O que fazem cem bilhões de estrelas

Capítulo 4

Naquela manhã chuvosa Carlos revirava a casa em busca de qualquer evidência que mostrasse para onde foi Alice e quem a ajudou a fugir. O sangue no quarto da empregada e no sofá de Olívia não o enganavam, Alice esteve lá. Nesse momento se arrependeu de tê-la deixado estudar e por causa disso ter conhecido aquelas "libertanas", como ele costumava chamar Olívia e Melissa, mas quando foram convidados para aquele casamento entre dois homens foi o cúmulo do absurdo para Carlos que tentou impedir a ida de Alice, mas ela era uma das madrinhas e insistiu, e acabou indo sozinha.

Carlos fazia uma lista de pessoas possíveis para quem Alice poderia pedir ajuda enquanto andava de um lado para outro do quarto cada vez mais irritado, quando a caneta escorregou de seus dedos e caiu debaixo da cama. Ele chutou a cabeceira com força e se abaixou, foi quando encontrou uma mala fechada, abarrotada com as roupas que Alice com certeza levaria para a viagem e ali, no topo das roupas, ele viu um caderno de capa vermelha que ele reconheceu como o diário que a viu preenchendo algumas vezes na época da faculdade.

Carlos folheou o diário com rapidez procurando alguma entrada recente adicionada por Alice, mas as folhas terminavam em 1981. Ele jogou o diário longe e lá de dentro caiu um ingresso de cinema velho onde no verso, com uma letra desconhecida, dizia que aquela tinha sido a melhor noite da vida da pessoa que deixou aquele bilhete, assinado apenas um J borrado e solitário no canto. Carlos correu as folhas do diário até encontrar uma data próxima a do ingresso e começou a ler:

SÁBADO, 19 DE NOVEMBRO DE 1977

Querido diário,

Ontem eu fui ao cinema pela primeira vez. Certo, não foi a primeira vez, mas eu considero como a primeira porque quando fui com Olívia no começo do ano eu estava completamente bêbada, a tela girava diante dos meus olhos e a cadeira balançava como um berço; e eu peguei no sono nos primeiros dez minutos de filme.

Eu achei que iam rir da minha cara se eu dissesse que nunca tinha pisado em uma sala de cinema antes, mas Jorge não riu, na verdade ele me explicou o que acontece lá dentro e parecia muito empolgado para assistir Guerra nas Estrelas. Você sabe, diário, que Jorge sempre foi muito legal comigo, desde o dia que nos conhecemos, e fico feliz de ter feito um amigo... mas bom, quem me dera o dia de ontem tivesse terminado quando os créditos do filme subiram.

Jorge me levou até a porta da minha república e viemos conversando, ele estava bem bonito ali sob a luz da lua, tão bonito quanto no dia que nos conhecemos, eu diria, mas isso você já sabe, enfim, eu disse que não precisava ser acompanhada, mas ele insistiu. Eu passei o ano todo em negação, agora o ano acabou e eu vou me casar. Eu achei que só me casaria depois da formatura, você sabe, mas minha mãe insistiu que fosse agora, eu não sei como é meu vestido, ou onde vai ser a festa, mas a cerimônia com certeza é na igreja.

Eu achei que as coisas iam mudar se eu me afastasse de casa e daquela realidade, que eu ia mudar, que talvez meus verdadeiros sentimentos por Carlos fossem despertar para o melhor, mas aí veio o Jorge que faz eu me sentir leve, que faz eu me sentir eu mesma, com ele eu consigo sorrir com facilidade e sem me preocupar com o que os outros vão achar, com ele não tem um milhão de rosas morrendo na janela, tem conversa, e ele me escuta de verdade. E essa noite ele me beijou. Ou eu o beijei. Ou nós nos beijamos. Na porta da república. E não é como se eu o tivesse empurrado e gritado com ele, eu correspondi. Como não vi isso chegando? E sinceramente, diário, eu acho que eu vi sim, e já vinha chegando há algum tempo.

Mas eu vou me casar! Qual o meu problema? Então depois do beijo eu só corri. Eu não sei o que vai acontecer na semana que vem quando nos encontrarmos nas últimas provas do semestre, eu só espero que tudo esteja bem.