Um vento quente no meio-dia embola uma folha de jornal com notícias passadas e sujas pela poeira. Percorre as ruas desertas numa calma de imensa jiboia que acabou de se alimentar. Numa ou noutra esquina, junta os ciscos, penas de pássaros perdidas em pleno voo, asas de insetos mortos, folhas secas e lixo da cidade. O vento-jiboia recria pequenos redemoinhos zonzos na sua terrível barriga invisível. Devora e descansa satisfeito nas soleiras das casas. Depois sai para devorar de novo. É esse vento preguiçoso e faminto que vai ao encontro dela na igreja. Avança pela porta central entreaberta, pelas janelas do coro acordando vozes de outros tempos, pelo óculo, pelos olhos severos dos santos observando pecados flutuarem pela abóbada da nave central... Ensaia um sopro arrefecido sobre as velas quase expiradas no altar, mas vira-se num bafo revigorado sobre a mulher idosa ajoelhada logo nos primeiros bancos. Uma menina negra a acompanha. Mesmo com todo aquele calor inclemente, ela resolveu sair de casa. Mesmo trêmula e indefesa, foi rezar novena à Nossa Senhora de Fátima em favor da sua família. Para andar, apoiava-se numa bengala. Não há como disfarçar o Mal de Parkinson que sacode seus nervos, a boca e as carnes moles. Seus irmãos pagam a negrinha imprestável para lhe limpar o mijo, cocô e lhe seguir para onde quer que fosse. Idiotice. Nem que levasse um dia inteiro para passar um papel higiênico na própria bunda, não queria ninguém lhe tocando daquela maneira indecente. Mas todo dia era uma humilhação. Aquela menina com cara de nojo olhando para as suas partes. Era nojo o que a menina sentia. Para disfarçar, esboçava um sorriso muito branco e doce que iluminava o seu rosto africano. Depois corria para lavar as mãos e, escondida, passava álcool até no antebraço. Outro dia viu que a danada encheu de álcool as mãos em concha e passou até nos joelhos. Precisava? Miserável.
Enquanto desfiava o terço de pequenas contas de madrepérola, ela fixou o olhar nos santos. Em cada santo via um rosto familiar. Sua mãe era Nossa Senhora da Conceição rodeada de nuvens e anjinhos. João Pedro. Rico. Marinho. José Renato. A mãe da gente criou os filhos com muito respeito pelas coisas de Deus. A mãe tinha um enorme coração de santa. Mas não o bastante para lhe preservar da cruz pesada que carregou durante anos da mocidade nas próprias costas. Quatro cruzes. Cedo a mãe foi para o céu que era o lugar dela desde sempre. E ela, única filha mulher, cuidou de carregar os irmãos pela vida até cada um se tornar homem feito, namorar, casar e despedir-se da irmã-velha-beata. A sua recompensa era essa: uma alma penada que estava em todo lugar da casa, observando cada movimento seu para contar pros linguarudos boas-vidas o que ela tinha feito ou deixado de fazer. Eles estudaram e casaram. Ela ganhou um beijo na testa e promessas de visitas dos sobrinhos à casa da titia. Mas a casa era um vazio o resto dos dias e das noites. Nem beijo na testa nem crianças subindo e descendo as escadas da casa, fazendo festas e gracejos. Por misericórdia, ganhava dois passeios curtos por ano para não passar sozinha o aniversário e nem as festas de fim-de-ano. Eles se revezavam para que ela não enjoasse de ir a uma casa só. Sabia, na verdade, que era um peso para os cretinos e suas adoráveis e fingidas esposas. Lá vem titia, com cheiro de perfume de velha para cá! De novo?! Já não veio no ano passado? Não vou dividir quarto com ela não!
Cheiro horrível esse de cipreste misturado à água podre dos vasos de flores. Ninguém limpa essa igreja? Faz quanto tempo que não trocam as flores dos vasos? Ainda bem que os santos são de gesso e madeira. Não precisam respirar o ar fétido daquela igreja caindo aos pedaços. Ah, mas mesmo sendo de madeira e gesso, eles têm uns olhos! Se não fossem todos esses olhos santos, obrigava sua dama de companhia a tomar água podre das flores meladas e velhas. Queria ver a cara dela! Aí sim ela ia fazer cara de nojo! Podia até vomitar se quisesse. Como poderia fazer a imprestável beber aquela gosma verde do diabo? O padre deve estar tirando a soneca da hora do almoço. Não tem ninguém na igreja... Essa era a hora! É só dar com a bengala na cabeça da sonsa. Caindo desfalecida, era só emborcar os jarros goela abaixo da negrinha. Se ela acordasse, quebrava um jarro na cabeça dela. Desmaiaria de novo a molenga. Vai beber água podre até vomitar a sua alminha pagã! Ela teria um bom pagamento por ter nojo de pobres velhinhas solitárias! Os meus irmãos também mereciam um bom corretivo desses. Aliás, botava muita gente nos seus devidos lugares se não tremesse tanto e fosse tão fraca das pernas e braços. Mas era uma pobre velha indesejada que põe nojo nas pessoas. E os santos? Ah, eles que tapassem os olhos para evitarem a cumplicidade com a vingança. E depois? A criatura vai morrer de tanto vomitar... E depois? Podia ter uma infecção intestinal, sei lá! E depois?
O vento lhe deu outra baforada agora muito quente. Se não tivesse na igreja diante do Santíssimo, acreditaria que era troço ruim pendurado no seu cangote revirando dentro da sua cabeça os puros pensamentos de devoção, estragando-lhe a novena. Olhou para o lado e viu a acompanhante entretida com as rendas de madeira do coro. Deu-lhe uma cutucada com a bengala. Trouxe o terço, menina? A igreja não é lugar de ficar devaneando, pensando nas coisas do mundo! Anda, vamos rezar, minha filha! Pelos nossos pecados e os de toda a humanidade. Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco...
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Acerto de Contos
Short StoryNesse livro de estreia, o escritor Luiz Antonio Cavalheiro, traz histórias que , carregadas de estranhamento, podem ser lidas e percebidas como um mergulho profundo em uma mente delirante, simbólica e, muitas vezes, surpreendente.