A HORA DAS ALMAS

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Aqui, na cidade, existe um casarão. Nesse casarão, ainda existe Mariantônia. Ela vive sozinha com os seus resmungos.

À noite, quem passa pela ruazinha pode ver a luz fraca vinda do quarto dela e ouvir um barulho que ora se assemelha a uma velha máquina de costuras ora a um ciciar de asas de inseto. Dizem que ela ainda faz vestidos. Mas, pra quem? Não há mais freguesas...

Nas manhãs de sábado, para os que ainda temem as horas sombrias da noite, alguns restos de velas derretidas são encontradas na calçada da casa de Mariantônia, denunciando o choro das ceras durante a madrugada. Para os que já se esqueceram dessa história que hoje me ponho a contar, e costumam perambular à luz da Lua, é comum encontrar a solitária habitante do casarão, por volta da meia-noite, a realizar um ritual incomum...

Ajoelhada, vestida numa velha camisola de algodão com florezinhas miúdas e apagadas pelo tempo, ela acende velas que iluminam a fachada de sua antiga casa, criando uma fantasmagoria particular. Seu olhar é alheado e preocupado. Inquieta-se com a demora das velas que, teimosamente, não se acendem, pelo fósforo que se apaga, pelo galo que canta fora de hora, pelas aranhas que tecem os seus fios e enfeitam com uma suave renda as paredes desbotadas. Inquieta-se com tudo. Tão logo cumpre a tarefa, bate, com tenacidade, a poeira dos joelhos e se tranca dentro da casa. Não se vê mais nada além de pequenas mariposas brancas e tolas voando e enredando-se nas teias das aranhas de abdomens gordos e lustrosos...

Mariantônia era costureira de mão-cheia, a mais procurada da cidade. Todas as moças queriam fazer seus vestidos novos para a festa da padroeira com a filha de Dona Izaurina. Ela guardava segredo dos modelos dos vestidos como se fosse pecado cristão contado em confissão e se orgulhava disso! Jamais repetia um feitio. Um laço igual, um enfeite sequer. Ela era a melhor. Costurava sem parar. Era o que sabia fazer. Por isso não se dava o descanso: assim que acordava, sentava-se diante de sua máquina de costuras e só se levantava altas horas da madrugada. Nem mesmo respirava o ar puro da manhã ou via o entardecer avermelhar-se por entre as copas das árvores. Almoçava e jantava ali mesmo no quarto de costuras, diante da máquina Long Life. Seu quarto de costuras era o seu mundo.

Dona Izaurina vivia ralhando com a filha para que se permitisse um descanso. Deixasse a noite para o sono e os dias para os passeios e namoros. Era moça e bonita! Onde já se viu não dar atenção aos galanteios dos rapazes que passavam de olhos compridos, tentando divisar entre tantos panos e anáguas a moça das costuras.

Dona Izaurina dizia que isso ainda iria acabar mal. Falava com autoridade que só os mais idosos possuem. Um dia, ela seria abordada pelas almas que vagam à procura de luz, aí queria ver! Muitas pessoas já tinham levado uns bons sustos por desrespeitarem a separação das horas dos viventes das horas dos que já passaram desta para melhor... Seu Antonio mesmo era um! Tomou galope de um lobisomem. O bicho era maior do que três homens um em cima do outro. A prima Djanira viu pelo buraco da fechadura a mula-sem-cabeça passar abanando um rabo de fogo enorme! Nunca mais foi a mesma. Dizem até que morreu de susto! Mariantônia não dava importância, apenas ria-se toda por causa dos medos infundados da mãe.

Numa noite quente de verão, depois de se refrescar, na janela, com o vento da noite entre uma costura e outra, Mariantônia retomou o seu extenuante trabalho e se esqueceu mais uma vez do relógio. Costurou, alinhavou, arrematou, sem descansos. A sua mãe, depois de tantos avisos e admoestações, deteve-se apenas a fazer uns muxoxos, disse um boa-noite entre os dentes e foi dormir.

Então, as horas se passaram.

E a costureira costurou costurou costurou costurou costurou...

Entre um acabamento e outro, parava para ouvir sinais de transeuntes na rua. Cada vez mais esparsos, até que o silêncio jogou o seu manto escuro e quente, sufocando todas as casas.

Então, as horas se passaram.

E a costureira costurou costurou costurou costurou costurou...

Parou instintivamente.

Um carretel de linha matizada caiu de seu colo e foi se esconder debaixo da cama.

Lançou no silêncio os seus ouvidos atentos...

Ouviu, ao longe, primeiramente, um zumbido indistinto, porém ritmado. Não deu importância para isso. Continuou a sua costura, seus arremates, pregando botões, vieses, fitas coloridas. Os ponteiros do grande relógio de parede executavam o movimento sincronizado com o único destino possível: meia-noite. Dona Izaurina dormia profundamente.

A costureira insone e dedicada ao trabalho esqueceu-se das recomendações maternas e, nem por um instante sequer, olhava o interminável ritmo do relógio. Os zumbidos estavam mais próximos e eram de um vozerio a cantar, a rezar... rezar, não! Mariantônia parou a sua labuta noturna e deu com os ouvidos no ar para certificar de onde vinham as vozes. Quem estaria a essa hora andando pelas ruas? Que horas eram? Por Deus! 23 horas 56 minutos. Quem poderia a essa hora... Um calafrio, um leve eriçar dos pelos do braço. Lembrou-se da mãe e de seus conselhos. A noite de sexta-feira é para os mortos andarem em busca de luz... A luz fraca da sala de costura parecia atrair as vozes que agora se misturavam a um andar compassado. Seriam quantas pessoas? Dez, trinta... A essa hora é que não! Uma mariposa entrou pelas frestas da janela em busca da luz que pendia do teto sobre a máquina de costuras. Voou cambaleante e jogou-se repetidas vezes contra a claridade. Incomodou. Mariantônia pegou o chinelo e a matou sem dó. Mais insetos tentavam entrar e se debatiam contra os vidros e as bandeiras da janela. Mariantônia sentiu outro calafrio no mesmo instante em que o som indefinido avolumou-se e a fez lembrar uma procissão de sexta-feira santa. Já não cosia mais. Esbarrou num pote de botões e fivelas que se esparramaram pelo chão. Outra mariposa. Outra chinelada. Um cântico triste em meio a uma reza. Sim, era isso mesmo! Não havia mais dúvidas! Tão logo identificou todos os sons, um silêncio estacou diante de sua janela. Os insetos voadores se foram. O ar parou. Dos vidros da janela, entrou uma luz fria e azulada. Mariantônia fez o sinal da cruz e arrependeu-se de não ter dado ouvidos a sua mãe. Quis gritar, o grito não saiu. Correu cambaleante para o interruptor. Apagou a luz. Embolou-se nos panos e vestidos por terminar. Quantas anáguas, graças a Deus! No escuro, ainda toda emaranhada e camaleonicamente confundida com os panos, ouviu as primeiras batidas na porta. TUM... TUM... TUM... Alguém escutou essa confusão danada que fiz e veio perguntar se está tudo em paz. Está, sim, está tudo em paz! Está tu... TUM... TUM... TUM... E se não for o vizinho? TUM... TUM... TUM... As batidas da porta se confundiam com o ritmo do seu coração. Uma gota de suor desceu pelo seu rosto e paralisou na ponta de seu queixo com a nova investida contra porta. TUM... TUM... TUM...

Mariantônia se enrolou numa manta, encheu-se de uma coragem que não possuía e foi dar fim aos seus temores. Rodou a chave bem devagar. Abriu a porta e não pôde acreditar no que viu: dezenas de aparições transluzentes e descarnadas estavam diante da sua porta. Os olhos encovados e profundos miravam numa única direção. Uma dentre todas as outras almas avançou e passou por Mariantônia que pôde sentir em seus braços um frio úmido e gelado das suas vestes. Era alma, sim! As outras esticaram as mãos ossudas e desesperadas a pedirem algo. O espectro parou diante de uma velha cristaleira empoeirada.

As velas estavam ali para o caso de falta de energia num temporal... A morta e a viva não trocaram uma palavra sequer e o diálogo estava sendo travado na quietude própria desses momentos. Mariantônia moveu-se até a cristaleira e entregou todas as velas, acendendo uma a uma, à fantasmagórica imagem que repassava o lusco-fusco tremeluzente para as outras aparições que se aproximavam.

A procissão partiu. Deixou Mariantônia sentada no centro da sala com um olhar estúpido. Ela nunca mais falou. Alguns dizem que ela jamais pisca e dorme de olhos abertos. Mariposas, às vezes, aparecem... Nesses dias Mariantônia apenas chora.

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