01: dor fantasma. (revisado)

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Alerta: esta história é EXTREMAMENTE pesada em alguns momentos. existe uma quantidade de gatilhos bem grande, então se você é sensível a conteúdos que envolvam morte, suicídio e automutilação, por exemplo, NÃO LEIA. preze pela sua saúde.

recado dado e boa leitura.     

***

Dor. Excruciante, latejando pela carne flagelada, pelos hematomas na pele febril, flácida e pálida como a de um doente moribundo. Ela sente a dor se esvaindo a cada minuto. Segundos, minutos, horas. A contagem permite que mantenha a sanidade; perde-se a noção de tempo perante a tortura auto imposta. Onze horas. Ela treme diante do ar glacial que vem da varanda. Seu interior range como o piso duro, gelado, em que se estende; a bochecha lateja de tanta dor, pressionada no chão frio pelo o que pareceu uma vida inteira.

E era uma vida inteira. Sua vida. Revisitada pelo prisma do luto nesta eterna tortura emocional. Marinette permaneceu ali, no chão, ensanguentada, arfando, quieta para não causar tumulto entre seus fantasmas; a dor crônica que sente subindo do cotovelo às palmas alivia, e ela sente que em breve será capaz de se levantar. Sente como um sussurro, uma brisa que não sabe bem de onde vem — como quem sente uma tempestade à caminho pela dor fantasma de uma cicatriz muito antiga — que seu tormento estava para terminar. Aquietam-se as vozes, os gritos, e então a parte sensorial de suas memórias se esvai; o gosto do sangue na boca, o cheiro da fuligem, a sensação da carne arrebentada. Se esvai, mas não desaparece. Nunca desaparece.

— Vai passar logo. — diz para si mesma, para suportar o final de sua crise. Precisa consolar-se. Precisa ter fé de que tudo vai terminar. Por um momento. Ela consegue visualizar seus fantasmas cansados de atormentá-la se recolhendo nos cantos do seu quarto, bocejando, exaustos de cutucarem suas feridas. Nunca iam longe o bastante.

Sempre os sentia. Sempre os via. Nas sombras de seu apartamento, nas frestas, nos cantos escuros. Estavam sempre com ela.

Marinette se levanta, esticando os dedos rígidos das mãos e as pernas, duras e inflexíveis. O pijama sujo e puído agarra em sua pele — apesar do frio, ela transpirava, inquieta e eufórica de pavor — e ela sente o pulso arder, colado em sua roupa pelo sangue seco; mal se recorda de quando vestiu roupas limpas, ou de quando lavou os cabelos pela última vez. Era irrelevante. Fora as feridas — os pulsos abertos em talhos mal feitos — que lavou e desinfetou, seguindo o mesmo ritual mecânico de limpar e enfaixar, Marinette não se deu ao trabalho de pensar em sua higiene. Estava exausta. O cheiro do sangue, do álcool que utilizava nas feridas, do algodão seco em sua lixeira, a deixou enojada por um momento.

Arfando por ar fresco, ela se esgueirou até a varanda. O ar frio a incomoda, faz a pele ferida doer, mas ela estava farta de permanecer enclausurada com seus fantasmas e flagrantes, com tudo aquilo que de pior havia nela; o caos, sua natureza sádica, a sujeira e tudo o que o mundo exterior não via. Marinette apoia os cotovelos na grade bamba da varanda, transferindo seu peso para o ferro enferrujado. Ela sente o alívio do ar que fresco, e se deslumbra com as luzes do subúrbio. Ali, vendo a claridade, as luzes, as pessoas que ainda passeavam pela rua mesmo tão tarde da noite, ela percebe a solidão, o vazio que a engole. A escuridão que banha seu quarto, seus dias. Sua vida. Uma vida estática, parada em um tempo entre a glória e a decadência.

Quando a solidão tornava-se insuportavelmente cruel, ela fazia a sua eventual brincadeira de faz-de-conta, para anestesiar o sofrimento por algumas horas. Imaginava-se tendo outra vida; uma estudante de moda cansada, atrasada com seus prazos, que decidira ler um livro de culinária e beber um chá. Que faria as receitas que achasse mais interessantes para os pais no almoço de domingo. Às vezes, impelida pela necessidade, ela levava o único livro que tinha em casa e fazia um chá. Marinette não lia o livro e não tomava o chá na varanda, pois bastava que sua mente se desse conta de que tudo era uma tentativa de dissociação da realidade para que tudo terminasse em uma brutal crise de choro. Achava-se patética nestes momentos. Mas era a forma como lidava com o isolamento sem perder o pouco de sanidade que ainda tinha.

Cicatrizes de batalhaOnde histórias criam vida. Descubra agora