15. NOVE MESES

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Um bebé precisa de, aproximadamente, nove meses para se desenvolver completamente no útero materno. Eu acho que me posso considerar um bebé, porque demorei nove meses para me reconstruir depois de ter passado pela fase mais difícil da minha vida. Sinceramente, eu não tinha grandes esperanças sobre conseguir voltar a ser quem eu era. Porque eu estava destruída. O meu coração, a minha identidade, tudo estava destruído. Dificilmente conseguiria ser capaz de deixar o passado no lugar dele, de uma vez por todas, mas com a ajuda da Doutora Cristina, foi tudo tão mais fácil. Já não falo no Miguel com mágoa ou com rancor; já não choro quando penso nele. Já não tenho nojo quando penso que ele foi a pessoa com a qual perdi a virgindade; já me consigo olhar ao espelho outra vez. Já não penso no filho que não deixei nascer com uma culpa enorme; agora o que sinto é compaixão por todas as outras raparigas que fizeram o mesmo que eu. Porque nada na vida acontece por acaso, e se eu aprendi algo com o Miguel, é que também mereço ser amada, também sou digna da atenção de alguém. E a morte da minha irmã ensinou-me a aproveitar mais os momentos, a ser genuína; percebi o que tempo que vivemos não interessa para nada se não tivermos deixado uma marca. E a minha irmã deixou.
- Eva, querida. Esta é a nossa última sessão. Nunca pensei dizer isto tão cedo, mas... Tu não és a mesma pessoa que pisou este consultório há nove meses atrás. Tu estás livre, estás tão bonita... fico muito feliz que tenhas conseguido libertar essas amarras! Mas há uma coisa que te queria pedir. E estás no teu direito de aceitar ou não a minha proposta, mas eu não to pedia se não achasse que não estavas pronta... - olho para a doutora sentada na sua poltrona amarela pela última vez e o meu coração fica apertado, mas está tão feliz e tão grato...
- O que é doutora?
- Eu gostava muito que te encontrasses com o Miguel e lhe contasses tudo o que sentiste, tudo o que passaste... sê sincera com ele... pede-lhe desculpa, agradece-lhe.... Diz-lhe o que quiseres ou então não lhe digas nada, mas marca um encontro com ele para pores um ponto final neste capítulo de vez. - Os olhos doces da doutora deixaram-me mais confiantes, disseram-me que era a coisa mais acertada a fazer.
- Vou fazer isso, doutora. Obrigada. - nove meses que acabaram com um abraço sincero.
No dia seguinte, com os dedos a tremer, peguei no telemóvel e liguei ao Miguel.
- Estou? - a voz dele ao atender o telemóvel fez-me tremer
- Miguel? - a minha voz estava a tremer - Sou eu, a Eva. - fez-se silêncio...
- Eva? És mesmo tu? - a voz dele muda de tom e volta a ser a mais tranquilizante que conheci
- Sim... Eu... achas que podíamos combinar um café para... conversar? - não acredito que estou a falar com ele.... Ele hesita antes de responder e nesse momento só me apetece desligar o telemóvel
- Sim... claro que sim... seria bom ver-te novamente... - Ai, o meu coração... - Diz-me onde e quando e eu lá estarei.
- Amanhã, na gelataria da cidade, às quatro da tarde?
- Sim, perfeito. Até amanhã, Eva. - e desligou e eu só fiquei com vontade de me enfiar num buraco bem fundo. Fiquei com medo do amanhã e, por isso, mal dormi.
Não tinha nenhum ataque de ansiedade há meses e, logo naquela manhã, tive dois seguidos e tive de ligar à doutora.
- Eu não consigo... eu vou ligar-lhe, eu vou desmarcar... Eu não consigo... - eu estava desesperada, trancada no quarto a chorar e os meus pais não sabiam o que fazer porque há meses que eu não ficava assim
- Eva... tem calma... Respira... falta muito pouco tempo para a hora que combinaste... Não vais fazer nada, mas eu vou ajudar-te!
- C... Como?
- Vocês combinaram encontrar-se num local público?
- Sim...
- Então fazemos assim... Dizes-me onde é que eu vou lá ter antes das quatro horas e quando ele estiver contigo, eu vou estar lá também, para te ajudar, para te apoiar caso aconteça alguma coisa, sim? - acabou de sair um peso enorme de cima do meu coração
- Sim... obrigada, obrigada doutora, a sério... Nunca lhe vou conseguir retribuir o suficiente...
E assim foi... Às quatro horas em ponto eu estava à espera dele na gelataria, a duas mesas de distância da doutora Cristina... Eu odeio atrasos, já estava a começar a entrar em pânico quando o espanta-espíritos da porta da gelataria tiniu e ele entrou... E o meu coração parou.
Já não me lembrava do quão bonito ele era... do quão alto era... Do quão atraente ele era... Agora que sei que ele é meu irmão as coisas mudam de figura e eu não devia sequer ter estes pensamentos, mas agora nem sequer sinto nada por ele para além de... Empatia. Quando me vê, vem na minha direção e senta-se sem dizer nada. Depois aproxima-se de nós alguém para recolher os nossos pedidos e ele pede, para os dois, gelado de menta e chocolate. O meu favorito... Ele lembrou-se.
- Obrigada, mas... Não era preciso... - digo eu, finalmente, deixando-o surpreendido
- Era preciso sim, Eva. Sei que não é com um gelado que vamos esquecer tudo o que aconteceu, mas é uma forma de me redimir.
- Redimir? Porquê?
- Porque eu sei que também te magoei... - engulo em seco - Não sabes o quão fiquei feliz quando me ligaste... Eu queria ter tido oportunidade para te pedir desculpa, para te dizer que o tempo que estivemos juntos realmente significou alguma coisa para mim... Mas a minha mãe falou com o teu... Com o nosso pai... E ele disse que falou com a tua psicóloga e ela não recomendou que tu me visses... - como é que é?
- Há quanto tempo é que isso foi?
- Há.... Cinco meses, penso...
- Mas sabes... foi a minha psicóloga que me aconselhou a falar contigo hoje... Porque eu estive nove meses na terapia e tive finalmente alta.... - Os olhos dele brilham e dá perfeitamente para perceber que ele ficou surpreendido
- Nove meses!? Com que regularidade?
- Três sessões de uma hora por semana.
- Eva... Eu... Eu lamento... Eu não fazia ideia... foi tudo por minha culpa, desculpa...
- Não lamentes, Miguel... Ninguém fazia ideia de quem eu era... Nem mesmo eu própria... Mas eu agora não quero falar disso, eu queria pedir-te desculpa por todas as vezes que errei contigo quando.... Estávamos juntos... E também agradecer-te, por teres sido o meu primeiro... em tudo.
- Em tudo? Tudo mesmo?
- Tudo mesmo... E também queria perguntar-te se... estás em interessado em... ser o irmão que eu nunca tive.... Porque eu já perdi uma irmã, não quero perder o único que me resta... - ele pega na minha mão e olha para mim um momento antes de responder
- Eu vou fazer de tudo para ser o melhor irmão que conseguir para ti... - estou a chorar, ele limpa-me as lágrimas e eu olho para o gelado que derreteu completamente
- Abraças-me? - pergunto
- Claro. - Ele abraça-me e eu sinto-me tão bem. Acho que nunca estive tão bem. Pelo canto do olho vejo a doutora Cristina a sorrir e a limpar as lágrimas que também lhe encharcam a cara. Lágrimas de orgulho.

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