DRUG HOLIDAY

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3... 2... 1. Adriano disse que definitivamente não abriria a porta. Não adiantava mesmo bater, socar, gritar: Adriano, abre a porta! Adriano, abre a porra da porta! E esmurrar e socar até doer os punhos. Ele não ia abrir. Estava decidido. Que todos fossem embora dali. Deixassem-no em paz. Paz. Disseram que iam chamar o corpo de bombeiros. O que vocês vão alegar, afinal? Ah... um homem de quarenta anos não quer abrir a porta de sua própria casa para a irmã e o cunhado!? Sei. Tentem essa justificativa. Talvez eles venham com as sirenes ligadas e tudo. Ora, vão embora daqui! Não vou abrir porta nenhuma. Nem agora e nem enquanto eu não acabar... Acabar o quê, Adriano? O que estou fazendo, porra! É tudo. Estou fazendo algo e não vou abrir a porta. Enquanto tento convencê-los a irem embora daqui, atraso-me e perco minha criatividade. E tenho que construir. Armar. Juntar. Recortar. Colar. Tudo isso. Mas não quero ajuda e ninguém pode dar conta do que resolvi dar formas e fôlego. Formas e fôlego. Assim mesmo. Vou soprar-lhe nas enormes narinas depois que executar o meu trabalho e então a minha obra há de viver. Há de viver! Depois posso abrir a porta. Aí, vocês podem entrar já que querem tanto. Terão coragem? Só que hoje não! Vai demorar uns dias. Por isso vão embora daqui! Mas Adriano, você já está faltando serviço há três dias... está doente? Está doente? Não. Então por que falta? O seu chefe disse que... estou de férias. Férias? Férias. Drug holiday. Diga isso a ele. Será que vocês entendem? Será que ele entende? O médico disse. Sabem o que é isso? Ora, pesquisem! Vocês não sabem nada de mim. Drug holiday. Desde anteontem. Tenho o direito. E não abro a porta. E não atendo vocês. E não vou ao serviço. E não durmo. E não almoço e nem janto. Vou fazer só o que eu quiser. Na hora em que eu bem entender. Estou comunicando a vocês e a ele também. Sem celular. Sem internet. Sem telefone. E já aviso: Não estou louco. Processo qualquer um que venha tentar invadir a minha privacidade. Fico rico à custa de irmã, mãe, cunhado, amigo, chefe e mais o caralho a quatro! Ai... pela última vez, sumam daqui, por favor!

3... 2... 1. Juntou todos os sacos de supermercado abarrotados de frascos plásticos de remédios e espalhou-os pelo quarto. Queria contá-los. Achava engraçado ter reservado um cômodo da casa somente para guardar cada frasco vazio a cada mês que se passava. Passou-se quatro anos. Não aguentou a sua curiosidade matemática e fez as contas. Calculadora. Três frascos de remédios diferentes consumidos por mês. Trinta e seis frascos por ano. Quatro anos são quarenta e oito meses. Em quarenta e oito meses, cento e quarenta e quatro frascos. Muita coisa! Dava para fazer o que queria? Se também usasse as embalagens de papelão que vinham junto com o remédio laranja... Quarenta e oito embalagens de papelão. Talvez fosse possível aumentar o material se pensasse numa forma inteligente de se servir das tampas e dos saquinhos e pequenos cilindros com "mistura anti-umectante" ... Quantos comprimidos? Por curiosidade. Vai! Faz a conta. Calculadora. O do comprimido laranja vem com trinta: mil quatrocentos e quarenta comprimidos laranja. A mesma quantidade para o ovalado cor-azul. Mil quatrocentos e quarenta. Como o comprimido branco tinha que ser dois ao dia era só dobrar a conta: dois mil oitocentos e oitenta! Por isso estava de férias! Bom garoto! Aí estava a explicação: ingeriu cinco mil setecentos e sessenta comprimidos. Mais que justo! Entupiu-se de medicamentos nessa quantidade toda e trabalhava. E trabalhava muito. Sorria. Controlava o seu mau-humor matinal. Trepava. Comemorava aniversários. Aguentava o chefe. Trepava. Dava bomdiaboatardeboanoite às pessoas. Fazia compras no supermercado. Acompanhava as notícias nos jornais. Trepava. Xingava o governo. Só tomava leite desnatado. Participava dos churrascos nas casas dos amigos. Ligava pra mãe todo domingo pra dizer que estava tudo tranquilo e saber se ela ia bem da artrite. Era isso. Era um herói. Cinco mil setecentos e sessenta comprimidos que lhe deram vida até hoje durante quatro anos. Vida legal mesmo! Vida secreta igual ao do Super-Man. Coisa assim de dupla identidade! Bolotinhas coloridas que fizeram da gripe somente uma gripe. A topada e o estrago causado na unha do dedão do pé nada mais além disso. Faringite igual a de todo mundo. E virose. Muita virose igual a de todo mundo. Dengue no verão passado? Quem não teve? Era um herói desses de verdade que fazem sucesso nas telas de cinema.

3... 2... 1. Pegou os tubos de cola quente e as pistolas para aplicar o líquido adesivo e construir a sua criatura. Desde o início sabia o nome dela. Rhafael. Tinha que dar formas a Rhafael. Dar-lhe um corpo. Uma cara. Encará-lo. Queria que ele tivesse a sua altura. Por isso encostou-se na parede e com um lápis vermelho marcou acima da cabeça com um traço. Fita métrica herdada da mãe. Um metro e setenta e dois de altura. Tinha que ser do tamanho dele. Queria ombreá-lo depois. Gostava de justiça... e começou. A cabeça fez com os invólucros de papelão abertos e aproveitou tudo da melhor maneira que pôde. A cabeça era colorida. Com pedaços de tarjas vermelhas, códigos de barra e letras azul-marinho. Como a tampa da embalagem era verde, deu certo charme e contraste. A sedução era inquietante e a criatura foi se mostrando aos poucos. Usou todo o algodão para fazer o cabelo. (Por que os remédios vêm com esses algodõezinhos dentro?). Deu-lhe sete olhos feitos de sete tampas plásticas. E duas narinas enormes que lhe valeriam muito depois para atiçar a faísca vivente para dentro dela através de um sopro criador. Ouvidos não precisava. Mas deu-lhe uns quatro chifres pontiagudos. Depois veio a fazer-lhe o corpo. E pensou que ela podia ter a sua altura. Tava combinado no traço em vermelho feito na parede. Mas tinha que ser magra. Não que a magreza acusasse fragilidade. Muito pelo contrário era a sua força. Era por ser esguia que ela entrava pela vida dos outros sem ser notada. Não era muito de dar boas alternativas paras as pessoas. Impunha-se porque era aliada da vida e dos médicos. Uma deusa como os outros dois. Não precisava ser corpulenta para ser forte. Mas precisava de braços. Adriano deu-lhe oito. Muito compridos e delgados. Com muita mobilidade também. Com tampinhas dos frascos fez ventosas grudentas como das lagartixas domésticas. Ali era a sua força. Ela era um ser de braços-tentáculos com ventosas. Impossível fugir. Qual presa ousou e não caiu morta logo depois? Explicações científicas. Não tinha pernas. Não havia necessidade para tais membros. Precisava de uma boca enorme sempre aberta que desse pra ver o seu estômago cheio dos saquinhos e cilindros anti-umectantes. De lá da barriga da criatura sairia um ronco intermitente. Um som que talvez nem o mais poderoso radar pudesse captar. Só quem já vivia sob os seus tentáculos escutaria aquela intermitência. Noite. Dia. Em estado de alerta. Distraído. Em pânico. Dormindo.

3... 2... 1. Cumprido o trabalho, Adriano olhou a criatura. Viu que a fez com cuidado. Bastava-lhe o sopro. O sopro corajoso e ela estaria ali para olhar com os seus sete olhos. E soltar o seu rugido. E agarrar o que quisesse ter para si com as suas ventosas. O sopro. Soprou-lhe suavemente nas narinas e viu que o som entrou para o seu dentro-escuro como som de uma flauta. Ela respirou forte e devolveu-lhe o ruído de uma fadiga secular. E disse que se chamava mesmo Rhafael. Como Adriano acertara o seu nome? Antes mesmo que os tentáculos se pusessem a funcionar, Adriano deu-lhe um banho desinfetante. É. Estava tudo bem preparado para o nascimento da Besta. Ela precisava disso também. De assepsia. Limpeza indubitável. E ele entornou três litros de álcool no seu corpo de plástico e papelão. Ela ficou úmida e ativa. E feroz. Adivinhou-lhe. Quis atacar Adriano. Adriano driblou os tentáculos velozes e ela lhe falou grosserias absurdas. Por Deus, nenhum doente poderia ouvir o que a Besta dizia. Era muito sujo e injusto. Ela blasfemava. Falava de estatísticas alarmantes, números de infectados na África. Ria-se dos países mais pobres do mundo e das multidões de ignorados. Fazia projeções catastróficas. Não dava esperança. Não a queria. Adriano manteve a calma, mas tinha os punhos cerrados.

3... 2... 1. Indignado com a criatura sacou de sua arma. Arma simples, porém muito eficaz. Sabia desde o início que ela seria feroz e indomável. Não escutaria a voz de comando do seu criador. Não ouvia. Facultava-lhe esse sentido. Mas Adriano queria enfrentá-la. Riscou o fósforo e transformou o quarto num inferno para a Besta reinar e morrer derretida. Ela o olhou com os sete olhos pedindo uma clemência fingida. Disse que por muito tempo o ajudara. Não era verdade? Mas os tentáculos agitados mostravam a real natureza do monstro. Ela ia consumir-se no fogo e queria a sua vítima vampirizada por quatro longos anos com ela na hora da morte. Adriano até ali tinha ficado muito calado, mas vociferou: Eu estou de férias, porra! Porra! E atiçou-lhe mais fogo.

Deixou a Besta arder. Ligou para o corpo de bombeiros pedindo urgência. Deu de costas para as labaredas e abriu a porta. Respirou um ar renovado sem aquele cheiro inumano. Enxugou os suores da testa. Saiu e foi até a casa da irmã. Estava com saudades dela.

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