A luz branca feriu seus olhos. A secura do canal lacrimal tornou o ato de manter-se de olhos abertos quase impossível. Sua boca — seca e terrivelmente amarga — ardeu através do gemido inconsistente que lhe escapou dos lábios ressecados. A consciência veio de forma lenta. O som dos batimentos em ritmo constante, lento, o gotejar incessante do soro. O mundo tomava forma outra vez ao seu redor. Marinette observou o quarto claro, de persianas bonitas e piso branco com certa confusão, e logo seu peito doeu. A realidade, uma vez mais, a atingiu como um trem descarrilhado. Lembrou-se do sangue como se nunca o tivesse esquecido, da música reverberando dentro de si, do gosto do vinho doce em sua língua, o calor radiante e os comprimidos; tudo estava ali, todo o horror, toda a dor pulsante, pois nunca havia ido, de fato. Ela se atentou aos ferimentos irritantes e meramente amortecidos com horror ao mover-se ligeiramente inquieta e o acesso em sua veia repuxar a pele dura de seu braço. Sua mão voou a testa, sentindo nos dedos de pontas geladas a textura enrugada dos pontos. Viva. Remendada, montada em pedaços, dolorida e machucada. E viva. O fato a arrancou do torpor dos sedativos. A dor lhe rasgou o peito, e o choro naturalmente se fez; a dor de uma ferida antiga escancarada. O pavor subiu pela boca do estômago e enraizou-se na alma. Marinette chorou, trêmula e pálida, transpirando, e não havia consolo que pudesse desvencilhá-la do sofrimento que sentia ao perceber que ainda estava presa dentro de todo o desespero que tão avidamente tentou se livrar.
O som da porta se abrindo não a fez cessar; já não havia mais motivos para esconder-se. Estava exposta. Pelo costume, ela se encolheu, quieta, incapaz de virar-se totalmente para o outro lado, e se contentou em encarar a parede com o corpo inclinado para longe do acesso em seu braço.
— Oi, querida. Que bom que acordou. — O tom afável da enfermeira não surtiu efeito nela. Marinette a ignorou. — Está sentindo dor em algum lugar? — Havia um buraco nela a tragando para a dor outra vez. Absolutamente tudo doía. Ela não disse uma única palavra. — Meu bem, eu vou pedir que você não se mexa dessa forma. — A enfermeira se aproximou como se ela fosse um animal encurralado. — Você está com algumas costelas quebradas.
Marinette inalou automaticamente de forma mais profunda para constatar que estavam mesmo quebradas. A dor característica, quase nostálgica, arrancou dela um suspiro inquieto quando o desconforto lhe veio. Suas fraturas anteriores a marcaram com uma dureza, uma resistência emocional que, embora não fosse agradável, ela já não processava mais a dor física da mesma maneira; lembrava-se do pior, de quando havia sido esmurrada, dos ossos esfacelados — incluindo as costelas, agora fraturadas outra vez —, e pensava que já havia sofrido mais. Seu corpo, no entanto, após tantas surras, consertos milagrosos, contusões e lesões repetidas, não se refazia da mesma forma de antes. Era o preço. Abusara tempo demais dele.
— Querida, está sentindo náusea? Algum desconforto ocular? Preciso saber se está sentindo alguma coisa diferente. — A enfermeira aguardou pacientemente enquanto ela se autoanalisava.
— Não sinto nada. — Marinette sussurrou sem interesse enquanto ela deferia sua temperatura e examinava seus olhos.
Marinette não sentia nada extraordinário, nenhuma dor que não fosse capaz de suportar; as costelas, os pontos em sua cabeça, o rosto dolorido. Estava consciente da quantidade de sedativos que atenuavam o seu desconforto, mas não imaginava que pudesse ser tão pior do que o habitual quando estivesse sóbria; isso, no entanto, não a incomodava em nada. Sua indiferença poderia ser lida como choque, assim como a enfermeira atribuiu à ela a falta de palavras a vergonha, mas a verdade era, pura e categórica, que Marinette não havia planejado, obviamente, sobreviver. Ela já havia se despedido e dito suas últimas palavras, e agora, diante dela, estava sendo escrito um epílogo de sua vida.
Uma vida que ela já havia desistido.
— Vou dizer aos seus pais e ao seu namorado que está acordada. Que está bem. Garanto que vai se sentir melhor quando vê-los. — Marinette assentiu, permissiva, lenta e deliberadamente e não disse mais nada. A enfermeira afagou seu cabelo antes de deixá-la sozinha.
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Cicatrizes de batalha
FanfictionApós um acidente que ceifou a vida dos estudantes do colégio Dupont, os heróis aclamados de Paris não tornaram a aparecer. Restaram os sussurros, as velhas histórias de terror repassadas de boca a boca sobre o horror vivido no dia que marcara a qued...