Capítulo 9

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A noite gritava pela goela de um grilo enquanto Miguel e Leonor repousavam em duas cadeiras de vime, altas horas da noite. Miguel fumava um cachimbo presentado por um amigo seu, e Leonor o observava com atenção e receio.

O homem parecia desesperançoso e perdido, em tantos séculos de casamento, a mulher poderia dizer que nunca o vira tão sem direção como ali. Aquele homem que era tido como líder de sua família, parecia estar desaparecido em um mar misterioso de angústias.

Ele puxou, de repente, do seu bolso esquerdo aquela faca. Analisou-a com a mão livre, o seu cabo de madeira, e as runas grafadas nele. Não era qualquer faca, os índios não brincavam quando se tratava de sacrifícios humanos.

— O que o aflige? — Perguntou Leonor com certo cinismo, pois estava bem óbvio o motivo da aflição de seu marido. Mas ela queria sondá-lo, por isso perguntou.
Ele se paralisou e ficou quieto por alguns instantes.

— Não sabe que estamos perdidos? — Havia sarcasmo em Miguel.
A frieza da resposta arrepiou a espinha da mulher.

Houve um momento de silêncio, Leonor se sentiu insegura com a postura de Miguel, ele não deveria deixar ela se sentir assim.

— Não seja assim tão duro...
Miguel se calou.
— Sei que me condena pelo que fiz. — Sentiu sua visão ficar turva. — Me condeno também. — Sua voz falhou e sua garganta quis fechar. — Mas não posso evitar pensar se, por isso, já não me ama mais.
O homem continuou observando e acariciando o cabo daquela faca.
— Sequer tem coragem de olhar sua mulher nos olhos?! — Leonor exclamou atônita em meio a lágrimas e mais lágrimas sentidas.

Miguel parou, e finalmente encarou Leonor. Ela se assustou ao ver quão opacos estavam seus olhos que eram castanhos, e seus lábios tremiam como se ele pudesse sentir frio. 

— Nem em mil anos deixaria de te amar. — Ele apontou a faca contra o próprio peito. — Arrancaria meu coração e entregaria nas mãos daqueles selvagens, se eu pudesse poupar a ti e a meus miúdos disso tudo!

Seus lábios começaram a tremer ainda mais, e agora seus olhos estavam brilhando. Leonor se desmanchou ao ver cenas raras de seu marido chorando. Aquilo a desesperava, porque se ele não sabia o que fazer, como protegeria a ela e a seus filhos?

Prontamente ela se levantou e abaixou ao lado da outra cadeira, agarrando seu marido em um abraço forte e desesperado. Ali, ele desabou sob o aperto de sua esposa, e chorou sem sentir vergonha disso. Leonor acariciou os cabelos fartos e grisalhos de seu marido, presenciando uma cena que ninguém mais podia ver: Miguel completamente vulnerável.

— O que farei?! Como posso protegê-los disso? Que tipo de homem merece testemunhar a queda de sua própria família?! — Ele protestava entre uma onda de choro e outra
— Não diga isso! — Ralhou, Leonor. — Haverá de ter uma saída.

O homem se desafogou dos peitos de sua mulher.
— Talvez eu recolha as almas. Parta amanhã de manhã para Portugal com os miúdos. Em três dias posso encontrar...
— Não! Não nos precipitaremos.
Miguel apertou o vestido de Leonor com revolta.
— Não aceitarei vê-los morrer em uma guerra! Partirão para Portugal. — Insistiu.
— Não vamos nos separar, Miguel! — A mulher se endireitou enquanto seu marido se soltava dela e se levanta. — De novo, não!
O homem a encarou a contragosto.
— O erro foi meu. Ficaremos juntos, e enfrentaremos juntos. Fim de prosa.
— Haverá uma saída? — Miguel perguntou como uma criança indefesa. Estava o oposto do homem que era.
— Rezaremos, e o sagrado nos ouvirá.
Aquilo não consolava o homem, mas era a única resposta que não causaria ainda mais pânico nos dois. Miguel beijou sua esposa na testa e tentou prometer a ela que tudo ficaria bem e que a protegeria, mas como ele poderia? Ele estava se odiando por não conseguir fazer essa promessa tão simples que ele repetia desde que a levara ao altar, séculos antes.

O EncouradoOnde histórias criam vida. Descubra agora