Parte VI

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O dia que meus pais viajaram para o Japão, um mês depois do GP de Monza, foi o dia que escolhi mudar de casa. Jessica já tinha avisado aos outros funcionários do meu pai e a maioria deles se dispôs a me ajudar com minhas roupas e coisas que poderiam ser importantes.

A cada caixa e mala de viagem que saía da casa para o caminhão de mudança, eu me sentia um pouco mais livre. Eu sabia que essa decisão não seria bem aceita pelos meus pais, mas isso era algo que eu lidaria depois que alguém contasse a eles o que eu tinha feito.

E diferente do que eu tinha pensado, Carlos não conseguiu me ajudar na mudança, mas ele já tinha a chave do meu novo apartamento e me garantiu que iria me ver quando voltasse do GP do Japão.

Organizar todas as coisas sozinha não era fácil, mas eu sabia (e comemorava) que a minha vida seria assim daqui em diante. Com todas as caixas empilhadas na sala de estar pequena, eu comecei a tirar as coisas por cômodos, posicionando as pequenas decorações que Charles, Lottie e Carlos tinham me dado no último mês e as que eu já tinha.

O apartamento era pequeno e fora do principado de Mônaco, mas já me parecia mais aconchegante do que a mansão dos meus pais. Morar em Nice não seria ruim, a cidade ficava há apenas 30 minutos de Mônaco e o meu novo apartamento ficava em um prédio de frente para a praia. E também, tudo isso era temporário até que eu conseguisse encontrar um trabalho bom o suficiente em Zurique, na Suíça, e pudesse me mudar para lá.

Tirar o globo de neve de Madrid da caixa de decorações foi dolorido, já que me lembrou do dia que Raquel me deu de presente. Foi no primeiro Natal que passamos com Fernando em nossa casa, e eu me lembro dos cinco brinquedos diferentes que Raquel e Fernando me deram. E dos meus pais, eu ganhei um livro, destinado a meninas, sobre como aprender a cozinhar.

No ano seguinte, Raquel me levou a inúmeros passeios em shoppings, junto de minha babá, e eu sempre voltava segurando mais sacolas do que conseguia realmente carregar, simplesmente porque ela gostava de me dar as coisas que eu me interessava nas lojas.

Coloquei o globo de neve na prateleira logo acima da cabeceira da minha cama já que agora, além de me lembrar de Raquel, ele também me lembrava do meu namorado madrilenho. Sorri ao lembrar dele e ouvi, como se fosse combinado, o toque específico do meu celular anunciando que Carlos estava me ligando.

Oi, cariño! – Ele falou animado assim que atendi a ligação e eu sorri, já sentindo saudade dele.

– Oi, mon amour! Como foi o vôo? – Falei preocupada e ouvi ele pigarrear, como se estivesse desconfortável com alguma coisa.

Foi bom. – Carlos respondeu um tanto sério e eu franzi o cenho, achando estranho a mudança brusca de humor dele. – E a mudança, como está indo?

– Muito bem... Terminaram de trazer as minhas coisas faz uma hora, agora estou decorando a casa. – Contei um tanto desinteressada e ouvi Carlos concordar baixo.

Seus pais estavam bem incomodados durante o vôo... Pelo que entendi, um dos funcionários contou a eles que você se mudaria para Nice hoje. – Carlos contou com seriedade e eu senti meu coração acelerar de raiva, eu já até imaginava quem tinha contado a eles sobre a mudança.

– Me diz que eles não te encheram a paciência, por favor... – Pedi, torcendo para que ele concordasse comigo.

Corazón, é inocência sua achar que eles não falariam comigo... Eu não queria te contar isso por telefone, mas eles me culparam o tempo todo por ser o motivo da sua mudança. – Eu conseguia sentir o incômodo na voz dele e me senti completamente impotente e culpada por ter colocado ele em uma situação ridícula dessas. Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele continuou (como se estivesse lendo meus pensamentos): – Não fique se culpando, Char, nada disso é culpa sua.

– Não é culpa sua também, Carlos. E eu não queria te fazer passar por isso. – Falei rápido demais e torci para que ele conseguisse me entender. – Eu... Eu vou conversar com eles, fica tranquilo.

Char, não vale a pena...

– Eu resolvo isso, Carlos. Deixa comigo.

(...)

Como sempre, a ligação por chamada de vídeo com meus pais não foi das mais amigáveis. O tempo todo, o tom deles era acusatório, colocando em mim a culpa de eu não conseguir amá-los como os outros filhos amam seus pais.

Mas como eu poderia amá-los quando eles nunca me amaram primeiro?

Enquanto eu olhava para as estrelas pintadas no teto do meu novo quarto, eu me perguntava se, algum dia, eu faria algo que os agradaria.

Eu não sabia dizer como e nem o porquê de eles nunca terem me dado atenção, já que eu nunca fui uma criança agitada. Ou talvez eles só não quisessem filhos, mas nesse caso, a culpa continuava não sendo minha.

Meus pais sempre tiveram rios de dinheiro disponíveis. Meu pai, Henri Boissonnet, era o único herdeiro de uma família tradicional francesa e minha mãe, Estela Mazza, era filha de um farmacêutico italiano famoso por criar fármacos que eu não fazia questão alguma de saber quais eram. Eu não preciso dizer que não conheci meus avós, isso é óbvio. Meus pais nunca tiveram relações boas com os pais deles.

E parece que tudo se repete, não é?

Então, talvez esse fosse o maior motivo pelo qual eles não conseguiam me amar: eles não tiveram amor dos pais e não sabiam como fazer isso comigo.

As estrelas no teto concordavam silenciosamente comigo conforme eu falava, em voz alta, que nada disso era minha culpa. Talvez um dia isso entraria na minha cabeça de uma vez e eu pararia de me culpar por não conseguir amá-los como eu amava Raquel e a minha babá que tinha voltado para o Brasil quando completei quinze anos.

"Você me dá desgosto, Charlotte." Foi a frase que eu ouvi quando disse ao meu pai que estudaria música ao invés de engenharia mecânica, que era o que ele queria que eu estudasse.

"Você quer ser pobre para sempre?" Foi o que minha mãe falou quando eu disse a ela que tinha conseguido o emprego como produtora em uma gravadora famosa.

"Eu não quero que você use o meu sobrenome nessas produções horrendas." Foi o que meu pai me disse quando eu contei a ele que o primeiro disco que eu tinha produzido seria lançado no mercado fonográfico.

E foi assim que eu me tornei apenas Charlotte Mazza e enterrei o meu último sobrenome, Boissonnet, junto com a minha enorme vontade de agradar meus pais.

E é claro que Fernando tinha suas participações na minha autoestima de merda, porque ele sempre fazia questão de jogar na minha cara que eu não era boa o suficiente e era por isso que todos os meus namorados me traíam.

Olhando para o porta retrato na mesa de cabeceira, com uma foto minha com Carlos e o cachorro dele, Piñón, eu me sentia culpada por ter começado a me aproximar dele apenas para provar para Fernando que eu era, sim, digna de namorar alguém que ele conhecia e (aparentemente) confiava.

Talvez eu realmente fosse uma pessoa horrível, principalmente por ter me aproximado de Carlos por puro interesse. Mas agora, eu estava realmente apegada a ele e, talvez, pudesse me redimir com o universo pelo meu interesse inicial.

Enquanto observava o sorriso genuíno de Carlos na foto, eu adormeci.

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