A VISITA

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Eu não entendo o que esta mulher faz aqui ao meu lado. Tá com pena? Deve estar... Nem falar ela fala! Vou contar uma coisa sobre ela. É sobre a última vez que esteve na igreja. Lembra, Dona Maria do Carmo? A fila da comunhão. Enorme. A hóstia sagrada lá na frente no altar. Corpo e Sangue de Cristo. Ansiedade. A fila estava enorme, vê se lembra? Tem que lembrar! O padre parecia não se importar com nada. Talvez estivesse concentrado demais na importância do sagrado momento. Talvez não. Pensasse em outra coisa. Vai saber? Você estava com a sua melhor roupa. A mais bonita. Nova. Branca com delicadas flores azuis. Queria mesmo toda branca, não era? Mas não ficava muito bem... Você já estava um pouco passada, velha pra isso. As pessoas podiam desdenhar de você, Maria do Carmo. Rir pelos cantos da boca. Cochichar enquanto você passava compenetrada até o altar. Rezando. O vestido você é quem tinha feito. Passou dias costurando, experimentando, desfazendo e refazendo. Às vésperas da missa, ficou até tarde costurando, pregando, dando os últimos retoques. Ficou lindo! Ninguém procura as costureiras para mais nada. Você sabia costurar tão bem, não é, Dona Maria do Carmo, filha de uma puta?

A fila da comunhão andava devagar. As pessoas cantando, muito crédulas. Crédulas. A palavra é essa mesma. Você diante do padre. Aprontou-se toda. Empinou o corpo, passou as mãos pelas dobras do vestido. Esticou um pouco o pescoço para frente, fechou os olhos úmidos de santidade. Abriu a boca só um tantinho. Recebeu a hóstia consagrada. Virou-se. Igreja lotada. Plateia. Olhou para o alto sem dar uma piscadela sequer. Os vitrais coloridos. Olhos vidrados na abóbada cheia de querubins gozosos. A hóstia desfazendo-se em contato com a saliva. Sorriso fazendo satisfeitos os lábios.

Andava e parava.

Andava.

Outra parada.

Andava.

Continha-se.

Passos ensaiados. Cadela!

Os lábios esboçavam um sorriso. Os olhos vidrados pareciam enxergar dentro e além dos outros. Todo mundo deve ter percebido, Carminha...

Andava e parava.

Uma lágrima.

Você obedecia a uma música, uma dança secreta só sua. O coral cantava em júbilo o hino da comunhão, mas a sua melodia era outra, bem mais bonita, era música de casamento. Você casava e a igreja estava cheia. A cidade resolveu ver a noiva tão linda! Aposto que muita moça queria estar no seu lugar, com medo de ficar solteirona. Ficar solteirona é uma coisa muito feia, Deus me livre! É ou não é?

Você ia sozinha, ritmada. Casava com quem? O seu noivo estava na cruz! Ninguém desceu ele de lá. Nem você!

O que aconteceu depois foi silêncio que dura até hoje, além do olhar de vidro adquirido quando se casou com a hóstia. Você casou com um punhado de farinha! FA-RI-NHA, sua tonta!

Carminha quer contar você mesma a sua história? Ei, o gato comeu a sua língua, Papa-hóstia desgraçada? Alguém faz essa dona falar, por favor, ou tira ela daqui! Isso dá nervoso na gente. Ratazana de igreja miserável! Eu sei da sua história. Muita gente dessa cidade sabe...Bruxa! Você fazia bruxaria e ia na igreja no domingo!

Mas da minha história, quem soube primeiro? Quem espalhou pelos quatro cantos da cidade? Deve ter sido você mesma, com essa língua que nunca coube no cu. Foi você que começou com os disse-me-disse. Agora bem-feito! Tá muda e com esses olhos de boneca que nem piscar, pisca. Bem feito!

Essa cidade é um lugar de merda. Falo mesmo. Sempre fui de falar as minhas verdades. Não me arrependo de nada do que fiz. Faria tudo de novo... Homem nessa cidade? Não tem e nem nunca teve. Doa a quem doer. Quem não quiser ouvir que tape os ouvidos. Foi o que eu disse e vou repetir: lugar de MERDA! Sempre tive vontade de ir para o meio da rua e gritar bem alto todos os palavrões do mundo. É a minha história e que se danem. Já pensou na cara de espanto da Dona Augusta do Colégio Normal? Vou aproveitar a oportunidade, já que você não pode falar nada mesmo... Será que pelo menos me ouve? Me entende? Bruxa! Você deve ruminar tudo o que ouve para depois vomitar no seu quarto, à noite, ajoelhada diante dos santos. Fiquei tanto tempo com tudo isto aprisionado na garganta, que agora contarei a história aos gritos, se puder. Vou arrebentar os seus tímpanos, mulher doida! Quem mandou vir até aqui? Não te chamei.

Não me sinto culpada por nada do que fiz. Foi essa cidadezinha medíocre. Tudo o que fez foi empurrar-me para meus atos. Com jeito, muito jeito. Primeiro aplausos, depois pedras. Me acharam com cara de Maria Madalena, eu hein!

Todos diziam, inclusive você, Dona Doida, que se finge de morta: "Vai casar bem." "Fez Escola Normal..." "Tão bonito. Professora! "Ela mesma vai ensinar as primeiras letras aos filhos!" "Bom casamento essa moça vai ter!"

Cidade da porra!

Passaram-se os anos. Fruta bem apreciada deve ser colhida quase madurando, agora eu sei. Meio verde, meio pedindo a boca de alguém. Estando madura e ainda no pé, tá bichada ou tem marimbondo rodeando e noutro dia está podre. No chão. Atacam-lhe não-sei-quantos vermes. Centenas de formigas. Bolores. Agora eu sei que é assim.

Sempre fiquei horas perdidas a ver as coisas seguirem o seu curso. Não percebi o que acontece às frutas. Nunca permiti que me colhessem às pressas, tão nova. Gostava de me ver no espelho do meu quarto. Pele fresca, seios firmes...

Ontem mesmo sonhei com um deles. Você acredita? Hoje deve ser um homem. Pai-de-família... Veio à minha casa para ter aulas comigo. Nos sonhos que tenho, sempre pareço a Fräulein Elza, com aquele propósito de não sofrer. Li o livro até o final torcendo por ela. Sei que sofremos as duas... A aula começa: os monossílabos tônicos terminados em A, E e O são acentuados. Pá. Pé. Pó. Mão na coxa. A aula continua: Presta atenção, menino! Os terminados em U não levam acento. Por exemplo. Cru. Mão no sexo. Sorriso. Nu.

Não tem nada demais. Para os meninos pequenos eu nem olhava. Tinham carinha de anjo de procissão. Gostava daqueles que estavam na muda, que nem pelos no peito tinham. Só uma penugem rala. Ainda meio lisos, um pouco mulher, mas com o cheiro de sexo masculino saindo pelos poros. Testosteronas.

Por que essa beata fodida me olha assim? Tá querendo o quê, ô? Me condenar ao fogo do inferno! Alguém tira essa mulher daqui! Por favor, tira essa mulher daqui!

E vocês, aposto que têm podre maior que o meu. Vai ver!

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