Os fogos de artifícios aos poucos deixaram de clarear o céu. Dava pra escutar ainda, ao longe, as saudações e os vivas do povo pelo nascimento de um novo ano. Numa casa, distante do centro da cidade, no entanto, não havia lugar para comemorações. O corre-corre da família havia cedido lugar a uma estaticidade ao redor do leito de Eurídece. As irmãs choravam silenciosamente. A mãe, também de mesmo nome, segurava as mãos ainda quentes da filha. Não chorava mais. O pai, debruçado no parapeito da janela aberta, recebia da noite um bafo quente no rosto e tentava achar alguma razão nas estrelas do céu. Em vão.
Elza era a única a quebrar aquela imobilidade de estátuas tristes. Com cuidado e carinho, suas mãos trançavam os cabelos da irmã. Duas tranças cor de mel. Do jeito que ela gostava. Elza a arrumava para... era difícil pensar e admitir. Pensar. Mas era capaz de se lembrar de tudo como aconteceu. Desde o início...
Como sempre foram, estavam as duas unidas e felizes. O sol era quente. O dia era lindo e o céu, azul. Até a manga-rosa, que pouco antes haviam colhido no alto de uma grande mangueira, estava morna anunciando o verão em sua polpa madura e saborosa. Só Eurídece a chupou com muito gosto e lambuzou-se do amarelo da fruta. Elza teve medo. Aquela fruta quente do sol podia fazer mal. Se mamãe tivesse visto as duas enganchadas nos galhos da mangueira, teria zangado na certa. Não eram modos de moça trepar desse jeito numa árvore! Mas, quem se importava. Elza ainda criança tinha lá os seus direitos de ser moleca e Eurídece despedia-se da infância aos poucos. Talvez esse fosse o último verão... Aos dezesseis anos, era natural que na próxima primavera já se interessasse pelos passeios, à noitinha, na praça da cidade, mesmo que fosse de braços dados com a irmã mais velha ou com os pais. Devia querer flertar com os moços bem barbeados e cheirando a água-de-colônia. Mas naquele dia, subir na mangueira frondosa e lhe tomar um fruto doce era a melhor coisa que o mundo podia oferecer!
Elza e Eurídece já haviam se esquecido da confusão que criaram em casa por causa das louças sujas que a irmã mais velha sempre deixava pra lavar quando preparava a mamadeira de sua recém-chegada filha. Era uma chateação! Lavar vasilhas de mingau! Todo dia! Não tinham nem filhos ainda. Sobravam para elas! Por que, mamãe? Não era certo! A outra bem que podia limpar toda aquela bagunça de leite e maisena! Que isso que aquilo e mais aquilo outro. Resmungação infantil. A mãe fez logo que ia bater. Ralhou um pouco, mas mandou que as duas fossem, cada uma com a sua lata, pegar água na Fonte do Amor. Não chegava a ser um castigo, mas saíram de casa fingindo muito emburradas para, depois do portão, rirem as duas pelo bom passeio que acabavam de ganhar. Não tinham uma cozinha para dar conta! Arear montes de panelas! Podiam beber água da nascente colhida nas folhas de taioba feitas em forma de copo com muito arranjo. Molhar os pés na água. Olhar os pequenos peixes no poço de água rasa e límpida, debaixo do bambuzal. Além disso, sempre encontravam no caminho crianças e donas-de-casa também com seus vasilhames, rapazes e moças a passeio. As brincadeiras e conversas eram muito divertidas. Corriam pelo caminho de terra vermelha batida. Ao redor e nos altos dos morros, o capim-gordura emanava um cheiro adocicado. Aproveitavam para colher beijos, Marias-sem-vergonha e margaridas que cresciam pela vontade de Deus. Cantavam e achavam graça de tudo.
Eurídece nem sequer lembrara que na semana anterior, a diretora da escola havia chamado seus pais para uma conversa. Todas as crianças passaram por exames médicos. Haviam sido feitas, inclusive, "chapas" dos pulmões. "Olha, a chapa da menina não deu boa, não... Umas manchas escuras no pulmão. Tem que ver isso...". "Não deve ser nada! Eurídece está esperta que só. Não tem febre. Nem tossir, tosse. A senhora vê! Ela tem saúde."
As meninas corriam e brincavam. O vento também brincalhão lhes levantava os vestidos. Riam ainda mais. As bochechas afogueadas pelo calor da tarde mereciam a água fria da fonte. Já, já se refrescariam. Que delícia! Cantavam "Vamu panhá água na Fonte do Amor... Lá la rá lá ra lá la raraaa... Vamu panhá água na Fonte do Amor... Lá la rá lá ra lá la raraaa" e riam à toa.
Elza, terminando de trançar os cabelos da irmã, amarrou-lhe duas fitas brancas e duas lágrimas cortaram o seu rosto formando um caminho. Nascentes da mágoa de Elza.
Existia uma valeta antes de chegar à fonte. Um corte no caminho de onde escorria uma água clarinha que nascia não se sabia de onde. Talvez das rochas do alto de um morro. As crianças gostavam de pular pra lá e pra cá, indo e vindo de um lado ao outro, até que, de propósito, pisavam de cheio na vala e misturavam água e terra vermelha, maculando o choro das pedras. As irmãs, sem largar as latas, pulavam também. Primeiro Elza. Depois Eurídece. Pra lá e pra cá. Pra cá e pra lá. Eurídece estacou. Arregalou os olhos e tossiu fraquinho. Elza parou a brincadeira. Que foi? Mais uma tosse. Forte. E outra mais forte agora. Mão aparando a boca sem sucesso. A água manchou-se do sangue de Eurídece. Mamãe! Mamãe! Gritou a menina enquanto involuntariamente deixava sair da boca mais e mais sangue coagulado. Vermelho mais do que o barro. Mamãe! Gritou a menina, largando a lata pelo chão. Vestido manchado. Eurídece, espera! Eurídece não ouviu. Correu. Elza atrás dela. As pessoas agitadas também socorreram. Crianças e adultos. Latas caíram abandonadas. Águas derramaram. Mas a menina queria a mãe e correu mais rápido. O quanto pode. Na velocidade que as meninas assustadas são capazes de correr para as suas mães. Elza ficou pra trás engasgando-se com o choro toda vez que via no barro batido o sangue da irmã. Eurídece, espera! Espera...
Eurídece guardou repouso. Tuberculose. Talvez. Os talhares e os copos de seu uso foram separados. Ordens do médico. Tomava banho numa bacia grande dentro do próprio quarto. Janelas fechadas. Um pouco de sol pelas frestas. Cuidados.
Depois disso, chegou o Natal. Dias antes teve vontade de ajudar as irmãs na lida. Sentia-se bem. Queria lavar roupa. Brincar com água e sabão. Fazer bolhas e cantar junto com as irmãs. A mãe não deixou. Ficou de janela amuada, olhando as roupas, o varal e o sol. O cheiro das roupas limpas.
O Natal chegou. A doente sentou-se à mesa. Ceou com a família. Ganhou beijos. Presentes. Felicidades. Sentia-se muito bem.
31 de dezembro. Com que roupa vamos à rua ver os fogos? Papai deixa a gente ver os fogos? Eurídece vai? Vai! Que bom.
No fim da tarde a menina procurou cama. Quis descansar. Abateu-se. Na casa, preocupações. Devem ser as regras. Nada de mais.
À noite, as meninas arrumadas prontas pra sair. Perfumes. Laços de fita. Todos já vão. Vamos, Eurídece?
Da cama, a menina chamou amãe. A mãe veio afobada. Mãos molhadas enxugando na toalha de prato. Tôocupada, menina! O que foi? Mamãe, tô nervosa... me dá água com açúcar! Me dáágua com açúcar, mamãe... Tô muito nervosa! Mal falou as últimas palavras. Derramou sangue pelos lençóis. Dos olhosmedo e lágrimas. Mamãe! Mamãe! Tô vomitando sangue de novo! A mãe acudiu. Todos correram pro quarto.Chama o médico! Chama o médico! Papai saiu em desespero atrás do doutor. Nãoachava, não achava. É festa. O doutor não está na cidade. Deve ter ido pracapital... A rua estava deserta. Cadê os vizinhos? Quem acode? A menina estápassando mal de novo! Corre, Elza! Pega água, panos... Mais sangue. Meu Deus!Fica quietinha, Eurídece! Vai passar. Vai passar. Fica calma! Chama o médico!Muito choro. As meninas esqueceram a festa e o passeio. Os fogos de artifício.Mais sangue. Eurídece branca. Rua deserta. Clarão no céu. Mais outro clarão.Vivas! Espocar de fogos. O céu estava lindo. Na casa ninguém olhava o céu, nemrelógio. Meia-noite. Ano Novo. A tosse da menina foi diminuindo. Eurídecesegurou a mão da mãe. Uma lágrima. Os fogos cessaram. A vida de Eurídecetambém.
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Acerto de Contos
Short StoryNesse livro de estreia, o escritor Luiz Antonio Cavalheiro, traz histórias que , carregadas de estranhamento, podem ser lidas e percebidas como um mergulho profundo em uma mente delirante, simbólica e, muitas vezes, surpreendente.