Miguel bagunçava seus cabelos eternamente castanhos, enquanto pensava nas possibilidades de retribuir àquele deus sem perdas, sem que a vida de sua família estivesse em risco. Mas não sabia como a esposa o havia conjurado. "E se os índios soubessem? Será que ao menos ela entendia a seriedade daquilo?" Se questinou já ficando irritado mesmo contra a vontade. Era inevitável não ter medo do que poderia acontecer.
O rapaz que ele ainda não sabia o nome estava preso sob um sono profundo no chão de seu quarto. Por vezes ele o observou, o menino, ainda que não precisasse, respirava fundo. Seu rosto estava tenso como se ele estivesse preso em um pesadelo longinquo.
Leonor voltou ao quarto e ela e o marido se olharam.
— Os miúdos já comeram? — Ele perguntou como de costume, já era 7 da manhã e podia escutar seus pequenos mais o do meio conversando e brincando na cozinha.
A esposa assentiu, e depois virou a cabeça observando o menino, Miguel a acompanhou no olhar.
— Não foi o veneno que o fez voltar, não é mesmo? — Miguel perguntou confirmando suas suspeitas. E viu a esposa fechar os olhos por alguns segundos antes de assentir com hesitação.
— Tens ideia do que fez? Um pacto Leonor, com um deus deles? — O homem se aproximou da esposa, lamentoso, com o tom da voz elevado mas nunca a ponto de afrontá-la.
A moça de muitos séculos de vida manteve o olhar do marido, até não conseguir mais, até que seus olhos fechassem novamente, e quando abriram trouxeram rios de lágrimas. Miguel não esperou por aquilo.
— Eu não podia Miguel, e-eu não podia perdê-lo.
O homem observou sua esposa, a sua dor era transparente para ele, naquele momento ele a entendeu. Se lembrou com evidência de sua filha, dos anos e mais anos em claro, ele sofrera muito, mas a esposa, não sabia dizer se em algum momento ela parou de sofrer, ou se a dor diminuiu.
Sentiu os ombros de sua companheira eterna se retesarem, e depois tremerem conforme ela chorava com o menor som que conseguia para não atrair a atenção dos filhos.
— Ele morreria tão jovem, tão novo ainda, como ela. Deus sabe que eu não aguentaria, ele sabe...
O português não aguentou mais ver sua esposa assim, seus olhos cujo o choro era quase impossível de expelir, começavam agora a se derreterem em lágrimas e mais lágrimas, junto da lembrança de sua filha, eles nem ao menos puderam se despedir.
O homem foi rápido em puxar a esposa muito mais pequena que ele para um abraço apertado, enquanto tentava mostrar com o seu corpo, consolo e segurança.
— Tudo bem. — Ele dizia entre lágrimas. — Está tudo bem. — As lágrimas da moça molhavam seu suéter, e ele só continuava a tentar se manter forte, por ele e pela sua família. — Vamos dar um jeito, prometo-te.
Fechou os olhos por alguns segundos, vivenciando o mesmo inferno pela milésima vez nas suas lembranças, como um disco na vitrola a tocar a mesma música eternamente. Ele podia até decorar a letra, mas a dor da melodia seria sempre a mesma: Dilacerante e inesperada...
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"Ele está no escritório de seu pai, é novo e humano, frágil e tolo e em todos os momentos que se vê ali sentado naquela cadeira ouvindo as propostas de ataque às aldeias indígenas do Brasil, quando lembra de como ele concordara com o pai à época, se condena e se desgraça.
Mas não pode voltar no passado, não pode apagar o que foi escrito no livro do tempo, por isso, tudo que faz é relembrar de coração partido.
— Veja Miguel, se ocupas àquela parte de terra, o lucro se torna triplo.

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O Encourado
De TodoEm um Brasil de 1960, as lendas voam como pássaros, principalmente depois de um montante de mortes misteriosas acontecerem entre as florestas. O vilarejo está apavorado, ninguém sai de noite. Ernesto, um rapaz de 18 anos que acabou de perder a mãe...