FELIZ NATAL

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Ela chegou em casa com as mãos ocupadas de sacolas e embrulhos. Havia passado a tarde inteira no tumultuado centro da cidade, de loja em loja, no ziguezaguear frenético das pessoas felizes, escolhendo presentes. Ela comprou um ursinho de pelúcia com gorro de Papai Noel que vinha dentro de uma caneca natalina. Achou graça naquilo. Estava feliz. Conseguiu fazer excelentes compras por preços bem módicos. Não que precisasse pechinchar (Tinha dinheiro!). Era só força do hábito. Hábito antigo de tempos mais difíceis de escassez de quase tudo em casa. Mas isso era passado. Estava exausta também, mas cantarolava a última música - tão bonita! - que ouvira numa loja de CDs. Trouxe o CD pra casa, naturalmente. Era de um cantor meio latino. Se fosse numa outra ocasião, não compraria esse estilo de música pra ouvir. Jamais! Mas era Natal!

A sua casa estava toda enfeitada. Até bem mais do que nos outros anos. Caprichou no pinheirinho artificial e nas peças pequeninas espalhadas sobre os móveis. O presépio foi montado caprichosamente num aparador de mogno. A mesa para a ceia recebeu uma linda toalha branca salpicadas de aplicações de estrelas douradas e o arranjo central era composto de quatro velas brancas e bicos de papagaio de tecido engomado contornado com purpurina dourada em toda borda. Potes de vidro com castanhas, amêndoas e frutas cristalizadas enfeitavam uma prateleira na cozinha. Queria a casa bonita, iluminada e, mais tarde, cheirosa, com a preparação dos pratos natalinos que amava desde criança: o odor do peru no forno sempre foi a lembrança olfativa que mais a emocionava. Trazia o sabor de outras épocas... Era Natal! Chegou até a janela e olhou para o céu daquele fim de tarde quentíssimo... Para ficar perfeito mesmo, queria que uma chuva ininterrupta caísse e não cessasse por toda a madrugada. Na verdade, queria quase um transbordamento de rios e bueiros com interrupções no trânsito, afetando a vida das pessoas de última hora.

Depois de ajeitar todos os presentes ao pé da árvore, colocou uma música bem suave, acendeu as velas e incensos. Desfez-se das roupas com delicadeza, preparando-se para o banho. Abriu a torneira e deixou a água morna cair como uma cachoeira vaporosa na banheira antiga. Fechou os olhos, lavou o rosto e passeou as mãos pelo corpo com volúpia. Tinha quarenta anos, mas se achava sensual e atraente. Acariciou os seios, as coxas, o ventre... Sentiu sensações agradáveis percorrerem a sua pele e suas intimidades. Sorriu. Era bom poder se tocar. Não tinha que ter pressa, não havia razões para isso...

Pela primeira vez, desfrutava do que sempre sonhou. A ceia e os presentes eram só seus. Estava irremediavelmente sozinha. Desligara o telefone e o celular há dois dias. Exatamente no dia 23 depois do expediente. Antes um pouco, ligou para familiares e amigos dizendo que resolveu ir em excursão para o sul. Queria conhecer outros lugares e as Festas de Natal de Gramado. Mentira. Furtou-se de ter que inventar mais desculpas para não receber ninguém em sua casa ou ter que ir a ceias com gritarias de crianças e gente bêbada. Isso era insuportável demais para a sua intensa alegria.

Desde que seus pais morreram, passou a morar sozinha naquela casa. De lá para cá, fez as reformas que planejara há tanto tempo, mas que nunca saíram do papel. Pintou as paredes, trocou os móveis e jogou no lixo um monte de objetos de gosto duvidoso. A casa estava limpa. Clean como diziam. Não fazia frituras, não acumulava lixo e o banheiro estava sempre cheiroso. Todos os dias, quando chegava do serviço, passava aspirador de pó na casa. Odiava pó, gordura e cheiros estranhos...

Mãe e pai adoeceram e morreram seguidamente e, por três anos, a sua vida tinha se transformado num martírio. A casa era uma extensão do hospital. Sua vida também. Noites insones, remédios e cheiros, muitos cheiros desagradáveis e infectados... Era a única filha que não se casara. Todos os irmãos tinham as próprias famílias para cuidarem. Ela não. Por isso tinha que presenciar os últimos suspiros paternos. Devia ser uma forma de castigo.

Esperou calada e amargurada pela sua liberdade. Um dia, finalmente, ela veio. Agora queria desfrutar de sua própria companhia, dona do seu tempo, senhora da sua vida.

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