Escrito por: Mia Rossi, @miasrossi no Instagram
Revisado por: Vivis Ribeiro, @vivisescreve no Instagram
Aviso de Gatilho: Menção ao luto e perda
Classificação Indicativa: +12
Uma tempestade forte cai lá fora.
Sentindo frio, reviro-me entre os lençóis de seda, o colchão de repente incomodando minhas costas. Desconfortável, resolvo me levantar, você invadindo meus pensamentos outra vez enquanto caminho com dificuldade pelo piso gelado. Manco até a penteadeira, colocando meus óculos, e seguro o quadro entre minhas mãos trêmulas. Olho para mim, olho para você, e então observo a data no canto da foto.
11/03/2023.
Hoje completam-se quarenta anos desde que você se foi.
Sei que a minha partida também está próxima, sei que em breve deixarei essa fase, então, melancólica como é de se esperar a uma viúva solitária, abro a primeira gaveta, reviro entre papéis e puxo o pequeno caderno envelhecido pelo tempo.Tento ser rápida ao caminhar até minha poltrona macia. Quando me sento, ainda com as lembranças vívidas na mente, ajeito os óculos no rosto e começo a ler.
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20 de março.
Acabei de receber alta do hospital.
Quando passei pela sua sala e vi a maca vazia, com as máquinas desligadas e um fino lençol jogado pelo colchão, senti um nó tão grande no peito que quase desmaiei. Como eles ousaram te levar assim? Isso deveria ser um crime. Deveria ser um crime que simplesmente te pegassem e te levassem de mim. Não é justo. Não é justo que você se vá. Não é justo.... Não é justo não é justo não é justo....
19 de abril.
Meus pais querem que eu saia um pouco de casa. Mas eu não quero. Eu só consigo pensar em tudo o que aconteceu. Aquele era um dos dias mais felizes da minha vida. Como o destino foi capaz de arruinar aquele momento para mim? Eu estava tão, tão feliz. E o principal motivo era porque eu tinha você ao meu lado. Cantando comigo. Pintando e dançando pelo quarto. Fazendo tatuagens improvisadas para comemorar meus dezoito anos. Sendo meu lar.
É engraçado como as coisas costumam ser mágicas às vezes, né? E então, de uma hora para outra, elas acabam. A gritaria começa, eu digo coisas que não quero, e você se vai. Pega aquele carro maldito e parte para longe de mim. Deixando para sempre a marca de que você foi aquele que se foi. Aquele que me deixou, de mais de uma maneira. Aquele que foi embora.
A culpa me consome toda vez que penso muito sobre isso. Por que eu não fui atrás de você?! Por que o deixei partir? Por que eu simplesmente fiquei lá, parada, te vendo ir, sem nem sequer saber que aquela seria a última vez? Como posso dormir todas as noites sabendo que as últimas palavras que te disse foram coisas tão cruéis?
Apesar de tudo, a minha mente ainda quer te ver como o meu amor. Como aquele que tem e sempre terá o meu coração. Mas, infelizmente, agora você não é mais o meu amor.
Agora você é aquele que se foi.
24 de setembro.
Minha psicóloga diz que eu preciso seguir em frente. Mas é difícil passar pela fase de negação. Eu não quero seguir em frente. Quero continuar eternamente no mesmo lugar, se isso te mantiver perto de mim. Eu quero ser sua garota. Quero ser aquela que estará sempre contigo. Quero que seja nós contra o mundo. É apenas isso que eu quero. A única coisa que eu quero. A única... a única.
14 de outubro.
Eu faltei da terapia esta semana. Simplesmente não consegui ir. Foi um daqueles dias em que a saudade e a tristeza batem tão forte que nós simplesmente não podemos fugir. Já virou uma rotina. Às vezes, quando a falta é grande demais, eu coloco nossas músicas para tocar. Mas, sinceramente, eu não sei se isso é mesmo uma boa ideia. Pois toda vez que o faço, começo a fantasiar sobre nós, sobre como tudo teria sido se aquele dia fatídico simplesmente não tivesse acontecido. Pensando em encarar a música e finalmente admitir que eu não era mais sua musa. E que nunca seria.
Mas eu sei. Eu repito todas as noites, eu gravo na mente todas as manhãs. É uma promessa que precisa acontecer. Uma promessa da qual eu não vou, jamais, desistir. Em outra vida, John, eu seria a sua garota. Nós guardaríamos nossas promessas e eu faria você ficar.
E, assim, eu não precisarei dizer que você é aquele que se foi. Eu não precisarei chorar, não precisarei ir em consultas e nem passar em frente àquela rodovia amaldiçoada todo santo dia para te deixar uma flor. Eu não precisarei sonhar com você, desejando que pudesse te tocar ao menos mais uma vez. Eu não precisarei envelhecer sabendo que, por mais que conhecesse outra pessoa e seguisse em frente, uma parte de meu coração seria para sempre seu.
Eu te amo, John. E isso nunca vai mudar.
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Abro um sorriso curto, vendo que esta é uma das raras vezes em que não choro ao ler estas páginas. Pelo contrário, me sinto em paz. Apesar de relembrar de cada detalhe e ainda ser, no fundo, um pouco daquela garota, tenho orgulho de tudo o que consegui conquistar. Apesar da dor, eu segui em frente, John. Eu superei a dor. Eu me casei e tive lindos filhos. Eu pude continuar meu trabalho como artista, te homenageando com todos os sonhos que um dia criamos juntos. Eu deixei um legado para você. Eu tive netos lindos, dos quais nunca poderei reclamar. Chorei e enfrentei e vivi. E eu consegui, John. Apesar de tudo, eu consegui. Ainda que nunca tenha te superado completamente, eu consegui.
Sentindo a maior paz do mundo, debrucei-me devagar sobre minha poltrona confortável, minhas mãos tremendo por causa da velhice, e encarei o teto, respirando devagar enquanto sorria. Embora você seja sempre o primeiro em meu coração, agradeço aos céus por ter permitido com que eu tenha amado outra vez. Amado as lindas crianças que criei; amado o marido amoroso que era tão parecido com você; amado os netos que agora eu via crescer pelo mundo.
Devagar, sonolenta e com satisfação pela missão cumprida, fecho os olhos, abandonando o antigo caderno sobre meu colo. A capa, já amarelada, ainda carrega o título que eu havia bordado anos atrás, com grandes letras em bege: "THE ONE THAT GOT AWAY."
E foi junto daquele caderno que fui encontrada no dia seguinte, quando, ao receber uma visita de minha filha, todos finalmente souberam que eu havia partido deste mundo.
E ido, enfim, me juntar a você.
FIM
Conto inspirado em: The one that got away - Katy Perry
Notas da Autora:
Escrito por Mia Rossi
28/04/2022
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Entre Palavras e Acordes
Short StoryColetânea cheia de criatividade e melodia, com contos escritos por artistas incríveis e talentosos da Oficina Criativa.