Ontem o céu estava fechado. O calor de dezembro sufocava as pessoas, as coisas e os objetos. Nuvens cor de carvão acumulavam-se pesadas no horizonte da cidade. Algumas já se esticavam sobre os prédios como grandes colchões amoldando tudo. Eram toldos deprimentes e ameaçadores para os moradores das caixas de fósforos empilhadas umas sobre as outras. Também antagonizavam com os minúsculos passantes que podem ser observados daqui do alto da minha caixa de fósforos com visão confortável para o mar. Algumas pessoas estavam prevenidas pelo serviço meteorológico matutino. Homens apressados barbeando-se, mulheres insones descobrindo fios brancos nos cabelos ao tingirem os rostos com uma maquiagem urbana para mais um dia de fúria no trânsito e trabalho monótono em alguma repartição. Assim começa o dia. Algumas dessas pessoas estavam com o rádio ligado. Outras já acordaram com a TV programada no canal de notícias. A cidade acorda no piloto automático. Previsão do tempo: Aguaceiros. Era um dia ruim como todos os outros dias de dezembro numa cidade afetada pelas alterações climáticas no planeta. Todos sabem que o clima caducou de vez. Só os governos das potências mundiais dizem que o alarme é exagerado demais. Que não há o que temer. Há controle. Deuses dos sem deuses. Desculpas para emitirem mais e mais poluentes na atmosfera. Contudo, o tempo severo não me oprimia. Eu olhava admirado as formações condensadas de vapores e gotículas de águas suspensas. Eu olhava as nuvens. Os cumulonimbus. Sentia o vento úmido entrar pela janela e suspirar dentro de mim como um desejo não realizado. Desejava pancadas de chuva para o meu corpo solitário naquela manhã em que todos começavam a ir e vir num cotidiano garantido pelos Direitos Constitucionais. Guarda-chuvas preparados, sombrinhas nas bolsas e capas dobradas e arranjadas no braço. Todo mundo ouviu o noticiário. Todo mundo faz as mesmas coisas pela manhã numa metrópole. Menos eu. A chuva era o sinal de que um balé desenfreado começaria nas ruas da cidade. Os transeuntes estavam adequados e prontos. Os bueiros precários já estavam condicionados a não dar vazão às águas torrenciais misturadas aos detritos mal-educados lançados nas ruas e nas sarjetas. Os bueiros são bebês com refluxo. Tudo certo para o filme rodar. O diretor podia gritar a qualquer hora: Silêncio! Gravando! E todos cumpririam os seus papéis com exatidão: buzinas gritos correria. Roupas encharcadas. Guarda-chuvas e sombrinhas arrancados de mãos displicentes pelo vento. Caos. Na hora da pancada de chuva, eu desaguaria sobre as terras de minhas saudades, enchendo os rios e fazendo goteiras brincalhonas nos telhados ressequidos e corredeiras nas calhas da vizinhança. Zeus - que preside os fenômenos atmosféricos, recolhe e dispersa as nuvens, comanda as tempestades, cria os relâmpagos e os trovões - murmuraria para os meus pensamentos: "Dorme que a chuva é boa!". Os relâmpagos seriam efeitos luminosos varando o céu (Não há o que temer... dorme! – diria o deus). São Pedro está arrumando a casa... lembrança da voz carinhosa de mamãe quando eu era criança de olhos arregalados. TROVÕES! O vento escorreria líquido pelo castanho inquieto das copas das árvores e pelos os meus cabelos desalinhados... Talvez ele quisesse parecer zangado. Agitado. Nervoso. Só talvez. Mas para mim, o vento era prenúncio e preparação. Bom se um romance começasse pedindo guarda-chuvas, marquises e proteções. Bom se um carro segredado de insufilm parasse no caótico trânsito da cidade e suspendesse todos os movimentos em stop-motion. De movimentos só os da chuva caindo, os meus ansiosos e felizes e os da outra pessoa que abriria gentil a porta do carro para me acolher e salvar do inferno impermeável da cidade de pedra e asfalto. Seria convincente o sorriso de dentes brancos e confiáveis de anúncio de creme dental do desconhecido galã de cinema hollywoodiano. O tempo ainda continuaria cinza, mas seria um comercial de TV em horário nobre depois do telejornal. E isso exigiria esperanças inocentes. Que-tudo-ia-dar-certo-podia-ficar-tranquilo. Eu não precisaria correr hesitante pra casa para mais uma noite de amigos na internet. Café e cigarros. Tão bom se esse romance sonhado não fosse apenas virtual. Tão inesperado se depois do sorriso de comercial de TV, a mensagem subliminar ainda se mantive e perdurasse no brilho dos olhos do outro. Tão incrível se nos corações houvesse um toque caloroso que não fosse mais um torpedo enviado pelo celular de modelo do último tipo caríssimo... Ontem, no céu fechado e pesado de águas precipitantes, a minha vontade de ser chuva tinha que ser realidade prevista no site do serviço meteorológico: Boca beijo saliva mãos corpos corações sonoridades relâmpagos trovões. Carro com vidros suados de amores. Cama molhada de chuva morna e cúmplice: suores, sexo e tesões. Corta! Gritaria mais uma vez o diretor.
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Acerto de Contos
Short StoryNesse livro de estreia, o escritor Luiz Antonio Cavalheiro, traz histórias que , carregadas de estranhamento, podem ser lidas e percebidas como um mergulho profundo em uma mente delirante, simbólica e, muitas vezes, surpreendente.