016. Desculpa

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EMILY DICKINSON:

Ok, isso me pegou completamente de surpresa agora, ela estava me pedindo desculpas, mas pelo que exatamente? Ela está pedindo desculpas por ser uma vítima? Não, não pode ser.

— NÃO — Falo séria.

— Não? — Ela diz assustada.

— Não tenho pelo que te desculpar, Susie.

Me aproximo dela lentamente, consigo ver o alívio de minha última fala sendo transmitido em seu olhar, mas por alguma razão sinto que ela precisa de uma afirmação, só que não tenho o que desculpar, ela simplesmente não tem culpa de nada do que aconteceu em toda a sua vida.

— Sue... — me sento na cama ao seu lado — você não precisa se desculpar por nada, ok?!

— Emily, por favor, me escuta com atenção e não me interrompe — ela aperta minha mão com certa força. Já tem algum tempo que não sinto uma força vindo dela, ainda é relativamente fraco para o habitual mas muito forte para o que costumava ser dias atrás —  Em, eu sinto muito por ter sido uma completa covarde com vocês e com os outros. Eu não devia ter feito aquela coisa horrível, principalmente ter deixado um pedaço de papel como despedida. Você não mereceu aquilo, Em, você literalmente foi atrás de mim em um lugar completamente desconhecido, tu ficou do meu lado todos os dias no hospital, eu sei, eu conseguia te ouvir sempre — seus olhos marejam — eu me lembro de te ouvir cantar todo os dias, tu errava a maioria das letras mas, num determinado momento você passou a cantar melhor que eu — ela ri — eu sei porque eu sempre te acompanhava em pensamentos.

— Sue, eu...

— Ainda não terminei, Em — me encara séria —eu sempre te via, sempre! Você é dona dos meus bons pensamentos, garota. A poeta mais incrível de todo o universo — ela ri e uma lágrima singela cai mas ela logo trata de secá-la — Emily, eu te amo! Nunca senti isso por ninguém e eu nem quero sentir. Por que isso tem que ser tão difícil? Acabei de completar dezoito anos e minha vida é um caos!  Eu só sobrevivi nos últimos oito meses por sua causa, eu vivia te imaginando, eu sempre ouvia o seu riso ecoar em minha cabeça, seus poemas eram melhores que qualquer droga, eu simplesmente te amo, Emily Dickinson!

— Eu posso falar agora?

— Sim.

— Sue, eu fui ao inferno por sua causa e iria de novo mil vezes se fosse necessário, você é minha amiga, minha ouvinte, minha dupla no karaokê e é a garota que eu amo! — agora eu que estou chorando — não quero que me peça desculpas por isso, nem por isso e nem por nada. Só peço que converse comigo antes de resolver tentar outra bobagem dessas! Não posso imaginar a dor de te perder, Susie. Eu quase não sobrevivi aos meses longe de você, a angústia e o desespero eram sufocantes, eu não quero ter que passar uma vida inteira longe. Sei que somos jovens e que temos muito o que aprender com a vida mas... mas isso aqui, nós — faço um gesto apontando para nós duas — eu quero que isso seja eterno enquanto dure e quero que dure pra sempre. Eu te amo, Susie. Por favor, nunca se esqueça disso.

Nós abraçamos e sorrimos, dessa vez sem lágrimas de infelicidade nos cercando e contorcendo nossos corações, pela primeira vez em muito tempo damos um abraço de paz, eu gosto da paz, principalmente essa que faz nossos corações baterem em sincronia. Hoje não tem mais lamentações, terão sorrisos e afins na imensidão de prazer que é estar ao lado de Susan Gilbert — futura Dickinson, assim espero — eu a amo e farei de tudo por ela, mesmo que isso signifique sujar minhas mãos de sangue. Pode levar dias, meses ou anos mas Thomas Gilbert pagará por tudo de ruim que já fez e eu farei questões de cobrar essa dívida.

— Emily.

— Eu — quebramos o abraço.

— Você poderia me dar um beijo, por favor?

— Hmmmm, sei não hein — ela me fita — não sei se eu posso te dar um único beijo, Sue.

— Pois então me dê vários!

Ela puxa meu colarinho e sela nossos lábios com um beijo calmo, é como se a chama da paixão aumentasse cada vez que nos tocamos, o contato de Sue é como o fogo e eu sou a madeira. Juntas criamos uma enorme fogueira que estava sendo alimentada a todo instante pelo nossos amor. O beijo acaba e ela me olha com um enorme brilho em suas orbes castanhas, jamais vi tanto brilho em seu olhar.

— Em, você precisa ir agora.

— Mas já? — olho o relógio na parede — Sue, ainda temos alguns minutos.

— Emily, eu não posso ficar perto de você agora.

— Não pode? Como assim?

— Não posso... você me deixa com — Me olha envergonhada — você me deixa com tesão, Emily, e no momento eu não estou podendo ficar assim.

Solto uma gargalhada com sua última fala e ela me olha confusa. Então esse é o efeito Emily Dickinson?

— Meu amor, você também me deixa assim.

— Deixo?

— É claro, eu apenas me controlo ao máximo para não tirar minha roupa.

— Mais um motivo para você ir, não poderei resistir aos impulsos agora que sei que você sente o mesmo por mim.

— Esse é o real motivo?

— E teria outro? — me olha desconfiada.

— Sim, mas vou esperar que me diga, não posso tirar isso de você a força.

— Pode dizer, duvido você acertar.

— Você tem medo.

— Medo? — me olha assustada. Parece que peguei onde dói.

— Sim, medo. Medo de que eu veja você com essas cicatrizes e sinta nojo ou qualquer outra loucura que passe em sua cabeça, mas a verdade, Sue, é que eu me apaixono por cada detalhe seu mais e mais.

Sou interrompida por algumas batidas na porta seguido de uma enfermeira que logo entra no local.

— Me desculpem mas o horário de visitas acabou.

Olho para Sue que está claramente em choque com minha última fala e deposito um beijo em sua testa.

— Até depois, gatinha. — levanto e vou embora.

Apesar do dia não ter levado o final merecido, hoje foi um dia relativamente bom. Sue finalmente começou a se abrir e eu pude dizer algumas coisas que estavam presas em minha garganta. Hoje o dia está feliz e é por isso que nada como uma caminhada até em casa para me fazer espairecer um pouco.

Estou perto de casa quando sinto um calafrio, não era do vento, não era do frio. Está tudo mais sombrio, as ruas estão calmas e pouco movimentadas. Olho para os lados mas nada vejo. Acelero os passos mas a sensação ruim aumenta, felizmente estou na frente do orfanato agora.

Ao fechar o portão, olho para a rua mais uma vez e consigo ver uma silhueta nas sombras mas está muito longe para identificar quem quer que seja. Me certifico de ter trancado bem o enorme portão e entro correndo para o pequeno prédio, com certeza tem algo acontecendo e não quero estar na rua para presenciar.


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O Acaso - EmisueOnde histórias criam vida. Descubra agora