15: a coragem para voltar.

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A cama rangeu, baixo como um sussurro, mas a despertou. Torta, mal ajeitada em sua antiga cama, ela sentiu a textura familiar dos lençóis e observou a escuridão engolindo tudo o que havia ao seu redor. Notou a claraboia primeiro, em seguida a escada — ainda coberta com suas bandeirinhas de tecido — e o formato do quadro pendurado na parede ao seu lado. Seu antigo quarto não havia mudado muito. Parado no tempo, as paredes rosas ainda mantinham um ar juvenil, como seus móveis, as fotos que não levou, o tapete de bolinhas no chão, o abajur próximo à cabeceira da cama; viu o quarto em que passou toda a sua adolescência, imutável, com a mesma visão turva, embebida de sono, com a qual o viu nas madrugadas ao longo de sua vida, mas o sentimento de familiaridade não era mesmo. Marinette acendeu a luz do abajur, e viu a poeira no ar, sentiu o cheiro característico daquilo que há muito permaneceu guardado; assim como ela, que se manteve como seu quarto, estacionada no tempo. Estacionada no momento mais bonito da sua vida, que a destruiu, que a fez feliz e irremediavelmente triste ao mesmo tempo. E a beleza estava nisso: na constatação de que embora tenha sido agraciada com memórias fugazes de pôr do sóis tão belos, com risadas sopradas ao vento, com vivacidade e uma vitalidade selvagem, com todo o glamour de ser uma heroína tão aclamada, no auge de sua juventude, ela também conheceu o que de mais obscuro há no ser humano, e de como tudo pode ser arrancado das entranhas de alguém com a mesma facilidade com a qual se arranca um band-aid de uma ferida.

Marinette se levanta, sentindo o peso da melancolia em cada post-it ainda colado em sua parede, em cada mancha de algum objeto que não está mais ali; a marca de seu guarda-roupa ausente, a sombra de sua máquina de costura velha que costumava a estar encostada no canto do quarto. Desce as escadas, ainda sonolenta, sensibilizada pelos comprimidos, e sente a boca seca, os membros pesados e a visão turva; ela olha para o manequim usado que não levou consigo e se aproxima, vendo o tecido com as marcações de alfinete no busto de uma blusa que nunca terminou. Em alguns detalhes como aquele, ela percebe que suas coisas se mantiveram intocadas. Seus pais se incomodaram apenas com a limpeza do cômodo. Com pesar, ela entende que, para eles, era como mantê-la com eles; como se em algum momento ela fosse retornar do colégio, ou do cinema, e fosse continuar sua rotina dentro de seu mundo, dentro de seu quarto. Como se ela fosse se queixar se alguém tivesse mudado sua caixinha de agulhas do lugar, ou deixado cair seus botões pelo chão.

As marcas de sua ausência estavam ali, em cada minúcia, em cada lufada mais profunda com cheiro de sabão e lençóis guardados. De poeira e amargor.

— Você ainda continua tirando coisas de mim. — Marinette sussurra amarga, na escuridão, sentindo o mesmo cheiro metálico e a dor crônica subir pelas suas palmas ao pensar nele. Hawk Moth.

Marinette desce as escadas até a sala com os pés doloridos ao pisar tortamente pelos degraus em meio ao escuro. O som de seus passos cessa quando ela se move pela sala com a mesma agilidade que possuía em uma vida distante. Na cozinha, a luz que emana do relógio no forno elétrico a deixa enxergar os copos na pia e o horário daquela madrugada. Eram quase quatro horas. Seu pai deveria estar na padaria. Mas não havia sinal de vida naquela casa. O ruído do sofá a assustou. Atentou-se de repente ao chiar de um ronco leve, suave, tão baixo que ela mal havia percebido antes e virou-se, caminhando até o sofá; havia apenas a silhueta, e no breu ela reconheceu os ombros esguios, as pernas longas e fortes, e ela sorriu com o sentimento bobo que a invadiu. Marinette o reconheceria até mesmo já morte¹. Adrien dormia no seu sofá. Seus pés estavam desajeitadamente ultrapassando o encosto, e sua espinha parecia dobrada de uma forma desconfortável. Marinette sentiu um impulso familiar na ponta dos dedos, na necessidade que nascia em seu peito e na coceira na língua para acordá-lo, tocando em seus cabelos, e oferecer a sua cama.

Ao lado dele, no tapete confortável, havia a sombra menor, curvilínea, que ela identificou como Chloé; ela parecia mais confortável, no entanto. Marinette não soube precisar quanto tempo permaneceu ali, em pé, apenas admirando-os. Pensou em si mesma, magoada, sozinha, imaginando como estariam longe daquele lugar — felizes, distante de tudo aquilo que ela não conseguia esquecer, distante dela —, e neles, antes, e em como se agarraram uns aos outros para sobreviverem; os segredos, as risadas, as noites mal dormidas, o elo que compartilhavam pela necessidade de normalidade que precisavam. Vê-los ali, integrados em sua vida outra vez, a trazia de volta para o antes — os dois, o momento feliz e o amargo.

Cicatrizes de batalhaOnde histórias criam vida. Descubra agora