Alerta: esta história é EXTREMAMENTE pesada em alguns momentos. existe uma quantidade de gatilhos bem grande, então se você é sensível a conteúdos que envolvam morte, suicídio e automutilação, por exemplo, NÃO LEIA. preze pela sua saúde.
recado dado e boa leitura.
***
Já eram quase onze horas quando ela notou que o chão estava frio e que suas bochechas doíam contra o piso manchado de sangue. A noite gelada fez seus dentes tremerem; o vento glacial que vinha da varanda fazia tudo dentro dela chacoalhar. Mesmo assim, faminta, sangrando e tremendo de frio, ela não se moveu. Permaneceu quieta, encolhida no chão, segurando os joelhos na altura do peito. Seus pulsos — doloridos e cheios de cortes abertos — mancharam a blusa puída e coberta de furos do pijama maltrapilho; provavelmente estava com a mesma roupa há dias, mal conseguia se lembrar da última vez em que vestiu roupas limpas. Marinette continuou contando os segundos, os minutos, as horas.
Aquele não era um dia bom. Ela conseguiu sentir em seus ossos, na carne flagelada, nos hematomas ao redor do corpo, assim como quem sente que uma tempestade está vindo pela dor fantasma em uma cicatriz muito antiga. Marinette soube, no momento em que abriu os olhos no início da madrugada anterior, que o dia seria difícil. Era como um sussurro, ou um sopro diferente, uma brisa que não se sabe bem de onde vem; uma sensação tão leve, mas letal como um tiro. Então ela se rendeu. Deixou a mente vazia, aquietou o corpo que sempre trabalhava e deitou-se no chão. Marinette aguardou pelo primeiro grito que veio não muito tempo depois, pelo cheiro de fuligem e o gosto ferroso do sangue na língua. Ela esperou pela dor que sentiria nas mãos quentes e pelo terror. Era sempre o mesmo terror cor de carmim que fazia os pilares rachados dentro dela ruírem. Tudo ia ao chão. Tudo virava cinzas. E depois, quando mais um dia ruim terminasse, ela precisaria construir todos os pilares outra vez. Mesmo que eles nunca fossem perfeitos ou seguros.
A onda de dor estava chegando ao seu fim. Marinette seria capaz de levantar outra vez em algumas horas. Sentia que os fantasmas que vinham assombrá-la estavam cansados de atormentá-la. Ela conseguia vê-los se recolhendo no canto do quarto, bocejando, já exaustos de cutucar suas feridas. Mas eles nunca iam muito longe. Às vezes conseguia vê-los nas sombras, atrás das cortinas, ou no banheiro, na sala ou na cozinha; eles esperavam pelo momento em que ela cederia, que cometeria algum deslize.
— Vai passar logo. — disse para si mesma, esperançosa. Já não ouvia mais gritos ou sentia qualquer desconforto que fosse além do habitual. Até mesmo as mãos, antes pesadas e doloridas, pareciam mais leves.
O pior havia passado. Com o tempo, conseguiu mover os dedos rígidos e forçou-se a esticar as pernas. Estava dura, quase petrificada. Permaneceu durante algum tempo naquela posição; de costas, encarando o teto cheio de infiltrações. E então ergueu-se, pondo-se de joelhos e, finalmente, de pé. Ela olhou para o quarto caótico e suspirou, cansada demais para fazer algo a respeito. Iria dormir no meio das cobertas emaranhadas e das lâminas sujas que usara para rasgar os pulsos. Os lenços empapados de sangue ainda estavam na lata de lixo no canto da cama; uma prova dos seus atos destrutivos. O cheiro do álcool que usava nas feridas, do sangue e do chão sujo a deixaram enojada por um minuto. Marinette sentiu a brisa gelada que vinha do lado de fora e encolheu os ombros, porém, já não suportando mais continuar enfurnada com seus fantasmas e flagrantes, ela caminhou lentamente em direção a minúscula varanda que compartilhava com outro vizinho. Somente uma parede bamba de PVC separava ambas as partes.
O ar da noite era infinitamente melhor do que aquele que circulava dentro do seu quarto. Marinette apoiou os cotovelos na grade pouco firme da varanda e encheu os pulmões de ar. As luzes machucaram sua visão durante algum tempo, mas eram tão brilhantes, tão fortes, que ela quase conseguiu se esquecer da escuridão com a qual se blindou durante todo o dia. Ali, encarando uma vista que nunca mudava, ela se sentiu quase normal. Muitas vezes brincou de faz de conta; imaginava-se tendo outra vida, sendo uma estudante cansada de tanto ler e cheia de insônia que precisava tomar um ar no meio da noite. Às vezes para ajudar no seu conto de fadas, ela levava uma xícara de chá e um livro para a varanda, mesmo que não bebesse o líquido e que não lesse o livro, aquilo a ajudava a se sentir normal. Hoje, a única coisa que enxerga em suas falhas tentativas de encontrar algum conforto em sua rotina é desespero; Marinette estava desesperada para fugir de sua realidade.
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Cicatrizes de batalha
FanfictionApós um acidente que ceifou a vida dos estudantes do colégio Dupont, os heróis aclamados de Paris não tornaram a aparecer. Restaram os sussurros, as velhas histórias de terror repassadas de boca a boca sobre o horror vivido no dia que marcara a qued...