Reunião de Família

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Meu estômago revira junto ao balançar quase que gentil da carruagem que avança discretamente na calada da noite em direção ao distrito de Trost, onde eu serei julgada em alguns dias. Minhas mãos estão bem presas uma a outra e com um rifle apontado para mim a todo momento, eu ao menos ousaria tentar uma fuga daqui. Durante algumas horas tudo o que escuto é o trote abafado do cavalo que nos leva e a conversa banal dos dois soldados que guiam, falando despreocupados entre si.

A pequena vila pela qual estamos passando é o ponto de encontro que eu mesma havia escolhido caso algo como isso acontecesse. A movimentação sutil do lado de fora de alguns civis encapuzados e um único rosto conhecido em especial faz uma onda de alívio percorrer o meu corpo, embora eu ainda esteja em uma situação muito, muito ruim.

Posso sentir meu sangue ferver nas minhas veias a cada vez que meus olhos casualmente encontram os de Nile, sentado com as pernas cruzadas de frente para mim parecendo bastante imerso no livro que tem em mãos. Já havia chorado e o xingado de muitos nomes que até mesmo o meu pai me repreenderia por dizer, mas nada do que eu fizesse parecia aliviar a sensação ruim e crescente em meu peito.

Mais do que apenas um companheiro de treinamento, Nile foi meu amigo. A traição vinda dele dói tanto quanto se viesse de Erwin ou Mike. Dói tanto quanto as palavras de Levi naquele dia. Reviro os olhos involuntariamente, relaxando sobre o banco e soltando o ar dos pulmões com força ao pensar em Levi e em toda a sua arrogância em dizer que eu precisava ser salva por ele, embora lamente em segredo que nesse momento ele não esteja aqui para me tirar dessa situação, mesmo que eu saiba exatamente como me livrar dela.

-- Está me desconcentrando. -- Nile dispara quando suspiro alto outra vez e me viro devagar para ele, franzindo o cenho ao deixar transparecer a minha indignação.

-- Cale a boca, Nile. Você já me prendeu. -- Dou de ombros. -- Não me sobrou nada além de reclamar.

O Comandante desvia os olhos do seu livro, que faz um barulho alto ao ser fechado e descruza as pernas, se inclinando na minha direção. Ele apoia os cotovelos sobre os joelhos e junta as mãos, entrelaçando os dedos compridos uns aos outros. A luz fraca da lua que entra pelas janelas de vidro é o suficiente para que eu veja em seus olhos que ele também não está satisfeito.

-- Eu não tive escolha. Os velhotes da capital são espertos, eles sabiam que eu estava escondendo alguma coisa. -- Nile faz uma pausa para suspirar. -- Se eu não o fizesse, eles iam te caçar de qualquer jeito.

-- Você deveria ter deixado. Não sou uma amadora, Dok. -- Respondo. -- Eu deixei rastros falsos a minha vida toda, o suficiente para eles passarem décadas procurando.

Nile ergue uma sobrancelha, endireitando a postura.

-- Mas já que você não pode deixar de ser um covarde, fui obrigada a tomar outras medidas. -- Dou de ombros novamente, observando as feições de seu rosto mudarem aos poucos.

Nile assim como o policial ao seu lado permanecem em alerta e se sobressaltam quando um som abafado vem do alto, de onde deveriam estar os outros dois soldados. Somente então eles parecem perceber que a conversa dos dois parou. Escuto o som tão familiar do rifle sendo engatilhado e o cano reluz à luz da lua quando é erguido para mim novamente pelas mãos trêmulas do homem atrás dele.

Arregalo os olhos e meu coração dispara quando ele leva o dedo ao gatilho, mas é impedido de atirar pela mão de Nile, que se segura com firmeza ao cano metálico, parando as ações de seu companheiro. Os olhos pequenos estão arregalados para mim e ele me encara com a mesma expressão de "o que você fez agora?" de sempre.

-- Sofia... -- A voz do Comandante da Polícia Militar sai em um fio quando a carruagem para abruptamente. Meus batimentos voltam ao normal gradativamente enquanto escutamos passos do lado de fora contra a terra. -- Quem está do lado de fora?

O Rouxinol - L. AckermanOnde histórias criam vida. Descubra agora