Capítulo 12

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Alice desembarcou em sua cidade natal assim que o sol nasceu. Sentia mais saudade do que se lembrava, mas não o suficiente para passar a noite, nem sabia se Celeste a receberia se fosse o caso. Não tinha notícias da mãe desde que a mandou para casa algumas semanas antes. Saiu caminhando da rodoviária rumo a sua casa, gastaria pouco mais de trinta minutos andando devagar para chegar. Dali, a cidade parecia a mesma.

As casas baixas e as árvores deixavam o dia fresco e os poucos carros que passavam deixavam a vizinhança silenciosa, nada parecida com a capital. Passou por algumas das senhoras que achavam seu sonho de ir para capital uma loucura, algumas com aquele pensamento de "eu sabia que ela ia voltar", outras assustadas como se vissem uma assombração passar ao lado delas. Alice ignorava todas elas.

Alice passou em frente a sua antiga escola, viu professores e alunos chegando, se perguntou qual era o sonho de cada uma daquelas crianças e quantas conseguiriam alcançar o que queriam no futuro. Ela por fim chegou na porta de sua antiga casa, minha casa. Alice sabia que não encontraria a mãe naquele horário pois estava trabalhando, então pegou sua antiga chave e destrancou o portão, atravessou a varanda e foi até a porta da sala, por onde entrou na casa.

O cheiro do lugar continuava o mesmo para ela. Cheiro de madeira molhada e terra. Na parede da sala, a mesma mancha de infiltração de quando saiu de casa pela primeira vez. Caminhou até a cozinha. A casa parecia abandonada, não fossem os potes cheios de farinha e arroz nas prateleiras, que diziam o contrário, assim como os vestidos de Celeste separados por cor e tamanho no guarda-roupa. A casa agora só parecia grande demais para uma só moradora.

Alice enfim seguiu até seu antigo quarto, ele parecia estar da mesma forma que foi deixado quando se mudou, tirando os lençóis brancos que cobriam os móveis e o deixavam com o ar mórbido. Não era como se ela tivesse se mudado, era como se ela tivesse morrido.

Ela foi até a estante de livros, folheou alguns que levantaram poeira e a fizeram espirrar. De dentro de um exemplar tirou uma fotografia borrada tirada em frente ao cinema naquela noite de setenta e sete, era possível ver todos os seus amigos ali naquela noite, rindo. O acidente ainda não tinha acontecido, seria algumas horas depois. Ela devolveu a foto para dentro do livro e o colocou na bolsa. Da estante tirou o pequeno foguete que eu lhe dei quando achei que ela queria dizer que seria astronauta, ela nunca me corrigiu. Alice deixou a carta para Celeste na mesa de centro da sala e deixou a casa olhando para trás uma última vez e se dirigiu ao cemitério da cidade.

Uma brisa leve tocou seu rosto, ameaçava chover e os olhos de Alice ameaçavam chorar. Ela encarou os portões de ferro do cemitério e entrou, caminhou poucos passos até chegar em minha lápide e deixou ali o foguete de brinquedo. Vê-la ali, de frente para mim, deixando aquele pequeno foguete para trás soava como uma mensagem dizendo que ela enfim iria voar e foi nesse momento que eu decidi contar sua história, pois eu sabia que os anos de estrela solitária de Alice enfim tinham chegado ao fim.

O sol já estava alto no céu quando ela passou em frente a lanchonete onde trabalhou com Lisa, o movimento parecia o mesmo, assim como os funcionários. Viu a antiga amiga servindo algumas mesas e só observou de longe, ela não se sentia mais parte daquela cidade. Quanto mais quarteirões atravessava, mais distante se sentia de seu passado.

Seguiu para a casa de Lisa onde deixou a carta na caixa de correio e voltou para sua antiga casa. Celeste já deveria ter voltado do trabalho naquele horário, mas a casa ainda parecia vazia. Se sentia infeliz por deixar a mãe dessa forma, mas não tinha escolha.

De volta à capital, no fim da tarde, Alice foi recebida com uma festa de despedida surpresa e enfim deixou algumas lágrimas, dessa vez de alegria, caírem de seus olhos.

― Um brinde a nossa Alice! ― disse Roberto levantando sua taça e todos copiaram.

― Ainda estou triste que logo que você voltou para nossa vida, você já vai embora de novo ― disse Júnior a abraçando.

― Minha partida é apenas um até logo.

Alice distribuiu os envelopes e disse para todos abrirem apenas depois que ela tivesse partido. Ela e Helga trocaram um abraço apertado antes de Helga os deixar para ir para o observatório e a festa seguiu noite adentro até quase meia noite.

Enquanto isso, perto dali, Carlos dava de cara com uma figura lhe esperando em frente ao portão de casa.

― Você é o Carlos?

― Depende, quem quer saber? ― Carlos respondeu saindo do carro. Ao fechar a porta e se virar não viu o que atingiu seu queixo.

― Prazer em conhecê-lo.

― Jorge? ― Carlos devolveu o soco que recebeu na mesma intensidade e atingiu o olho de Jorge, que pulsou e ficou vermelho na mesma hora. ― Isso é tudo culpa sua, seu astronauta de merda.

― Já se olhou no espelho?

Os dois homens se agarraram pelos paletós e rolaram no chão trocando socos e xingamentos. Jorge era mais forte do que seu corpo magro aparentava ser e Carlos não esperava por isso.

― Nunca mais chegue perto de Alice.

Jorge saiu da briga com um olho roxo, mas satisfeito por deixar o nariz de Carlos quebrado e sua camisa branca manchada de sangue.

No dia seguinte, Alice se despediu de suas amigas e da casa que morou como hóspede nas últimas semanas, e pegou um táxi para o aeroporto. Ninguém na festa percebeu, mas Alice não bebeu uma gota de álcool sequer na noite anterior. Dentro do avião, enquanto o piloto anunciava a decolagem, Alice passou sua mão sobre sua barriga sabendo que ali dentro carregava seu primeiro filho, e ela estava feliz, mesmo que não soubesse quem era o pai. Na verdade, era até um alívio não saber.

Celeste só voltou para casa no dia seguinte e encontrou a carta deixada por Alice. Ela leu todo o conteúdo com a testa franzida e assim que terminou amassou a folha de papel e jogou sobre a mesa. Seu primeiro impulso foi gritar e amaldiçoar Alice por suas decisões, mas como não havia ninguém ali para ouvi-la, ela escreveu. Alice nunca recebeu sua resposta. Daquele dia em diante Celeste agiu como se nunca tivesse tido uma filha.

Celeste pediu demissão, cortou o cabelo, deixou sua casa, sua cidade e sua aliança para trás. Recomeçou sozinha, do zero, em um lugar onde ninguém sabia sua história, então ninguém podia te julgar.

Eu preciso dizer que observei pessoas o suficiente durante os anos que passei vagando para saber que, na maioria das vezes, ninguém liga o suficiente para você para perder tempo te julgando. Na maioria das vezes, as pessoas estão dentro da própria cabeça, com seus próprios problemas e seus próprios fantasmas.

Celeste morreu sozinha, poucos anos depois, durante o sono. Como uma supernova, seu passado a fez implodir e ela desabou sobre seu próprio peso. Nunca soube que teve uma neta.

A pequena galáxia que Alice encontrou no começo daquele ano, foi engolida pela Via Láctea, assim como Carlos foi engolido por seus erros.

A missão Oceano decolou antes da barriga de Alice começar a apontar e para cada um que perguntava na base quem era o pai, ela dava uma resposta diferente, nunca citando seu ex-marido ou o astronauta que ia rumo a Vênus.

Alice, que antes se sentia uma estrela desgarrada e solitária, às vezes a lua vulcânica de Júpiter, percebeu que se soltou da galáxia que orbitava para criar seu próprio aglomerado de estrelas. Ela ficou à deriva, mas amou cada segundo disso, até estar pronta para se reagrupar outra vez e criar dali uma nova galáxia.

Carina nasceu oito meses depois, durante um eclipse solar total, e Alice sabia que aquilo só podia ser um sinal de sorte. 

O que fazem cem bilhões de estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora