onde havia uma outra casa. Uma outra luz acesa. Uma outra pessoa. Ela deve ter uma lista telefônica e não deve estar roída... Pra que queria uma lista telefônica? Não sabia mais.
Mesmo assim, será um bom recomeço. Pensou.
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Acerto de Contos
Kort verhaalNesse livro de estreia, o escritor Luiz Antonio Cavalheiro, traz histórias que , carregadas de estranhamento, podem ser lidas e percebidas como um mergulho profundo em uma mente delirante, simbólica e, muitas vezes, surpreendente.