Francisco nasceu em 1921, na Fazenda Outeiro. Era filho de empregados. Sua mãe trabalhava na cozinha da Sinhá. Serviço leve. Era o que diziam as outras mulheres de peles tostadas que trabalhavam no terreiro. Sol a pino. Sem sombra pra descanso. Seu pai trabalhava nas plantações de café. Serviço severo. Junto com os outros homens.
A história de Chico é cercada de lendas e crendices passadas de boca em boca, de pai para filho, no povoado. A sua mãe morreu envenenada por várias picadas de cobra ao redor dos seios chupados. Foi encontrada morta na cama, recostada nuns travesseiros sujos e molambentos, amamentando o seu rebento. Ele se arrebentava de tanto chorar. Fome. Estava quase roxo por falta de fôlego. O pai de Chico havia sido enterrado semanas antes desse acontecimento. Morrera afogado num açude, provavelmente depois de um dia de muita labuta, ao embriagar-se de pinga da braba, cansaço e tristeza.
De acordo com a crença popular, Francisco, ou Chico Jararaca - nome pelo qual ficou conhecido depois do episódio, e que não é necessariamente o seu nome de pia por ausência de padrinhos que quisessem levá-lo para o cumprimento dos primeiros ritos cristãos - na verdade, tomou o leite materno "misturado" com o veneno da cobra que matou a sua mãe. Ninguém sabe de que modo e nem porquê a danada poupou-lhe a vida. É mistério que o povo conserva ao contar sobre a vida do afilhado do coisa-ruim. Isso é o que ele era. Pra ter sobrevivido, só tendo como padrinho o próprio Tinhoso. É certo que corre sangue pisado nas suas veias. Sangue errado. Viscoso-escuro. Envenena a sua vida aos poucos. Ele sente isso. Todo mundo vê.
A cobra, possivelmente uma jararaca, de acordo com outra crendice do povo da região, vive rodeando os casebres à procura de mães que descuidadamente adormecem, para roubar o leite dos seus filhos. Dizem que é por isso que Chico, quando sabe do nascimento de menino no povoado, vigia a casa, de longe, à procura da miserável que lhe emprestou a estranha sina e lhe tirou o colo materno tão cedo. Ele nunca é bem-vindo. Nunca é enxotado dos arredores das casas também. Para afastá-lo um pouco e garantir a sua vigilância canina, é só deixar uma garrafa da branquinha no terreiro e uma imagem do Menino Jesus de Praga grudada no umbral. Enquanto houver bebida, ele vigia a cobra. Enquanto houver necessidade, ele fica de cócoras num canto do terreiro bicando a pinga aos poucos e olhando qualquer movimento rasteiro e ondulante no mato. Quer ficar cara a cara com a maldita. Antes que ela lhe dê o bote, quebra-lhe a espinha com o dorso do seu facão e corta-lhe a cabeça com um golpe afiado. Morte certa. Vingança justíssima. E que o Menino Jesus poupe o lar de cada trabalhador para que a sombra desoladora do anjo da morte ronde os campos, mas não se achegue.
**************
Não conheci direito minha mãe, mas sei da história que aconteceu com a pobre. O inferno é aqui, já diziam os mais antigos e o meu começou há muito tempo. Falar que não conheci direito é até errado. Não conheci minha mãe. Só mamei leite, veneno de cobra e sangue arroxeado nas tetas dela. Foi por isso que minha vida nunca deu muito certo. Eu não era pra vingar, não! Estou aqui meio torto, meio vivo, meio morrendo e esses olhos que a terra há de comer um dia viram coisa que ninguém sabe e nem desconfia. Tem coisa que só eu sei daquele dia. Na época não pude falar nada, mas hoje, doa a quem doer, vou abrir o verbo. Vou falar tudo. Vou apodrecer por aqui mesmo. Sou pobre e não tenho ninguém que venha a ser por mim. Quem quer ser parente de Chico Jararaca? Alguém quer? Quer nada! É melhor atear fogo na própria casa e espalhar sal pelo terreiro a ter a má sorte de confirmar parentesco com um homem assim que nem eu. Um desinfeliz assim ninguém conhece. Todo mundo conhece.
Eu sou o Chico Jararaca. Isso é por causa da história da cobra que mamou na minha mãe. A cobra enfiou o rabo fino na minha boca e mamou na minha mãe que já estava quase morta de fome dentro do nosso barraco. Enquanto a miserável da serpente roubava leite ralo que era para meu sustento, eu chupava o rabo da filha do Tinhoso. Depois o que sobrou pra mim foi leite amaldiçoado com veneno. Meu sangue é ruim por conta disso. Sou filho de gente e de cobra. Isso é o que o povo conta.
**************
Só aquela dona feiticeira que me deu abrigo. Quando bateu os olhos em mim, ficou vidrada. Os olhos dela eram de gente ruim. Que nem os meus. Vi parentesco com aquela mulher através dos olhos dela. Ela tava acocorada numa pedra debaixo de uma Figueira e tava tendo dedo de prosa com o invisível. Observei tudo. Não dava era pra escutar quase nada. Mas ouvi que ela falava uma língua esquisita, isso eu ouvi! Depois senti que o tempo revirou só perto da Figueira e um sopro que saía da terra para o alto do céu, levantou os cabelos da bruxa. Aí ela parou de fazer as rezas dela e olhou com uns olhos brancos direto pro mato onde eu tava escondido. O sopro espalhou no mato e parecia que fazia barulho de porcos. Ela levantou e veio na minha direção. Eu ia correr, mas ela gritou para aí, Chico! E eu parei com os pés agarrados na terra. Ela me jogou feitiço. Como eu não tinha perna pra correr, escutei o que ela queria falar. A dona falou que era do destino o nosso encontro ali. E que só eu podia findar a maldição que tava na vida dela e na minha. Depois disso, segurou a minha mão e passou no sexo dela. Nunca tinha tocado mulher, não! Rolamos pelo mato como dois cachorros no cio. A mulher gargalhava enquanto eu despejava dentro dela meu orgulho de macho.
************
Fiquei vigiando a casa quando vi a parteira entrando. A feiticeira ficou escondida mais longe. Daí um pouco ouvi o choro da criança. Era pra eu roubar o menino da mãe quando ela caísse de sono pelo esforço que fez pra parir. A parteira terminou a sua tarefa e foi embora. O pai não chegava. A gente precisava da criança pra acabar com a maldição. Foi o que a bruxa falou. Queria me livrar da maldição. A mulher bruxa garantiu que não ia fazer mal pra criança. Isso me deu alívio. Então foi aí que eu ouvi saindo de onde a bruxa estava escondida um chiado fino igual a um grito assombrado, depois vi no mato um troço ondulando bem devagar. Era a malvada da cobra! Era hora de roubar anjinho, não! Era hora de acertar as contas com a serviçal do tinhoso. Peguei meu facão e fiquei na espreita. Então vi o animal se espichar pelo terreiro. Era mais um que ela ia deixar sem mãe. Era outro que nem eu que ia viver sem batismo por aí a fora sendo chamado de filho de cobra. Pois sim! Olhei pra ver se via a feiticeira, mas ela desapareceu sem avisar.
Então matutei que pegava adesgraçada da jararaca quando ela tentasse entrar na casa. Tomei um gole dabagaceira pra encorajar. Tava suando de nervoso e desejo de vingança. Aí vi abicha ficar em pé apoiada no próprio rabo e se esticar pra alcançar a janelaaberta. Corri de galope e acertei as costas do facão bem no meio da espinhadela. A danada tombou de lado e soltou um assovio tão agudo que parecia dor demulher parindo. Depois, mesmo com a espinha quebrada se enrodilhou para me darum bote. Não ia ser agora que eu ia deixar essa filha do demo me vencer. Dei umgolpe certeiro com o meu facão afiado e lhe decepei a cabeça. Ela se enrolou todae só deu tempo de ver a transformação. Era encantamento e eu não tinhapercebido que a cobra era a bruxa! O corpo da bicha foi virando corpo de mulhere a cabeça da cobra virou a cabeça da dona de olhos de diaba. Fiquei sem tino na hora e cravei a faca nocoração da desalmada. Então era ela! Que vinha roubando a vida de tanta gente ecarregando uma legião de amaldiçoados para o inferno! Agora tava morta. Aquelavíbora que persegui a vida inteira também andou atrás de mim. Copulou comigopara dar ao mundo um filho que todo mundo temeria. Um filho da sina perdida. Umamaldição que não deixei se consumar.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Acerto de Contos
Short StoryNesse livro de estreia, o escritor Luiz Antonio Cavalheiro, traz histórias que , carregadas de estranhamento, podem ser lidas e percebidas como um mergulho profundo em uma mente delirante, simbólica e, muitas vezes, surpreendente.