Capítulo 2

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Quando Leonor chegou onde o cheiro de sangue era mais forte, viu de relance um rapaz muito novo desacordado no chão, e seu marido agachado ao lado dele.
A mulher olhou curiosa para o pequeno e não viu movimento, em seguida ela e o marido se entreolharam, e Miguel em um arquejo triste, negou com a cabeça, indicando nenhum sinal de vida no mais novo.

Leonor não podia aceitar aquilo, já havia perdido uma filha antes, ainda humana, e a dor era dilacerável, nada se comparava.

Com rapidez se abaixou aproximando-se do pescoço do humano jovem, e ali havia uma marca já feita pelo marido.

Ela o faria voltar, não podia ver outra criança morrer assim, tão subitamente.
Expôs suas presas e sobre a mesma perfuração liberou mais alguns mililitros de veneno.
Olhou para o menino, seus olhos estavam abertos, esbugalhados, e sua pele já perdia o calor. Aquele mesmo cheiro horrível dos defuntos dessangrados começou a subir, era o corpo querendo iniciar seu estágio de decomposição.

"Não, não, por favor meu rapaz.". Leonor se ergueu sob os joelhos, ele não podia morrer assim, tão jovem, tão imaturo. Por que o veneno não estava fazendo efeito? Ela se questionava olhando o marido que tampouco sabia o motivo.

Segurou nas mãos do defunto que mais pareciam massa de pão, de tão maleável, e tentou sentir um cheiro humano, ou o cheiro de um vampiro, tudo menos o fedor putrefato da morte, mas nada aconteceu.

Miguel assim como a esposa, já vivera aquilo, e estava perplexo com o que acontecia, mas os dois não podiam se demorar, seus filhos estavam sozinhos em casa. Ele se levantou e preparou-se para chamar a esposa e consolá-la pelo caminho, mas ela permaneceu ajoelhada, com o olhar vidrado naquele menino que ela nunca conheceria.

Observou o rapaz, que tinha seu veneno nas veias, que era carne da sua carne no momento em que fora transformado, mas que não conseguiu acordar para a imortalidade a tempo.

"Não. Isso NÃO ia acontecer" pensou ela. Com uma força descomunal tentou se lembrar das lições de sua antiga curandeira indígena, a última que passara pelas aldeias mato-grossenses. Seus ensinamentos sobre o uso de babosa e mel, o boldo socado com água do rio Paraguai que curava feridas profundas e até mesmo o uso do urucum para afastar os espíritos do frio e da escuridão, dizia ela que este último era cem mil vezes melhor que qualquer vacina.

Leonor não concordava com todas as receitas daquela mulher, como uma boa entendedora de botânica, mas ela se lembrava de algo, um ritual de ressurreição: Uma última chance de trazer qualquer se humano morto de volta à existência (Obviamente que por um preço). E se lembrando foi refazendo os passos ditos por aquela mulher há muitos séculos anteriores, confiando que de alguma forma, como último caso, em desespero eles funcionassem.

"Primeiro, pegue um fio de cabelo seu, e um do morto" e ela fez isso. "Depois assopre-os e pense no deus da morte e no deus da vida, ambos representam o seu e o cabelo do morto, dançando em uma valsa" e ela fez isso, concentrada, sem se deixar interromper pelo olhar julgador do marido, que ainda não entendia o que ela estava fazendo.
"E então Anhangá surgirá, não desdenhe dele, e mostre respeito".

Miguel se assusta com a esposa, que cai no chão olhando para algum ponto específico, ele observa esse ponto, mas não vê nada, ela entretanto, está vendo alguma coisa, está ouvindo algo.

Miguel entende naquele mesmo momento, que a esposa acabou de fazer algum tipo de ritual de invocação, e bufa irritado ao pensar em quantas consequências isso pode trazer.

Leonor o observa, o deus. Ele é alto, ainda mais que seu marido, seus músculos marcam o corpo perfeitamente moreno e nativo, e usa uma grande máscara pertencente à algum animal.

O EncouradoOnde histórias criam vida. Descubra agora