UM FARFALHAR DE ASAS

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Dali ela só saiu carregada. Disseram muito tempo depois dos acontecimentos. Para ela era impossível acreditar no que acabara de presenciar por isso tombou ao chão. Desmaiada. Já havia encontrado vestígios do fenômeno em muitos lugares do escritório e isso lhe causava um esforço extra no fim do dia. Na verdade, no início da noite. Ou no ocaso como muitos dizem. Só limpava o escritório depois que todos saíam e encerravam o expediente extenuante diante das máquinas de escrever. Ficava imaginando como aqueles senhores e senhoras conseguiam dormir depois de tanto barulho. Os telefones não paravam de tocar um só instante e as máquinas de escrever eram incrivelmente vorazes no te-tec-tec te-tec tanto quanto seus datilógrafos eram enfadonhos e de caras gordurosas. O rolo da máquina de escrever era pressionado por dedos treinados com violência e cada toque parecia um murro violento no ar. Mas o trabalho dela era de outra natureza: limpava e organizava a bagunça daqueles senhores e senhoras. Além, evidentemente, de apreciar o ritmo cotidiano do escritório enquanto servia os inúmeros cafezinhos. Ela esvaziava cestos de lixos com papéis inúteis, limpava cinzeiros fedidos com guimbas de cigarros, papéis de bala e chicletes e tirava o pó dos móveis. Enfim, ajeitava as coisas. Tinha a impressão de que a mulher gordinha que se sentava próxima à janela era a que mais fumava. As guimbas com marcas do batom cor de rosa-guardada-em-livro eram as de maior quantidade ao fim do dia. Também parecia ser a que mais tomava café e que mais retocava o batom. A gordinha viciada em nicotina e cafeína era o oposto do rapaz magrinho com aliança no anelar direito anunciando um noivado com alguma moça de família. Bem que podia ser com a sua filha, mas aquela menina era reclusa demais. Esquisita demais também. Desperdiçava as delícias da juventude, pensava. O rapaz não tomava café. Nunca. Era o único que pedia o chá de erva-doce com duas colheres de chá de açúcar. Tinha gastrite. O café era um perigoso inimigo de sua frágil saúde e ele o evitava a todo custo. O rapaz era amarelo, magro e com olheiras profundas. Usava óculos com lentes grossas que lhe diminuíam os bonitos olhos castanhos. Apesar das olheiras. Ele parecia um noivo com missa de sétimo dia marcada. Seria um bom genro mesmo assim. A filha não precisava de muita coisa. E ele era quase nada...

Depois que foi tirada do chão, ela recobrou os sentidos num sofá encardido, na antessala do escritório. É fato que todos os seus sentidos ainda permaneciam em estado de curto-circuito. Ela estava no chão. Tinha certeza. Quem a levou até o sofá? Ainda eclipsada, sentiu a pele do rosto ser roçada por pequenos e inquietos dedos de seda. Leves. Estava visivelmente perturbada. O ambiente estava na penumbra e apenas as luzes vindas de fora atravessam as vidraças e mergulhavam em suas retinas nubladas. Havia sons sutis no ambiente e ao seu redor o som era, na verdade, um barulho intrigante. Pareciam o farfalhar de papéis roxos de envolver maçãs. Ah... Esses papéis eram mais gostosos que as próprias frutas se pudéssemos comê-los! O cheiro roxo não deixava dúvida: maçãs! Maçãs! Aliás, aqueles ruídos possuíam o cheiro adocicado de muitas maçãs vermelhas, carnudas e frescas. Seda no cetim. Estava tendo náuseas e a sua cabeça doía muito. Quem a levou até o sofá? Os dedos de seda retornaram e tomaram uma definição assombrosa quando um foco de luz esquentou-lhe a face. Se estivesse de pé cairia de novo tamanha vertigem que lhe zonzeou. Parecia fogo caindo do céu. Mas firmou um pouco as vistas e viu que era um fogo pequeno saindo de um isqueiro de prata. Ela escancarou a boca para um grito esganiçado, mas não teve tempo para soltá-lo. As sedas finas e cheirosas entupiram a sua boca. Um gosto estranho pousou na sua língua e se desfez como frágeis waffles. Queria desmaiar. Precisava desmaiar para o seu próprio bem. Precisava respirar, mas queria morrer fulminada. Todos os seus sentidos estavam aguçados demais para a vida. Pronta para a luta. Para defender-se. Para salvar-se.

Um Trecho Perdido

De uns tempos pra cá, ela passou a encontrar asas de borboletas no carpete do escritório. Nas gavetas e nos lugares mais improváveis também. Grande quantidade delas estava perto do vaso sanitário, no banheiro masculino. Nunca podia imaginar que existia tanta borboleta nesse mundo. Era incomum até para a sua razão tão simplória. Era o que ela achava de si mesma. Da sua razão. Sabia que borboletas preferiam jardins floridos e não aquele escritório com cheiro de tabaco impregnado nas coisas. As borboletas preferem o néctar das flores, mas perdiam suas asas num banheiro sujo de escritório, perto de vasos sanitários. Odiava limpar o banheiro dos homens. Eles sempre urinam na tampa do vaso e no chão. Era nojento no fim do dia. Deu então pra notar que, por mais que procurasse, não encontrava nenhum corpinho falecido das donas das asas multicores. Isso era muito estranho. Se perdiam aquilo que lhes propiciava o voo para fora e para locais mais naturais, como não morriam ali rastejando na lembrança de lagartas que um dia foram antes do casulo e da novidade das novas formas?

Até que um dia fez uma conexão imprópria que só cabia numa cabeça imaginosa demais e cansada demais de recolher asas mortas por todos os lados. ( Mas ela não era simplória?) Logo depois que servia o chá de erva-doce com quatro colheres de açúcar nem para mais nem para menos ao rapaz magrinho e amarelo, voltava para pegar a xícara vazia e... As flores da erva-doce! O doce do açúcar! O quase melado! Talvez fosse isso que atraía as borboletas para um lugar tão hostil. Era o moço magrinho o causador de tudo aquilo que lhe assombrava de forma tão indelével e silenciosa. Ele era homem! Mijava na tampa do vaso e no chão. As borboletas eram atraídas pelo líquido no chão do banheiro. Líquido... Mijo doce mesmo! Concluiu.

Um trecho sem terminar

A luz que lhe aqueceu a face vinha de dois focos muito brilhantes. Muito perto. O fogo do isqueiro de prata refletia-se nas lentes grossas dos óculos. Por trás delas, só podia ser a pessoa que havia lhe socorrido. Certamente. Um hálito cansado fazia um pequeno redemoinho de cheiro, sabor e asas. Muitas asas. Passou a mão pelo pano do sofá e viu que estava deitada numa grande poça de um líquido denso e viscoso. Era chá de erva-doce com muito açúcar. Um melado. Dava para adivinhar. Pelo cheiro... A sua mão encontrou outra mão débil e pegajosa. Molhada e quente. Tateou pelo braço, passou pelo peito com pelos ralos e subiu pelos ombros até apalpar o rosto. Molhado. Tudo era molhado e quente. Tudo era viscoso e doce. Era uma pessoa que estava sobre ela. Era um homem! A sua visão focou o rosto do rapaz magrinho. O rosto dele aproximou-se do dela. Ele soluçava um leve farfalhar de asas e as suas roupas pingavam gotas de chá morno. Pelo sabor... Beijaram-se. Beijaram-se para saber o sabor. Ela jamais diria uma palavra sobre este acontecimento a sua filha e nem a ninguém. Jamais.

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