Conto 04: Deixe-me ir

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Escrito por: Ray Machado, @Rmachaddoautora no Instagram

Revisado por: Gabriella Ferreira, @intrografando no Instagram

Classificação Indicativa: +12

A tarde rompe na campina trazendo consigo, a solidão do vento e a cantoria dos pássaros. E, como em mais uma tarde, sento-me no meu velho balanço empunhando uma xícara de chocolate quente.

Aos poucos as lembranças dos últimos dez anos chegam como o cantar leve dos canarinhos, que se preparam para a chegada dos filhotes. O pé de abacate está recheado de casinhas de madeira, que eu mesmo fiz em retribuição a tanto acolhimento. Quis dar a eles um pouco de conforto, o mesmo conforto que eu sinto quando me sento em frente a lareira da minha velha casa.

Um leve impulso faz o balanço se movimentar, trago a xícara até os lábios e o líquido quente e doce preenche minha boca, esquentando-me por dentro. A tantos anos o gosto não é mais o mesmo, depois que ela se foi.

Nada mais voltou ao normal, penso fechando os olhos com força.

Cristina era uma tempestade em dia de sol, seus longos cabelos loiros iluminavam o ambiente juntamente com seu sorriso, as curvas avantajadas que se destacavam com perfeição nos longos vestidos floridos que gostava de usar. O tom areia da sua pele, — quase sempre vermelho pelo sol, — carregava as marcas do tempo, que se foram, assim que ela parou de sorrir.

Prendo a respiração espantando as lembranças e me coloco em pé. O sinal da igreja local avisa que são cinco horas e que em alguns minutos a missa irá se iniciar. Desse que me casei não coloco os pés em uma igreja, nem mesmo quando ela se foi eu tive coragem, pois seria como destruir ainda mais as lembranças dos momentos felizes ao lado de Cristina.

Sem querer perder mais tempo, entro pela porta da frente que está com a tinta amarela desgastada, e a bato caminhando pesadamente até meu sofá, deixando a xícara sobre um móvel e deitando-me sobre o estofado branco e encardido, fechando meus olhos acalmando minha respiração, meu ritual sagrado de cada dia.

É assim desde que ela se foi.

Aos poucos sua imagem aparece com nitidez. Agarro-me às suas mãos e silenciosamente imploro para que não me deixe, mas Cristina vai sempre que abro os olhos e vem sempre que os fecho. Um círculo vicioso que não tem fim, e no fundo, eu não quero que tenha. Tê-la é como viajar pelos planetas, conhecendo cada pequeno pedaço dos lugares que sempre a fascinaram.

Saturno era o seu planeta favorito, dizia-me sempre que as luas eram suas filhas e que a nossa Dafne, estava bem cuidada a milhares de quilômetros de nós. Nunca a entendi muito bem, mas eu amava ouvi-la, por isso apenas concordava com cada palavra que deixava seus grandes e rosados lábios.

— Meu amor — a voz calma carrega consigo a frieza de anos. — Você voltou.

— Nunca a deixaria, minha lua — respondo com convicção e ela senta-se ao meu lado.

As vestes brancas, deixam-na com a aparência de um anjo, sinto falta de admirá-la com os longos vestidos floridos. Seus olhos acinzentados como o céu tempestuoso estão fixos em mim e ao mesmo tempo em nada. Cristina não consegue me encarar, não depois do que aconteceu.

— Como foi seu dia? — questiono tocando sua pele gelada. — Cris, amor?

— Por que voltou? Eu pedi para que me deixasse ir.

— Como posso deixá-la, se é por ti que meu coração bate? Se deixá-la ir, como sobreviverei?

— Deverias viver por ti, não por mim. Eu já o deixei há seis anos, como pode ainda me esperar? Como se isola do mundo, sendo que ele é tão belo quanto nos livros que lê?

— Nada tem graça sem ti, minha Cristina — as lágrimas atrapalham-me e ela finalmente me olha.

— Eu parti porque não suportava viver longe de Dafne, e agora estamos bem. Juntas.

— Nossa filha se foi...

— E eu também — seus dedos tocam-me por cima da barba espessa. — Tivemos bons momentos Emanuel, mas acabaram. Por favor, deixe-me ir.

— Eu não posso — nego com a garganta arranhando. — Nada sobrará de mim, se eu te soltar. Tu me ensinaste a amar, a odiar, mas nunca me ensinaste a te deixar. Dez anos de minha vida, não se pode jogar no lixo.

— Quem está jogando no lixo, és tu, Emanuel — lágrimas grossas e cristalinas descem pelo seu rosto. — Não foste tua culpa o carro ter parado na ribanceira. Não tens culpa por eu ser tão medrosa a ponto de nunca ter aprendido a nadar. Tentaste me salvar, mas não percebeu que eu não queria ser salva.

— Cristina...

— Mamãe? — a menina de cabelos castanhos e cacheados se aproxima de nós. — Temos que ir, ele nos espera.

— Quem os espera? — pergunto angustiado vendo minha mulher se levantar. — Cristina? Amor, para onde vais?

— Para luz, lugar onde tu deverias ir — sorrindo ela volta a se aproximar de mim.

Consigo sentir a maciez da sua pele contra meu rosto e, principalmente, a quentura da sua respiração em minha bochecha.

Como senti falta desse contato. Como eu sinto falta da minha mulher e da nossa pequena, que não resistiu por tanto tempo em nosso planeta e foi encontrar seu lugar cinco minutos após iluminar nossas vidas. Nem tivemos tempo para nos conhecer direito.

— Eu sempre te amarei, Emanuel, mas preciso seguir.

— Cristina, não me deixe.

— Perdão Emanuel, mas nossa filha não merece ver o pai se acabando em culpa, por um erro que também foi meu — resvala seu nariz pequeno contra o meu. — No fim, não foi nossa culpa, meu amor, foi o destino.

— Dafne...

— Tchau papai — balança a mãozinha e sorrindo, agarra a da mãe.

O silêncio chega assim como o vento frio. Abro os olhos e busco-a, entrando-me deitado ainda sobre o sofá. As lágrimas molham meu rosto enquanto a dor queima em meu peito.

Está acabado, ela me deixou.

Ela me deixou e a única coisa que escuto são os nossos risos mostrando que o que tivemos foi bom, mas que agora eu preciso deixá-la ir.

Com lágrimas nos olhos ando pela casa que construí para ser o centro da nossa família, e tomado pela raiva, chuto a mesinha de centro, fazendo com que o vidro se quebre em centenas de pedacinhos, fazendo par com meu coração.

E sem mais esperança para o futuro, deixo a casa cheia de lembranças para trás, deixando-a ir.

Eu as deixo e me perco.

Conto inspirado em: Saturno – Pablo Alborán

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