16: a vida como ela é.

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Seu tom melancólico, sombrio por natureza, entoou seu desejo simples, porém de forma incisiva, sem margem para contrariedade, ao dizer “quero ir para casa”, que não houve como refreá-la.

— Me guia. Me mostra o caminho. —  A loira soou tão dura quanto, cúmplice de sua vontade, de sua transgressão. Porém havia algo na entrelinhas, um sentimento indizível, sentido nas entranhas, nostálgico, que a mantinha atada a uma súplica antiga, a ferida que Chloé carregava.  Mostre-me o caminho, ela pedia. Mostre-me como fugir de mim mesma, ela implorava.

Estava nela, nas nuances, em suas palavras dúbias, que ela, também, mantinha consigo feridas que não conseguia ver a extensão até senti-las sangrar. Ou, talvez, fosse Marinette outra vez, e sua necessidade de impor camadas ao ordinário para lidar consigo e o seu sentir intenso.

O encontro com Alya parecia distante, em desfoque, esmaecido como as memórias de sua antiga vida; os anos de sua vida civil, antes de tudo, tinham um tom fosco, cinza. Mas o gosto dos ovos e a gordura do bacon na língua provavam que havia estado lá. Bem como as marcas de suas unhas nas palmas das mãos e o número de telefone da antiga companheira no bolso do casaco como um delator de seu crime. 

O silêncio perdurou até o Volvo prata de Chloé estacionar em frente à fachada de seu prédio. E permaneceram caladas durante algum tempo, embaladas pelo sentimento de culpa que carregavam; ela, por ter estendido a mão ao que mais lhe feriu, e Chloé, por ter se rendido aos seus caprichos somente para ter novamente seu carinho, mesmo quando não precisava reconquistá-lo. Marinette viu a si mesma na loira, na forma como interagia com Adrien, como tudo girava em torno do desafeto que cultivaram, como ela se via presa em suas tentativas de fazê-lo permanecer ao seu lado; o medo do abandono ainda vinha visitá-la nas noites em que pensava que ele não retornaria de seus compromissos, que uma vez mais ele fugiria para um lugar que ela não era capaz de acessar. O mundo como ele era, as responsabilidades da vida adulta, o trabalho, as conexões com as pessoas, a vida como era: isso, para ela, era inacessível.

A máscara que utilizavam — o homem bem-sucedido, a mulher estonteante vinda de Nova York — não era algo que fosse capaz de forjar. Marinette se sentia apta a representar o teatro de filha emocionalmente distante, porém presente — raramente —, de maneira meramente convincente, mas tudo o que envolvesse algo além disso estava fora do que imaginou para si mesma. Estava fora de sua competência.

Ela olhou pela janela, ignorando a loira, e pensou na chuva, no cheiro fresco de terra molhada, nos seus pés gelados contra o asfalto e no beijo tenro e estúpido que deu em Adrien; pensou em sua despedida, em como imaginou estar vendo o mundo pela última vez, e na ironia do destino que a fez estar de volta nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas com quem dividiu uma vida que agora, pelo prisma do luto interminável, parecia um sonho fervoroso.

Marinette foi a primeira a se mover. O baque do carro, o ar gelado, a sensação de estar novamente no mesmo lugar a fez retesar os músculos; havia um peso em seus ombros, uma dor crônica abaixo da nuca que se acumulava no hall de desconfortos e penúrias que faziam parte de sua vida. Obedientemente Chloé a seguiu, como um fantasma, uma protetora cega que não enxergava exatamente o perigo.

Ele estava ali. Em cada andar que tomaram no elevador, em cada passo que deram até sua porta arrebentada; havia uma dobradiça nova, mas o estalo que fez ao usar a chave reserva não a deixava duvidas de que havia sido quebrada. Por um segundo, quando sentiu o cheiro de seu apartamento — algo como poeira e antiguidade, ar parado há muito tempo e o cheiro do amaciante que usava nas roupas —, ela perdeu o fôlego. Estava ali. Mesmo que suas roupas não estivessem mais atirados no sofá e seu sangue tivesse sido lavado do piso, estava ali.

A solidão. A vida como era antes para ela. O mal dentro de si mesmo. Ela, em todo o seu mundo.

O caos.

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