04: frágil.

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— Você mal tocou no bolo de carne, querida. 

A voz doce de Sabine a retirou do transe. Marinette notou, sem muito ânimo, que estava encarando fixamente a comida no prato intocado; seus dedos seguravam os talheres com pouca força, quase os soltando em cima da mesa. Ela não estava ali, presente na mesa, almoçando com os pais. Sua consciência estava longe, bem longe do apartamento que vivera por quase toda a sua vida; a mente distante se afastava cada vez mais das paredes brancas, da mesa abarrotada daquilo que mais gostava e, principalmente, dos dois rostos que a encaravam com uma ansiedade que a assustava. 

— Oi?

— A comida, querida. — Seu pai respondeu como se fosse óbvio. — Você mal comeu. — E então ela olhou verdadeiramente para o prato e percebeu que não havia nem mesmo cutucado o prato para fingir que estava comendo. 

— Estava distraída. Desculpa. — E então se calaram outra vez, naquele clima estranho e mórbido. 
Marinette começou a comer. Empurrar a comida era o termo mais apropriado. Ela mal mastigava, apenas engolia com pressa para não assustar os pais mais do que o normal; sua aparência quase esquelética já havia sido o suficiente para incomodá-los, então não precisava de mais problemas. Marinette conseguia pensar somente em uma única coisa, que a assombrava e perseguia: Adrien desaparecera. Há uma semana, desde a tarde do vinho, que ele não fazia contato ou aparecia em sua varanda.

Parabéns. Você o assustou. 

A voz se fizera presente em sua cabeça. Ela estava mais alta do que nunca. 
Marinette queria socar a cabeça e gritar consigo mesma, mas se contentou em arranhar a perna por baixo da mesa e morder a parte interna da bochecha. Suas manifestações de ódio precisavam esperar até que estivesse isolada em seu quarto, longe dos olhares piedosos de seus pais. 

Você concordou em vir. Finja que é uma boa filha pelo menos por algumas horas. 

— E então, querida, — Sabine começou, e seu coração passou a bater forte contra o peito — como vai o trabalho? —Marinette relaxou, notando que começara a suar de nervosismo quase que imediatamente. 
Marinette começou uma série de mentiras elaboradas na noite anterior com uma casualidade que fez os pais acreditarem — ou embarcarem em sua mentira — com facilidade. O tom animado e despretensioso que havia ensaiado não parecia forjado ou ridiculamente forçado, de modo que ela o achou convincente o bastante para deixá-los felizes. A atmosfera ao redor da mesa tornou-se um pouco menos pesada e à medida que o tempo passou e a conversa fluiu, Marinette sentiu como se estivesse em casa outra vez; como se ela fosse uma pessoa normal, falando de uma vida normal e tendo um almoço comum com a família. A ideia do faz-de-conta a ajudava a encarnar no personagem e, de certa forma, ajudava Sabine e Tom Dupain a se sentirem menos culpados pela ignorância que precisavam fingir. 
Se quisessem a filha, mesmo que aquele espectro do que um dia havia sido a menina sorridente e brilhante que um dia ela fora, então precisavam seguir os termos daquela grande farsa conjunta, da qual entraram um dia e nunca conversaram sobre. Não era preciso. Não era possível. E então jogavam — tanto ela quanto eles — este jogo de ignorância onde mentiam, fingiam e mantinham a verdade oculta para que os dias antes da tragédia pudessem ser reproduzidos de uma maneira meramente parecida. 

— O Adrien veio até a padaria há alguns dias, querida. — disse Sabine, iniciando outra conversa; a ideia de retornar ao silêncio assustava todos eles. Sua mãe olhou de forma curiosamente animada para Tom, que parou de devorar o almoço para sorrir de maneira cúmplice para a esposa. — Estava procurando por você, sabia? 
Marinette sentiu a comida voltando para a boca. 

— É.  Ele, hm, me ligou. Nós nos falamos não faz muito tempo. — Marinette pigarreou, não tendo tempo de reagir de outra forma; sua reação naturalmente exagerada com tudo o que envolvesse o loiro havia dado as caras. Suas mãos começaram a gesticular, largando os talheres com um tilintar ao tocarem o prato. — Ele estava de volta na cidade e queria rever os amigos. Essas coisas. — Os que sobraram, pelo menos. A voz macabra se manifestou e ela quis vomitar o almoço bem ali. 

Cicatrizes de batalhaOnde histórias criam vida. Descubra agora