MANHÃ NO PARQUE

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Ele ficava ali à sombra das árvores, observando a luz do sol vazar através das copas altas das árvores e criar borrões de claridade por todo canto. Isso não o fazia feliz, mas, decerto, o distraía...

Ao redor dele estavam os pombos. Eram muitos. Todos os pombos do parque voavam para perto dele. Vinham ao seu encontro, pensava. As aves possuíam com ele uma espécie de combinação, quase uma simbiose. Os pombos não estavam ali porque gostavam dos respingos de sol nas folhas verdes e no chão de terra batida e avermelhada, ou porque a manhã era salutar... vinham para perto da fonte de águas com peixes coloridos e do homem para receberem comida certa na hora exata.

Durante alguns meses, o homem levou para os pombos do parque, dentro de um saco de papel-jornal, quirera com fartura. Os pombos viam naquele sujeitinho sóbrio e pontualíssimo a possibilidade do alimento e, por isso, já não voavam mais para longe, somente o necessário para se aproximarem das mãos que faziam chover os pequenos fragmentos amarelos saborosos. Assim, despendiam menos energia a voar a esmo, faziam bem a si mesmos e ao homem, pois acreditavam que ele se sentiria bem pelo bom gesto que se repetia sempre.

Quando avistavam o homem vindo pelo caminho leste ladeado por cercas-vivas, os pombos o recebiam com arrulhos e revoadas. Era um sinal de festa e alegria pela bênção matutina, pelo maná do céu. O homem, então, sentava-se calmamente à beira do grande aquário de peixes dourados e plantas aquáticas que boiavam serenas. O seu semblante era triste, se alguém pudesse olhá-lo atentamente, notá-lo ao menos.

Atirava punhados de quirera aos dóceis pombos. Algumas crianças divertiam-se com o alvoroço e pediam-lhe punhados de comida para jogar aos pássaros também. Queriam brincar, mas o homem ignorava os folguedos das crianças e não se alegrava com todo aquele rebuliço. Era triste. Com certeza. Mas os pombos... Ah! Esses eram felizes e quase se distinguiam nas suas asas inquietas os sinceros agradecimentos pela comida gratuita e farta.

Como sempre fazia todas as manhãs, o homem, naquela manhã, chegou ao parque da cidade e sentou-se na borda de azulejos portugueses do tanque de peixes. Os pombos já pousavam e aguardavam ansiosos, mesmo sendo pombos. Com sentimentos e emoções de pombos. Mas o homem, dessa vez, não jogou o farelo de milho como habitualmente fazia. Olhou para os pombos e estava mais infeliz do que nas outras manhãs. Pelos olhos injetados, podia-se dizer que havia chorado. E muito. Depositou o pacote de quirera ao seu lado e deixou os seus olhos vagarem pelo parque.

Então algo aconteceu. A água do tanque, até naquela hora tão tranquila e silenciosa, se agitou. Saltou dela, com muito vigor, para a borda, um enorme peixe, que de tão grande parecia pouco provável que vivesse e pudesse nadar naquelas águas tão rasas e claras. Foi se chegando para perto do homem de uma maneira que só os peixes em situação tão improvável como essa fazem e deitou a cabeça molhada no colo dele.

O sujeito se espantou, mas não reagiu. O peixe estava imperturbavelmente tranquilo.

O animal, sem aparentar nenhum desconforto por estar fora d'água, disse (isso mesmo: disse!) com voz serena: "Por que, durante todo esse tempo que você se senta às margens de minha casa, não tem sido generoso comigo e com os meus? Gostamos dos alimentos que os humanos jogam em nossas águas, mas percebo que você só os traz para os pombos..."

O homem, pela primeira vez depois de muito tempo, pareceu sorrir. Não sei se podemos considerar os dentes à mostra como um sorriso, mas foi o que a sua expressão facial pareceu traduzir naquele instante. "Não queira receber de mim o seu alimento. Meus motivos são esquivos e para você, que é peixe, e para eles, que são pombos, talvez sejam mesmo insondáveis."

O peixe relaxou mais ainda no colo do homem. Não temia a proximidade, pelo contrário queria estabelecê-la, provocar o início de uma relação amistosa, para também receber comida e proteção. "Não compreendo o que você quer dizer. Sei apenas o que vejo todas as manhãs. E isso é muito simples para todos daqui do aquário. Os pombos se fartam com a comida que você lhes oferece e nós não recebemos sequer um olhar de atenção. Também ansiamos por sua chegada e por suas ofertas, mas elas nunca chegam."

O homem estava um pouco atordoado. Pode perceber o quanto a sua constante cena enganara a quem o observava. "Venho acostumando esses pombos com a minha presença. Visto-me com roupas discretas, ponho quase nenhum perfume e somente faço os movimentos necessários para atraí-los. Estava seguro do objetivo traçado meses atrás, até que você, peixe dourado, veio conversar comigo. Agora estou incerto de como devo agir."

Se o peixe pudesse sorrir, sorriria. "A sua incerteza é boa, pois já não quer mais alimentar somente os pássaros. Não há problema nenhum em dividirmos com eles a comida. Ela é suficiente para todos."

"A minha incerteza não se trata absolutamente em dividir o que trago comigo. Quisera que fosse só isso. Estou incerto quanto ao fato de me matar, atentar contra a vida dos ingênuos que conquistei para junto de mim ou, agora, nessa nova situação, de assassinar os inocentes que se ofertam tão bobamente."

O peixe teve uma tremura estranha. Estava entendendo muito pouco do que o homem dissera, mas seguramente não era algo bom de se ouvir. As palavras eram soturnas e tinham o hálito da morte a rondá-las.

"Pode me explicar melhor o que me diz de maneira tão enigmática?". O peixe quis afastar a cabeça do colo do homem e parece que o fez, pouco a pouco, instintivamente, recuou.

"Há meses comprei um vidro contendo veneno. Não tive coragem para tomá-lo, apesar de não acreditar que possa tirar qualquer proveito da vida que tenho. A morte queria de mim as carnes, as vísceras e os ossos. Aquilo da qual ela é feita. Pensei, então, em matar o que mais aprecio como forma de justo pagamento e me livrar desse tributo. Pouparia a minha vida de covarde que sempre fui. Como você deve estar sabiamente pensando, não são os peixes o que mais aprecio nesse mundo... São as aves pelas suas asas. Hoje era o dia. Envenenei todo o alimento contido nesse pacote e faria um espetáculo à altura dos desejos da morte que me acompanha. Mas você chegou e pediu que eu fosse generoso com você e com os seus. Não sei o que faço."

O peixe compreendeu o que havia na natureza humana. Sentiu um ar sufocante atravessar as suas guelras. O mesmo ar, quente e seco, começou a rasgar a sua pele escamada. Estava secando... Os seus olhos perdiam a umidade e se incomodavam com a claridade da manhã. Ardiam... Para se livrar desse desconforto, o peixe debateu-se vigorosamente, tentando voltar à água. Sem notar, a sua cauda brilhante esbarrou com força no saco de quirera e o empurrou para o tanque...

Os outros peixes receberam o alimento.

O homem e o grande peixedourado se entreolharam. Com uma força bruta e esquisita, o homem empurrou opeixe para o chão, longe do tanque e da água. Depois se levantou, acertou a suaroupa no corpo com as mãos e caminhou em direção ao sol.

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